1. Continuação da publicação de Do Ninho de D'Águia até África, de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177. O Tony Borié, natural de Águeda, vive nos EUA, Flórida, há 40 anos.
Do Ninho D'Águia até África (3)
Uma pausa para reflectir,
guerra é guerra
Ou se está no conflito, ou não se faz parte desse mesmo conflito. Isto é, o que qualquer e normal cidadão poderia dizer.
O Cifra foi colocado em possível cenário de guerra.
Tiraram-no do ambiente da sua aldeia no vale do Ninho de d’Águia, do seio da sua família, deixou de ouvir o comboio das seis e meia, que todos os dias o acordava, e de que tanto gostava, trouxeram-no para a cidade, com costumes e pessoas diferentes, deram-lhe uma instrução básica, concentrada em matar, ensinaram-lhe as partes do corpo, em como se matava, com prolongamento de dor, rápido, com faca, ou simplesmente com as mãos, ensinaram-no a manusear uma pistola ou uma metralhadora, e que a usasse, para disparar, contra um ser humano.
Embarcaram-no.
Atravessou o oceano, e largaram-no dentro de um conflito, a milhares de quilómetros de distância da sua aldeia no vale do Ninho d’Águia, da sua família e dos seus amigos.
Ficou na frente, e com uma arma nas mãos, a combater pessoas que não conhecia, e que não tinham nada a ver com ele, e de quem ele nada tinha contra. Só única e simplesmente, a tal frase, e o blá, blá, blá, de alguns dos seus instrutores, tal como o chefe do governo de Portugal, de defender a bandeira e a Pátria, que é a sua mãe, ir para a guerra, em força, contra os canhões, marchar, marchar.
Tudo isto a milhares de quilómetros de distância, da sua aldeia do Ninho d’Águia.
- Meu Deus!. Que injustiça!. Porque razão me mandaram para aqui? Estes naturais olham para mim, e vêm tal e qual, como eu os podia ver, se eles invadissem a minha aldeia, no vale do Ninho d’Águia!. Esta é uma verdade, que eu não posso esquecer, e me vai atormentar.
Isto era o que pensava o Cifra.
Mas também sabia que todos os seus instrutores tentaram tudo o que sabiam para modificar todo o seu comportamento.
Pois, nunca lhe explicaram que do outro lado, lá em África, também havia pessoas normais, com direito a viver uma vida normal, junto de suas famílias, criando os seus filhos, tratando dos seus animais, cultivando a sua terra, tomando banho na água do seu rio, construindo a sua casa, caminhando pela sua floresta, respirando e vivendo em liberdade.
Liberdade essa que o Cifra nunca teve em Portugal.
Mas o que era isso liberdade?
O Cifra, nem sabia o significado da palavra liberdade.
Pois até à idade de fazer parte do exército de Portugal, nunca precisou de saber.
Tinha toda a liberdade que os pais lhe davam na sua aldeia, no vale do Ninho d’Águia, que era o trabalho na agricultura, alguns trabalhos menores na vila, que ninguém queria fazer, mas o Cifra fazia, pois era o único meio de ter alguns trocados, tinha família, as ovelhas, os porcos, as galinhas, a represa do
seu lameiro, o rio da vila, lembrava as raparigas suas amigas, que pelo menos mostravam que morriam de amores por ele, o seu comboio da seis e meia, que adorava ouvir o som do seu apito, quando descia o vale do Ninho d’Águia, em direcção ao mar.
Que mais queria ele?
Sim, mas fora do seu ambiente familiar não havia de facto liberdade. Lembrava, quando a sua mãe Joana, num ano de seca, em que as terras do pinhal não deram trigo nem aveia, lá na sua aldeia, do vale do Ninho d’Águia, e com alguma angústia, pois queria dar de comer aos quatro filhos, foi pedir dinheiro emprestado, para comprar um porco bebé, na feira dos vinte e quatro, que haveria de engordar e matar, por altura do Natal, que era a única alegria que a família tinha, pois nessa altura, enquanto o pai Tónio não salgava as carnes que seriam o governo para quase todo o ano, era uma fartura, com rojões e tudo.
A pessoa importante da vila que lhe emprestou alguns trocados depois da mãe Joana lhe bater à porta, por duas vezes, pois da primeira estava sentado debaixo de uma frondosa árvore, na frente de sua casa, a descansar, no fim de talvez um lauto almoço, e mandou dizer pela criada, que lá trabalhava, ninguém sabia desde quando, e trabalhava pelo comer e vestir, mas era uma fiel servidora, e disse à mãe Joana:
- O senhor não pode ser incomodado agora, venha para a semana, Joana. Quer um bocado de broa? Se quiser, eu vou buscar sem o senhor saber?! Ande, leve para os garotos, que devem de andar com fome. Principalmente, o mais novo, o Tó d’Agar, gosta tanto da broa que eu lhe dou. Quem me dera ter um filho assim!
A mãe Joana apareceu na semana seguinte, a lastimar da sua sorte, e o dito senhor, além de uns grandes suspensórios, também usava um grande cinto, a segurar a barriga. Depois de a ouvir, quase suplicar, põe a mão no bolso da samarra, com pele de raposa na gola, tira uma carteira recheada de notas novas, e disse:
- Quanto precisas, rapariga? Vocês não têm meio de controlar a boca aos vossos filhos?
A mãe Joana, a medo, lá lhe disse quanto era, ao que ele respondeu:
- É só isso, espera que não tenho aqui trocado, vou lá dentro e volto já.
Regressa com o dinheiro e um papel escrito que lhe estendeu, dizendo:
- Assina aqui. Ninguém sabe o dia de amanhã, com estas doenças novas, há morrer e viver, e vocês que andam sempre mal alimentados, e nesse caso, alguém terá que pagar.
A mãe Joana assinou, de cruz, um papel onde hipotecava todas as suas terras. Pagou, assim que pode, mas teve que ir a casa da dita pessoa, três vezes para reaver o papel, a desculpa era que o papel estava no banco da vila.
Era assim o sistema.
Pagava-se a dívida, mas ficava-se devedor para o resto da vida, obrigando o pobre a andar de chapéu na mão, curvando-se e dando lugar na rua ao senhor, que queria que o tratassem por Vossa Excelência.
Quanto mais miséria no País, e principalmente nas aldeias, mais força tinham esses senhores, protegidos pelo sistema, de governar e passar por cima de quem entendiam.
Em outras palavras, quanto mais miseravelmente vivessem as populações, melhor era para esses senhores que controlavam os bons empregos, a que só a família e alguns amigos, que se curvavam, tinham acesso, e beneficiavam de todas as regalias que o governo de então proporcionava a alguns.
Outros tempos... O seu Portugal, a tal Pátria que os seus instrutores constantemente lhe diziam que era a sua mãe, que agora defendia, sem saber de quê e qual a verdadeira razão, era um País de uns quantos. Assim lhe explicavam agora alguns companheiros, já mais vividos, que como ele se encontravam na mesma aflita e angustiante situação.
Mas o Cifra não sabia, não foi treinado para isso.
Foi treinado para matar, custe o que custar, a palavra final era sempre, em frente, contra tudo e todos, não importa a razão, se necessário for, não hesites, mata, para isso tens uma arma nas mãos e para isso te ensinámos a manuseá-la.
Pode custar a vida a uma, duas, ou centenas de pessoas, não importa, não ouças ninguém, vai em frente, em força, e mata, a Pátria é a tua mãe, (não a verdadeira mãe, que era a Joana), mata e morre pela Pátria, não importa que a guerra seja injusta e não tenhas nada a ver com estas pessoas.
Isto foi o treino, contínuo de dias e dias, que chegou a meses, em que os companheiros se envolviam em luta de treino para melhor aprenderem a maneira de se ferirem uns aos outros.
No meio de todo este cenário, o Cifra, todas as manhãs, tirava uns minutos de reflexão, meditando e tentando não perder os sentimentos de honestidade que a mãe Joana e a avó Agar, de quem herdou o nome, lhe ensinaram.
Nos seus momentos de reflexão, o Cifra tinha a firme certeza de que não tinha sido bem treinado. O treino a que o submeteram não resultou em pleno nele.
Entre muitas, havia três fortes razões para pensar assim.
Primeiro, odiava esta maldita guerra, segundo, não estava motivado para conflitos, terceiro, nunca teria coragem para matar alguém.
Então por que carga de água estava num cenário que odiava?
Cada vez se convencia mais de que as pessoas que o instruíram, ou eram fracos instrutores, ou o Cifra tinha uma mentalidade muito forte e não se deixou convencer de todo.
De uma coisa o Cifra estava convicto, que era:
- Vou sobreviver e tentar sair vivo deste conflito, sem pelo menos, matar ou ferir alguém. E se para aqui me trouxeram, também daqui me vão levar, nem que seja num caixão, mas aqui, não vou ficar.
Pedia a Deus para que isso fosse uma realidade e se o conseguisse, a sua guerra estava ganha.
E dizia a todos os militares, seus colegas:
- Se eu morrer, quero ser enterrado na minha aldeia do vale do Ninho d’Águia.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Ao ler-te,ninguém diria que estás há
quarenta e cinco anos nos USA.Tens
uma forte recordação do teu Ninho d'
Águia,aqui tão perto.A tua avó,onde
estiver,estará a gostar das tuas
histórias.Continua!
Abraço do conterrâneo
P.Santiago
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