segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13808: (Ex)citações (244): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (2) (Coutinho e Lima)

1. Continuação da primeira parte do comentário feito pelo nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado no Blogue "O Adamastor":


1.ª Parte do Comentário ao artigo
"Guiné, Guileje e o desnorte do reino" (2)


“E quando se despediu dele humilhou-o dizendo “regressa a Guileje e daqui a um ou dois dias irá lá ter o Coronel Durão e você passa a adjunto dele”. Ou seja passou-lhe um atestado de incompetência”.

Mais uma vez o Sr. Ten. Cor. deturpa o que aconteceu. O Sr. General não me disse quando o Sr. Coronel Durão iria para Guileje.

Afirma que me passou um atestado de incompetência. Conhecendo como eu conhecia o Sr. General Spínola (tinha obrigação disso, porque trabalhei, sob as suas ordens, durante dois anos-68/70), pude verificar que lidava muito mal com a incompetência, tendo dado sobejas provas desse facto. Se me considerasse incompetente, teria sido retirado do Comando do COP 5, na hora. A minha interpretação foi que tinha perdido confiança na minha acção de Comando. Este sentimento era recíproco, pois quando em 18 MAI 73, não foram feitas, a partir de Guileje, as evacuações solicitadas, contrariamente à sua garantia dada na sua última visita, em 11MAI 73, perdi toda a confiança na sua palavra, o que foi partilhado pelos militares, em Guileje.

Além disso, tendo o Sr. General Spínola, no final da minha comissão no Comando Chefe, decidido atribuir-me um louvor, se me considerasse incompetente era a admissão que se tinha enganado (louvando um incompetente), o que não era propriamente o seu forte – admitir que errara.

Perante a decisão do Sr. General, podia ter declarado que, perante a sua falta de confiança, não aceitava a solução, sujeitando-me, obviamente, às respectivas consequências, ficando assim liberto do problema que, responsavelmente, estava a tentar resolver.

Nunca tal me passou pela cabeça, pois a minha preocupação era chegar o mais rapidamente a Guileje, donde tinha saído no dia 18 de manhã. Estes 3 dias da minha ausência, foram um total desperdício. O Comando Chefe e o seu Estado Maior ficaram muito mal na fotografia, ao proceder da maneira displicente como trataram este assunto, sem atribuírem nenhuma prioridade à situação, gravíssima, que se vivia em Guileje

Se os delegados, cuja comparência insistentemente pedira, se tivessem deslocado a Cacine, no dia 19 MAI, aproveitando o meio aéreo que lá foi fazer as evacuações, eu teria regressado a Guileje, o mais tardar, no dia 20 MAI. Mesmo sem a ida dos delegados, o Comando Chefe podia ter ordenado o meu regresso imediato, o que não fez.

“Mas prova ainda outra coisa: que a retirada já teria sido preparada do anterior, pois era praticamente impossível organizar tal operação na hora. Será que estariam à espera que Spínola autorizasse a saída? Até que ponto haveria acção subversiva feita por eventuais infiltrados simpatizantes, idos da Metrópole? Eis duas questões que seria interessante dilucidar.”

Mais uma vez o Sr. Ten. Cor. entra em dissertações que são totalmente fantasiosas.

A retirada foi decidida, apenas quando regressei a Guileje, ao fim da tarde do dia 21 MAI. Tal pode ser comprovado pelos militares que lá estavam (que só ouviram, da minha boca, falar em tal hipótese, naquela hora). Bem sei que, para o Sr. Ten. Cor. interessa muito mais o “jornal da caserna” e, sendo assim, pode perguntar ao seu “apoiante”, ex-Soldado Constantino Costa, que estava em Guileje, se eu abordei esse tema, anteriormente.

A decisão foi por mim tomada, sem pressão de quem quer que seja. Depois de tomar a decisão, perguntei a todos os que estavam no abrigo em que me encontrava, qual a opinião de cada um e todos manifestaram a sua concordância. Podia aproveitar para afirmar que tive a aprovação dos que ouvi, mas não o fiz, porque esta concordância foi “à posteriori” e porque prezo muito a verdade.

A ideia de esperar que o Sr. General Spínola “autorizasse a saída”, além de absurda, como podia ser expectável, se o que eu pedira era reforço!

A ideia de “acção subversiva por eventuais infiltrados” não me merece qualquer comentário. Como até agora, os argumentos do Sr. Ten. Cor. não são convincentes (excepto o seu autoconvencimento,  resolveu inventar a “teoria da conspiração”. Repito: TOMEI A DECISÃO SEM PRESSÂO DE NINGUÉM. Se não percebeu, POSSO FAZER UM DESENHO.
Espero que o Sr. Ten. Cor. tenha ficado dilucidado, sobre estas duas matérias.

“Guileje tinha, porém, um ponto fraco: não tinha um poço artesiano, que lhe fornecesse água potável, a qual tinha que ser obtida a cerca de 2 Km…”

Esta afirmação do Sr. Ten. Cor., que se saúda, é muito incompleta.

Além da falta de água, no quartel, que era um condicionalismo inultrapassável, tinha outros pontos fracos. Vou referir alguns:

- Só havia uma única ligação, por estrada, a Gadamael; interdita esta, por acção do In (emboscada no dia 18 MAI 73), Guileje ficou totalmente isolado.

- As outras guarnições mais próximas - Bedanda a Oeste e Aldeia Formosa a Norte, não estavam em condições de prestar qualquer auxílio, porque os respectivos itinerários eram dominados pelo IN e, há muito tempo, não eram utilizados pelas NT.

- Impedido o reabastecimento, por estrada, dependíamos totalmente do que havia em Guileje. Pelo facto de se aproximar a época das chuvas, na qual a estrada para Gadamael ficava intransitável, tinha sido já feito um grande esforço de abastecimento. Mesmo assim, ainda estava em Gadamael (e em Bissau) um grande volume de materiais, necessários para sobreviver durante 6 meses.

- Em virtude das sucessivas flagelações do In (37 em 80 horas), as munições, especialmente de Artilharia e Morteiros (10,7 e 81), estavam a chegar ao fim, não obstante a preocupação de poupar, desde a primeira hora. Quando acabassem, só por acção exterior, não dependente do Comando do COP 5, chegaria a Guileje o respectivo reabastecimento. 

- Relativamente ao material de Artª., o que se passou foi o seguinte: em 24 JAN 73 (3º. dia da minha estadia em Guileje), enviei uma nota para o Grupo de Artª. nº. 7 (GA7) em Bissau, com conhecimento ao Sr. Chefe de Estado Maior do Comando Chefe e à Repartição de Operações, propondo a substituição das 3 Peças de 11,4 cm (as que estavam em Guileje) por 3 Obuses de 14 cm.
A razão desta proposta era o conhecimento que eu tinha da existência de poucas munições de 11,4 e muita dificuldade na sua aquisição. Na proposta sugeria ainda que, mesmo depois de ser efectuada a substituição do material de Artª., se ainda existissem munições de 11,4 em Guileje, se mantivessem as Peças de 11,4, conjuntamente com os Obuses de 14, só regressando aquelas a Bissau, no final da época das chuvas. Desta forma, o aquartelamento ficaria com um reforço de Artª., durante o período de isolamento.

Mesmo em tempo de guerra, a burocracia emperrava tudo. Foi por isso que, em I8 MAI 73, isto é, praticamente passados 3 meses da data da minha proposta, a situação do material de Artª. era: estavam em Guileje 2 Obuses de 14, tendo um deles chegado avariado; o 3º. Obus estava em Gadamael, a aguardar a próxima coluna de reabastecimento. Entretanto, as 3 Peças de 11,4 já tinham saído de Guileje. Quando era necessário o maior apoio de fogo de Artª., estávamos reduzidos a 2 Obuses e um deles avariado.

Como eu não estava sempre em Guileje, porque as guarnições de Gadamael e Cacine também estavam nas minhas preocupações , além das minhas ausências, resultantes de ordem superior ( lembro-me que me desloquei para participar, naquela altura, para participar numa reunião de Comandantes da Zona Sul), não tomei conhecimento da ordem para as Peças de 11,4 regressarem a Bissau (deve ter sido recebida na minha ausência). Se a tivesse recebido, seguramente que não as tinha deixado sair sem, no mínimo, terem chegado a Guileje os 3 Obuses de 14.

Além de o apoio de Artª. estar diminuído, em número de bocas de fogo, a sua eficiência era muito menor. Devido à orografia do terreno da Guiné, com poucas elevações, a regulação do tiro de Artª. só era eficaz quando feita por observação aérea. Enquanto que o tiro das Peças de 11,4 tinha sido regulado, em JUN 72, por avião, relativamente aos Obuses de 14 tal procedimento não foi possível, devido à restrição dos meios aéreos.

- Não evacuação de feridos, garantida pelo Sr. General Spínola (a partir do quartel), na sua última visita a Guileje, em 11 MAI 73, perante formatura geral. O Sr. General foi, no mínimo, muito imprudente, ao fazer tal afirmação, porque nessa data, a Força Aérea já tinha decidido que nenhum meio aéreo se deslocava a Guileje (e não me parece aceitável que o Sr. Comandante Chefe não tivesse conhecimento dessa decisão).

Na sequência da emboscada do dia 18 MAI 73, foi pedida a evacuação dos feridos, no pressuposto de que seria satisfeita, conforme se pode constatar no período anterior. O que aconteceu foi que nenhum helicóptero apareceu e, um dos feridos graves (um cabo metropolitano) faleceu, cerca de 4 horas depois. Foi um “grande murro no estômago” para todos nós, ficando a confiança na palavra do Sr. Comandante Chefe fortemente abalada, bem como o moral de todo o pessoal.

Como fica escrito, tinha muito mais que um ponto fraco, (qual era a falta de água potável).

“…a FA garantia apoio pelo fogo de dia, com os “ Fiats” e de noite com um “C-47” modificado, em bombardeamento de área…

Realmente a FA prestava apoio de fogo, através dos Fiat G-9, quando as condições atmosféricas o permitiam. Depois do aparecimento dos mísseis terra-ar Strella do In, os aviões voavam acima dos 3.000 pés, por uma questão de segurança, empregando bombas mais potentes.

Relativamente ao C-47, transcrevo parte do depoimento da testemunha, Sr. Cor. Pil Av. Lemos Ferreira (folhas 106 a 108 do processo):

“…tendo perguntado ao Guileje se necessitava de mais alguma coisa foi-lhe pedido o envio de um avião durante a noite para a zona do Guileje para funcionar como ligação de comunicações, tendo-lhe sido respondido que o que fosse possível fazer se faria;… no próprio momento do pedido de Guileje, entrei em contacto com o Centro de Operações Aero-Tácticas, para que vissem a viabilidade de aprontar um C-47 equipado com flairs iluminantes e granadas de Morteiro 81, tendo sido informado estarem os C-47 indisponíveis por falta de sobressalentes, não havendo qualquer hipótese de pôr um em serviço; esta informação, porém, não foi transmitida ao Guileje.” 

Portanto, mesmo nos assuntos respeitantes à Força Aérea, o Sr. Ten. Cor. está mal informado! O C-47 nocturno foi uma miragem.

 “Que o PAIGC estava ainda longe de querer assaltar a povoação, já que só deu pela evacuação três dias depois (entrando quase todos em coma alcoólico depois de esgotado o stock de bebidas existente…).”

Em virtude de o 3º. Corpo de Exército (CE) do PAIGC se encontrar na mata de MEJO (mensagem IMEDIATO, - 19H00horas do dia 20 MAI da REP/INFO), era quase certo que no dia 22MAI completasse o cerco ao quartel, desse lado. Aliás, na tarde do dia 21, já tinha actuado, flagelando elementos da população que tinham tentado reabastecer-se de água na bolanha, junto ao aquartelamento, tendo sido metralhados pelo avião pilotado pelo Sr. Cor. Lemos Ferreira.

No Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 MAR 2008), um elemento daquele CE, informou que, no dia 22 MAI, de manhã, veio fazer reconhecimento junto do quartel (já tínhamos retirado), o que confirma o que afirmei no parágrafo anterior.

A razão por que só deu pela evacuação três dias depois, só o PAIGC pode esclarecer. Seguramente, porque foi surpreendido.

Quando cheguei a Gadamael, comandando a retirada, já lá se encontrava o Sr. Cor Durão, que enviou uma mensagem RELÂMPAGO, às 12H15 para o Comando Chefe a comunicar o que tinha acontecido. Esta mensagem, terminava assim:

“…QUANDO CHEGADA GADAMAEL PORTO FACE DESTRUIÇÕES HAVIDAS VERIFICO SER IMPOSSÍVEL REOCUPAÇÂO TEMPOS PRÓXIMOS”.

Às 13H05, seguiu outra mensagem:

“ REF M/… 221215… SUGIRO DESTRUIÇÃO COMPLEMENTAR GUILEJE POR MEIOS AÉREOS”.

A resposta foi a seguinte (às 18H40):

“REF..SEXA JULGA PREMATURO BOMBARDEAR GUILEJE COAT EXECUTA BOMBARDEAMENTO AREA CIRCUNDANTE…”

Não consegui obter, no Estado Maior da Força Aérea (Arquivo Histórico), elementos relativos a este bombardeamento, determinado pelo Sr. Comandante Chefe.

Também não tenho nenhuma informação sobre a vigilância sobre Guileje, até o PAIGC lá entrar; esta deveria ter sido determinada, em minha opinião, por motivos óbvios; se não foi, é mais um erro grave, como igualmente foi a decisão de não bombardear Guileje, a não ser que o Sr. Comandante Chefe tivesse a intenção de determinar a reocupação, o que não se verificou.

Talvez o Sr. General Pil. Av. (Ref) da Força Aérea António Martins de Matos, que na altura era Tenente Pil. Av. na Base Aérea de Bissau, possa responder às seguintes perguntas:

- Qual foi o bombardeamento efectuado sobre a área circundante de Guileje, no período 22/25 MAI 73, determinado pelo Sr. Comandante Chefe.

- Qual a vigilância da Força Aérea sobre Guileje, no mesmo período, no sentido de detectar o momento em que se verificasse a entrada do PAIGC, que seria uma oportunidade ímpar para provocar ao In baixas incontroláveis. Isto no caso de aquela vigilância ter sido determinada.

- Em sua opinião, qual foi a razão por que não foi detectada a entrada do PAIGC, em Guileje, no dia 25 MAI 73. Se tivesse sido detectada, também não teria havido o “coma alcoólico”, referido pelo Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira.

“…e escreveu um livro com a sua versão dos eventos…”

Não Sr. Ten. Cor., o meu livro não é a minha “versão dos eventos”, mas tão só A VERDADE DOS FACTOS, que é o subtítulo do livro, e “contra factos não há argumentos”. Não conheço nenhuma versão ou factos diferentes e, se alguém tem esse conhecimento, é a altura própria de tornar público o  que sabem sobre este assunto.

Para terminar este comentário, que já vai longo e que, mesmo assim, não aborda todas as questões postas pelo Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira (posso voltar ao assunto se o Sr. Ten. Cor. não ficou devidamente dilucidado), quero afirmar o seguinte:

Não me considero louco nem inconsciente. Por isso, ao tomar a decisão de retirar de Guileje, nas circunstâncias conhecidas, sabendo que não teria aceitação do Comando Superior e que iria sofrer as respectivas consequências, entre as quais, se não tivesse acontecido o 25 de Abril de 1974 (25/4 para o Sr. Ten. Cor.), teria sido o meu julgamento e, cumprida a pena máxima, a minha exclusão do Exército, teria que haver uma situação muito grave, para não hesitar na decisão que adoptei. Esta era o perigo iminente de, tanto a guarnição militar quanto a população, sofrer mortos e feridos em número incalculável e, os que restassem, serem feitos prisioneiros pelo PAIGC e posteriormente expostos à comunicação social em Conacri.

E, para mim, a segurança de todos, que era a minha missão e a vida humana não têm preço.

Foi por isso que não hesitei, sabendo o que me esperava, abdicando do interesse pessoal que, naquelas circunstâncias, não tinha a mínima relevância.

Para quem achar este cenário exagerado, terá oportunidade de verificar, na 2ª. Parte do comentário ao artigo em análise que, entidades do Escalão Superior, fizeram a mesma previsão.

A enorme diferença entre o Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira e a minha pessoa, relativamente a Guileje, é que eu estava lá e o Sr. Ten. Cor. conhece Guileje do mapa; ao ter visto este, “junto à fronteira”, das duas uma: ou precisa de mudar de lentes, se usa óculos ou então terá que procurar Guileje num mapa em que a sua localização esteja correcta, por exemplo a carta militar de escala 1/50.000. [, disponível aqui, neste blogue].

Cumprimentos 
Alexandre da Costa Coutinho e Lima 
Cor. de Artª. Ref. 
Ex Comandante do COP 5, em GUILEJE
____________

Nota do editor

Vd. poste anterior de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13804: (Ex)citações (243): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (1) (Coutinho e Lima)

Guiné 63/74 - P13807: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte II) (Luís Graça)... Relembrando aqui o papel do Instituto de Malariologia e do prof Francisco Cambournac (1903-1994), um português do mundo, que foi diretor da OMS - África, entre 1954 e 1964










Reprodução de um precioso folheto da DGS - Direção Geral de Saúide, do ínício dos anos 70, guardado pelo nosso camarada António Tavares [ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912,Galomaro, 1970/72]... 


Repare-se no averbamento, na capa, do nº do processo individual (155/4/72) do António Tavares,  na subdelegação de saúde de Gondomar, nos Serviços de Higiene Rural e Defesa Anti-Sezonática (sic), criados em 1938...

Em março de 1972, o Tavares regressou da Guiné e em abril terá tido uma crise aguda de paludismo, o que o levou a consultar aqueles serviços de saúde (*). Vou mandar uma cópia para o Museu da Saúde do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que são meus vizinhos e amigos.

Um outro pormenor interessante é a correspondência em língua francesa, a vermelho, das expressões "Defesa anti-sezonática" ("Servives antipaludiques", serviços antipalúdicos) e "Assistência aos Imigrantes" ("Vigilance antiparasitaire",  vigilância antiparasitária). (LG).

Fotos ©: António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Regiões onde se produz arroz, em particular na  bacia hidrográfica do Sado e do Tejo, como o vale do Sado (Alcácer do Sal), no Alentejo, ou o Vale do Sorraio (Corucbe), já no Ribatejo,  sempre foram muito palúdicas, e como tal pouco propícias  à fixação de populações. Daí o recurso à mão de obra escrava, africana, que se adaptava melhor melhor às águas estagnadas, à dureza das condições  do trabalho nos campos de arroz, e que sobretudo resistia melhor às picadas da Anapholes e às temíveis sezões.

O que é feito destes africanos ? Misturaram-se na população, sendo o fenótipo africano ainda hoje visível nas populações sobretudo da Ribeira do Sado. Atente-se na letra  de uma canção, do cancioneiro popular de Alcácer do Sal, que é também uma homenagem, inesperada, às... bajudas da Guiné que por cá ficaram na leva dos escravos...

(...) Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão. (..:)


Serve este preâmbulo para se falar do paludismo (ou , melhor, sezonismo) (*), endémico em Portugal, até tarde (para lá de meados do séc. XX) e fazer aqui uma homenagem à saúde pública e a um homem que foi o primeiro diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (, morreu em 1994, mas não o cheguei a conhecer pessoalmente). E, além disso, diretor da OMS- África (1954-1964)... Quem já tinha ouvido falar dele ? É um português ilustre que merece ser aqui recordado, sobretudo pelo seu contributo para a erradicação da malária em Portugal e em África.

2. O Instituto de Malariologia e o papel pioneiro do prof Francisco Cambournac (Sintra, Rio de Mouro, 26/12/1903 - Lisboa, 8/6/1994)

Eis um bre ve resumo do seu currículo profissional:

(i) Médico epidemiologista e tropicalista, Francisco José Carrasqueiro Cambournac (1903-1994) destacou-se sobretudo no campo da malariologia, área em que deu um grande contributo à medicina portuguesa e á saúde pública; formou-se em medicina em 1929;

(ii) foi membro-fundador e diretor do Instituto de Malariologia de Águas de Moura (1939-1954), sito do concelho de Palmela;

(iii) esteve nas colónias portugueses nos anos 40 em várias missões médicas; foi também  director da OMS África  (Organização Mundial da Saúde para a região africana),  durante dez anos, entre 1954 e 1964;

(iv) recebeu, em 1978, o Prémio Léon Bernard (, prémio esse que foi criada, em 1937, pela antiga Sociedade das Nações Unidas para premiar trabalhos no domínio da Saúde Pública); em reconhecimento pela sua vida e obra dedicada à medicina tropical, com mais de 170 ensaios sobre epidemiologia, parasitologia, entomologia, saúde pública, nutrição, saúde educacional, malária, doença do sono, febre amarela, entre outras áreas;

(v) começou, em 1931,  a sua carreira no campo da medicina tropical, em geral, e da mariologia, em particular,  médico auxiliar da Estação Experimental de Combate ao Sezonismo de Benavente; posteriormente daria seguimento aos seus trabalhos na Estação Anti-sezonática de Alcácer do Sal;

(vi) Em 1933, como director do laboratório instalado na Estação de Benavente, Cambournac participou no Inquérito para determinação das zonas de endemia sezonática, suas características e estabelecimento de um plano de combate que a Direcção-Geral da Saúde (DGS)  em colaboração com a Fundação Rockefeller realizou em todo o continente português;

(vii)  e convidado a  ingressar na Fundação como dirtor de campo de uma unidade de investigação sobre sezonismo que se previa criar em Portugal, tendo a partir de Março de 1934 iniciado os seus estudos na «Estação para o Estudo do Sezonismo», acabada de fundar pela Fundação Rockeller   em Águas de Moura;

(viii) em 1937, é responsável pela fiscalização sanitária das obras a cargo da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola; a  sua actividade fica ligada sobretudo à defesa e profilaxia anti-malárica;

(ix) integra, ainda em 1937,  a comissão responsável pela elaboração das bases para a nova Lei sobre a cultura do arroz, onde colaborou no estudo de todas as regiões orizícolas de Portugal numa perspectiva higiénico-sanitário e agrícola;

(x) presentou as bases para a organização dos Serviços Anti-Sezonáticos (posteriormente criados sob a direcção de Fausto Landeiro) e pronuncia-se sobre o diploma que regulava a cultura do arroz sob o aspecto higiénico-sanitário;

(xi) em 1938 representa Portugal no III Congresso de Medicina Tropical e Malária, que teve lugar em Amesterdão;

(xii) ainda em 1938,  a Fundação Rockefeller (, a conhecida ONG norte-americana, criada em 193 pelo magnata do petróleo John Rockefeller),  em colaboração com a DGS,  constroi em Águas de Moura o Instituto de Malariologia, para substituição da Estação para o Estudo do Sezonismo; a nova institituição dedicada à investigação e ao ensino da malariologia, é dirigida por Roll Hill, tendo Cambournac como  diretor adjunto;

(xiii) em dezembro de 1939, é nomeado diretor do Instituto de Malariologia, pela Fundação e por despacho do Ministro do Interior (que tutelava a área da saúde), alcançando assim um lugar de prestígio no âmbito da investigação e do ensino da malariologia.

(xiv) é no novo Instituto que se realizam numerosos estudos sobre a distribuição dos Anopheles (, os mosquitos vectores da malária, ) e da endemia sezonática em todo o país, bem como estudos sobre a epidemiologia da malária, os quais contribuíram para a erradicação da malária em Portugal;

(xv) é sobretudo a a partir do trabalho de Francisco Cambournac publicado em 1942, sobre a epidemiologia no sezonismo em Portugal, que se desenhou o plano da campanha anti-malárica que levou à erradicação da doença;

(xvi) o seu  nome está  igualmente ligado à erradicação do paludismo em Cabo Verde; (também, ia comn frequência à Guiné-Bissau, segundo o testemunho de Francisco George que com ele privou);

(xvii) ainda no campo das doenças infecciosas, Cambournac efectuou estudos sobre a epidemiologia da febre amarela, da oncocercose, da cólera, e de uma maneira geral das grandes endemias tropicais (de que é exemplo a criação e direção da Missão de Prospecção de Endemias em Angola, posteriormente transformada em Instituto de Investigação Médica);

(xviii) é nomeado, por convite, como primeiro consultor da OMS para o continente africano, tendo sido responsável pela primeira conferência que a OMS realizou em África, em 1950;

(xix) nessa qualidade, prepara o primeiro relatório da OMS sobre o paludismo no continente africano (" Le Paludisme en Afrique Equatoriale") [, versão em inglês, disponível aqui];

(xx) em 1946, representa Portugal na Conferência Internacional de Saúde realizada em Nova Iorque pela Organização das Nações Unidas (ONU);

(xxi) é o o primeiro português a participar numa reunião da ONU e tem um papel ativo na criação da OMS (1948);

(xxii) a partir de 1954, e durante 10 anos, exerceu o cargo de diretor regional da OMS para África;

(xxiii) em 1942, iniciou funções no Instituto de Medicina Tropical, como professor auxiliar da cadeira Higiene, Climatologia e Geografia Médica; passa a ser professor titular da cadeira em 1944;

(xxiv) em 1964, é nomeado director do Instituto de Medicina Tropical;

(xxv) presidiu à comissão responsável pela organização da Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical, que dirigiu entre 1967 e 1972.


Fonte: Adapt com a devida vénia de INSA > Quem somos > Francisco Cambournac


Francisco Cambournac (1903-1994)
3. Ver aqui o testemunho do Francisco George (n. 1947, atual diretor.geral de saúde,  ele próprio funcionário da OMS, entre 1980 e 1991, tendo estado na Guiné em 1986 em representação da OMS), sobre este médico português que conseguiu ser, por mérito próprio,  diretor da OMS - África, numa época (1954-1964) de grande hostilidade para com Portugal e a sua "política ultramarina":

(...) Infelizmente, Francisco Cambournac não era muito conhecido em Portugal. Fenómeno quase incompreensível quando comparado com a notoriedade que outros colegas seus adquiriram na mesma época. Um dia, a título de justificação, sua Filha, Graça Cambournac, explicou-me que Salazar não gostava dele porque os princípios que guiaram a sua acção como Director em África eram distantes da política colonial do regime. Aliás, a segunda vez que Cambournac foi eleito para director regional da OMS (sublinho eleito pelos países africanos) recebeu os votos dos novos Estados que recentemente tinham conquistado a independência. (..,)

(...) "Uma outra altura, ao jantar, também em Bissau, Cambournac contou-me que a seguir à II Grande Guerra, logo depois da Organização Mundial da Saúde ter sido criada em 1948, foi incumbido de preparar um relatório para propor uma capital Africana para acolher a instalação da sede regional da OMS. Descrevia com detalhe e com visível orgulho esta sua missão. No final das visitas efectuadas, apontou Brazzaville, no antigo Congo Francês, porque concluiu que era a cidade com padrão de vida mais humanista onde não existiam sinais chocantes de apartheid, ao contrário, por exemplo, de outras grandes cidades anglófonas como Nairobi. O seu relatório foi decisivo na opção de Brazzaville. A Sede foi, então, instalada no alto de uma colina nos arredores da cidade, no Haut de Joué. As antigas casas que tinham sido projectadas para residência dos engenheiros da barragem que ali os franceses construíram, foram adequadamente adaptadas e aproveitadas. Ainda bem que assim aconteceu, não só pelas boas infra-estruturas, mas, sobretudo, pela vista panorâmica deslumbrante sobre os rápidos do imenso rio Congo".(...)

_____________

Nota do editor:

(*) Vd. I Parte do psote > 27 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 . P13804: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte I) (Luís Graça)

Vd. também Mónica Saavedra, « Malária, mosquitos e ruralidade no Portugal do século XX », Etnográfica [Online], vol. 17 (1) | 2013, posto online no dia 13 Março 2013, consultado no dia 27 Outubro 2014. URL : http://etnografica.revues.org/2545 ; DOI : 10.4000/etnografica.2545

(...) Este artigo centra-se nas memórias de antigos trabalhadores rurais sobre “ter malária”. Parte-se das descrições da experiência física da doença e sua relação com as práticas quotidianas, particularmente as relacionadas com o trabalho, para uma análise sobre multiplicidade e complexidade das definições da malária. Pretende-se realçar a dimensão sociopolítica desta doença, subjacente às memórias recolhidas, bem como o caráter circunstancial, adaptável e pragmático das práticas envolvidas.(...)

(...) Este artigo é parte de uma tese de doutoramento (Saavedra 2010).

(...) O termo “sezões” era, até ao desaparecimento da malária em Portugal, na segunda metade do século XX, a designação popular para esta doença.

(...) A designação “antissezonáticos”, oficialmente atribuída aos serviços dedicados ao tratamento e controlo da malária, resultou da palavra “sezonismo”, adotada por Ricardo Jorge, cerca de 1903, como a melhor para nomear a malária (IGSS 1903) (...)

Guiné 63/74 - P13806: Notas de leitura (645): “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, organizadores Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Temos aqui uma visão sequencial do desenvolvimento urbano de Luanda e Lourenço Marques, mas os olhares dos historiadores, sociólogos e antropólogos convocados nesta publicação vão do antes ao depois, há um estudo interessantíssimo sobre o que se passou no norte de Angola a seguir aos acontecimentos de 1961, quando se tratou do planeamento urbanístico para os milhares de foragidos que entretanto regressaram; e há a Lisboa dos anos 1940 e 1950 e 1960, A Casa dos Estudantes do Império, o impacto da cidade nesses africanos já tocados pela ideia independentista e pan-africana; e o depois do termo do império, o modo como os guineenses procuraram vínculos de pertença na área metropolitana de Lisboa.
Muito interessante.

Um abraço do
Mário


As cidades do Império Português e depois

Beja Santos

O livro intitula-se “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, os organizadores são Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70, 2013. Reúne estudos de historiadores, antropólogos, especialistas em estudos pós-coloniais e outros cientistas sociais. Os organizadores explicam o objetivo da obra: “O estudo do urbano permite identificar o modo como a dinâmica de urbanização colonial e pós-colonial no espaço português se integra num conjunto de tendências que acompanha o sistema-mundial (…) As cidades coloniais constituem-se como centros de administração e de poder colonial e como locais de fluxo e bens e serviços. São importantes locais de transferência da cultural imperial e capitalista moderna para novos espaços. Não obstante, o urbano colonial e pós-colonial governado por Portugal foi e é também um espaço de criação de autonomias, de projetos e resistências, de circulação de pessoas, hábitos, ideias, de apropriação e adoção de práticas e representações”. Em sequência, o autor encontrará o estudo de cidades africanas do colonialismo português, as lógicas do ordenamento do território e da integração social, cidades com um centro europeu ou “civilizado” e uma grande e precária periferia, o típico universo africano. Os organizadores observam que “A influência política de outras potências coloniais, bem como de organizações internacionais, sobre o rumo do colonialismo português, a presença de inúmeros estrangeiros no quadro de decisão institucional económica e política e a influência dos quadros económicos regionais revelam que o colonialismo era um projeto global. As redes urbanas africanas, as que ligavam, por exemplo, Moçambique e Angola à África do Sul, à Rodésia ou ao Congo, criaram autonomias próprias que reproduziam o ritmo do colonialismo internacional”. Mas a experiência imperial teve uma poderosa ressonância no tecido metropolitano, basta pensar nos importantes fluxos migratórios e no pós-colonial emergiu uma cultura nostálgica, há imigrantes cabo-verdianos, angolanos, guineenses e são-tomenses, sobretudo, temos hoje uma cidadania lusófona e nas cidades pós-coloniais replicam-se formas de organização que recordam o sistema colonial urbano. A memória imperial tem mais significado do que muitos pensam, envolve narrativas como o Mosteiro dos Jerónimos, o Padrão dos Descobrimentos, a Expo 98, por exemplo.

Os investigadores que intervêm neste livro asseguram capítulos sobre a presença portuguesa em África no século XX, caso de Luanda e Lourenço Marques; fala-se da reação portuguesa aos levantamentos no Norte de Angola, em 1961, e, como escrevem os organizadores “Dos relatórios políticos e administrativos, emerge uma conceção estatal das populações locais. Enuncia-se a lógica do exercício político que junta a coerção e a violência a técnicas de urbanização, de reordenamento do território e de povoamento”; fala-se de Mueda, no Norte de Moçambique, sobre o que sobrou das antigas cidades da Índia portuguesa no final do século XIX, a partir do olhar de um historiador goês estabelecido em Bombaim. Noutro ângulo, impõe-se olhar para Lisboa onde, a partir da década de 1940, onde se juntou um grupo de estudantes das colónias africanas. Escreve-se o seguinte: “O espaço criado pelo Estado Novo para formar elites coloniais, a Casa dos Estudantes do Império (1944-1965) foi para estudantes, tais como Mário Pinto de Andrade, Alda Espírito Santo, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Noémia de Souza e Amílcar Cabral, o local de maturação de um conjunto de ideias sobre a condição dos seus territórios e populações. A Lisboa triste do salazarismo surgia para estes jovens como uma zona de contacto, um espaço moderno de leituras e partilhas. A geografia da cidade ficou marcada por um conjunto de percursos africanos, de encontros políticos, consumos literários e trocas teóricas que circulavam por cidades europeias: a negritude, o pan-africanismo, o marxismo, o nacionalismo. No coração do Império colonial português, mau grado as diferenças que os separavam – a origem, a cor da pele, a classe social – os estudantes discutiram o futuro do continente africano que dispensava tanto a soberania portuguesa como a dos outros Impérios coloniais”.

E chegamos à Lisboa contemporânea, a partir de 1975 o legado do poder colonial passou a ser manifestamente visível nas pessoas, nos restaurantes, nos novos hábitos, nos alimentos importados. São populações emigrantes que procuram adaptar-se e conquistar o seu lugar na cidade, trazem saberes e procuram avidamente a coesão étnica ou a imisção sem complexos, nasceram barracas, procedeu-se à autoconstrução, organizaram-se guetos, estabeleceram-se ágoras, os guineenses podem ser vistos a qualquer hora do dia no largo de S. Domingos. Bairros degradados tornaram-se nos espaços de acolhimento desses novos migrantes.

Enfim, o leitor parte pelas construções coloniais, visita as casas angolanas e aprecia a atitude colonizadora em diferentes regiões, pode comparar com as habitações destinadas aos funcionários coloniais, apreciar a evolução da arquitetura angolana; segue-se Lourenço Marques, também uma cidade segregada com os seus organismos e o seu sistema de coerção; os acontecimentos de 1961, no Norte de Angola, dão azo a perceber como o regime se viu obrigado a criar novos mecanismos de controlo da vida social indígena, assistia-se ao retorno inesperado de milhares de africanos “das matas”, havia que estabelecer uma nova política habitacional e de vigilância. O leitor não ficará insensível à visita ao Império Português da Índia na segunda metade do século XIX, é uma viagem espantosa, a que nos proporciona o goês Gerson da Cunha. Lisboa, ao tempo da Casa dos Estudantes do Império, é um local de encontros que irão preparar as lutas de libertação, aqui se adquiriu consciência de que estavam a germinar sonhos nacionais e afiliações transnacionais, dois nomes sonantes do independentismo, Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral, aparecem por Lisboa, aqui debatem com os outros a luta que os espera. E daqui partem para outros lugares: Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos irão até Paris, Lúcio Lara e Viriato da Cruz até a Alemanha, Cabral circulará por Londres, irá até ao Norte de África e daqui partirá para Conacri, todos estes dirigentes se irão encontrar temporariamente em Argel, Rabat, Cairo, Adis-Abeba, Tunes, Acra ou Dar es Salam. E chegada a independência, cresceu a diáspora, o leitor irá encontrar várias ideias de África em Lisboa, por exemplo, vivências habitacionais como em tabancas, surgirá o fenómeno da “barraca pós-colonial”. Está concluído o ciclo à volta da cidade como objeto de investigação desde as sociedades coloniais até ao desabamento nas metrópoles em contextos pós-coloniais. Um estudo profundo, original, que seguramente catapultará novos estudos. Magistralmente organizado e de uma inegável polivalência para os estudos sobre o Império português e o depois.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13793: Notas de leitura (644): "O Mundo em AZERT - cadernos de um repórter”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13805: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte I) (Luís Graça)


Portugal > Direção-Geral de Saúde > Instituto de Mariologia > Cartaz nº 1

Portugal > Direção-Geral de Saúde > Instituto de Mariologia > Cartaz nº 2


Dois cartazes da Direção  Geral de Saúde, dos anos 40, 
que integravam uma campanha de luta contra o sezonismo (ou malária).

Fonte: Cortesia de  © INSA > Museu da Saúde (2014)  [Edição: LG]



Estação para o Estudo do Sezonismo, Águas de Moura, Palmela, anos 1930

Fonte: Cortesia de © INSA > Museu da Saúde (2014) [Edição de LG]


1. O paludismo, a malária ou o sezonismo eram endémicos em Portugal até aos anos 60, nomeadamente na regiões onde se cultivava o arroz, do Mondego até ao sul ... Não era uma doença estritamente tropical!... Hoje está erradicada em Portugal  (bem como no sul da Europa) mas, com as alterações climáticas a nível mundial, nada nos garante que não venha a ser, outra vez, um problema de saúde pública, daqui a algumas décadas...

Num  artigo meu, de 1999, sobre a História da Saúde e Segurança no Trabalho: 1.2. O Embrionário Desenvolvimento da Saúde Pública no Portugal Oitocentista [, disponível aqui, n aminha página profissional, Saúde e Trabalho, ] escrevi o seguinte:

(...) Menos mortíferas, mas com efeitos igualmente nefastos no nível de saúde das populações, eram as febres intermitentes (ou sezonismo), geralmente associadas à malária ou paludismo, nas regiões onde se praticava a cultura do arroz (bacias hidrográficas do Mondego, do Tejo, do Sado, vale do Sorraia, etc.) bem como ao tráfico de escravos africanos.

Em 1851, J. F. Henriques Nogueira escrevia sobre este mal endémico o seguinte: "Quem há que não conheça os estragos que em mais de metade do nosso país produzem as febres intermitentes ou sezões ? Povoações temos onde na queda do Estio só aparecem rostos magros e macilentos, e pobres doentes, embrulhados em mantas e estirados ao sol (...).

"Dê-se água de boa qualidade às povoações sequiosas, e onde a não houver filtre-se cuidadosamente. Encanem-se os rios; sangrem-se os charcos e pauis: cubra-se de arvoredo o terreno, que se enxugar - e por este modo, com que bastante lucra a agricultura, ter-se-á convertido em salubre, ou incomparavelmente menos doentia uma localidade sezonática" (In: Estudos sobre a Reforma em Portugal, 1851) (...)


Em conclusão: o termo sezonático já era usado, em 1851. E em 1903 há uma referência explícita ao "sezonismo" como matéria ensinada no curso de medicina sanitária, criado em 1903, no ãmbito da reforma da saúde pública em Portugal (1899-1901), liderada por Ricardo Jorge.(1858-1939).

2. Vejamos o que dizem os dicionários:
sezonismo | s. m.

s e·zo·nis·mo (sezão + -ismo) > substantivo masculino  > Doença infecciosa causada por parasitas do sangue do género Plasmodium, transmitida ao homem pelo mosquito anófele, que se manifesta geralmente por sezões. = IMPALUDISMO, MALÁRIA, PALUDISMO

"sezonismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/sezonismo [consultado em 26-10-2014].


Sezão | s. f.

se·zão  > substantivo feminino > Acesso de febre, intermitente ou periódica, precedido de frio e de calafrios.Confrontar: sazão.

"sezão", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/sez%C3%A3o [consultado em 26-10-2014].



Capa de um precioso folheto da DGS - Direção Geral de Saúide, do ínício dos anos 70, guardado pelo nosso camarada António Tavares [ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912,Galomaro, 1970/72]... O seu processo na subdelegação de saúde de Gondomar, nos Serviços de Higiene Rural e Defesa Anti-Sezonática (sic) era o nº 155/4/72.  Em março de 1972,  o Tavares regressou da Guiné e em abril teve paludismo, o que o levou a consultar aqueles serviços de saúde (*).

3. O termo sezonismo  é usado pelo legislador, em vez de malária ou paludismo, até aos anos 60:

Portaria n.º 18143 

[ Reproduzido, com a devida vénia, do sítio Legislação.org]

Diário da República > Ministério da Saúde e Assistência
Quarta-feira 21 de Dezembro de 1960
294/60 SÉRIE I ( páginas 2798 a 2798 )

TEXTO :

Portaria n.º 18143
Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro da Saúde e Assistência, aprovar, em seguimento da proposta da Direcção-Geral de Saúde, nos termos do n.º 1 da base IX da Lei n.º 2036, de 9 de Agosto de 1949, e depois de ouvido o Conselho Superior de Higiene e Assistência Social, a seguinte tabela das doenças contagiosas de declaração obrigatória:

1 - Ancilostomíase.
2 - Bilharzíase.
3 - Brucelose (febre ondulante).
4 - Carbúnculo.
5 - Cólera.
6 - Difteria.
7 - Disenterias bacilar e amebiana.
8 - Encefalite infecciosa aguda.
9 - Escarlatina.
10 - Espiroquetose ictero-hemorrágica.
11 - Febre-amarela.
12 - Febres recorrentes.
13 - Febres tifóides e paratifóides.
14 - Hepatite epidémica.
15 - Kala-azar.
16 - Lepra.
17 - Meningite cerebrospinal.
18 - Peste.
19 - Poliomielite.
20 - Psitacose humana.
21 - Raiva.
22 - Sezonismo.
23 - Sodoku.
24 - Tétano.
25 - Tifo exantemático e outras ricketsioses.
26 - Tosse convulsa.
27 - Tracoma.
28 - Tuberculose do aparelho respiratório e outras formas de tuberculose.
29 - Varíola (ou variolóide) e alastrim.
30 - Doenças venéreas em período de contágio: sífilis, blenorragia, cancro mole, linfogranuloma (doenças de Nicolas-Favre).

A presente tabela entrará em vigor em 1 de Janeiro de 1961 e substitui a que foi publicada pela Portaria n.º 16523, de 27 de Dezembro de 1957. A declaração é obrigatória tanto em casos de doença como nos casos de óbito.

Ministério da Saúde e Assistência, 21 de Dezembro de 1960. - O Ministro da Saúde e Assistência, Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho.

4. Cartazes da Direção-Geral da Saúde [, DGS,] , início da década de 1940

Dimensões: A. 80,50 cm x L. 60,50 [Vd., as duas primeiras imagens acima]

O Instituto de Malariologia [. criado em 1938, em Águas de Moura, a que ficará para sempre ligado o nome do prof Francisco Cambournac, 1903-1998]  empreendeu várias estratégias para proteção das populações, entre as quais se destacam o tratamento e a profilaxia medicamentosa, o combate ao mosquito Anopheles e as campanhas de sensibilização para prevenção da doença.

A proteção dos núcleos habitacionais foi outra das medidas adotadas, e que se refletiu na aplicação de redes nas portas e janelas bem como na colocação de portais na entrada das casas, com guarda-vento e porta de rede metálica de um milímetro. A estas medidas juntou-se o tratamento dos domicílios com inseticida, verificando-se que eram raros os Anopheles encontrados no interior dessas casas e, consequentemente, o número de casos de malária diminuía.

O cartaz [nº 2]  apresenta uma mulher em primeiro plano, com indumentária rural e, em segundo plano, um berço com criança deitada, protegida por uma rede mosquiteira imprópria, pelo que ambos se mostram doentes.

O cartaz [nº 1]  por seu turno, mostra uma mulher, de perfil, com ar saudável e alegre com junto de um berço com criança deitada, protegida por uma rede mosquiteira em boas condições.

Com estes cartazes, a DGS pretendia transmitir uma mensagem simples, mas eficaz, que alertava para a necessidade de proteção das crianças, neste caso através da aplicação de mosquiteiros nos berços.
Os cartazes foram encomendados pela Direção-Geral da Saúde a um artista plástico no início dos anos de 1940, os quais apresentavam as normas recomendadas de colocação de redes mosquiteiras nos lares e o uso de repelentes.

Estes cartazes integram a coleção da Malária, dedicada ao papel Instituto de Malariologia no estudo, combate e tratamento da Malária.

Fonte: Adaptado com a devida vénia do sítio do  Instituto Nacionald e Saúde Doutor  Ricardo Jorge > Museu da Saúde > (#071) PEÇA DO MÊS - JUNHO 2014

(Continua)
______________

Nota do editor:

Vd. último poste relacionado com o tema do paludismo:  26 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13803: A propósito de paludismo... Quando dispensava de saídas difíceis e quando até atacava na metrópole (Abel Santos / António Tavares)


Guiné 63/74 - P13804: (Ex)citações (243): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (1) (Coutinho e Lima)

1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), com data de 22 de Outubro de 2014:

Assunto: Artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino", do Sr. TC Brandão Ferreira (BF)

Caro Amigo
Junto envio um comentário sobre o artigo em epígrafe.
As razões por que escrevi este comentário são porque me assiste o direito de resposta e porque "quem não se sente não é filho de boa gente" e eu prezo muito a memória dos meus pais.
Embora o artigo em questão tenha sido publicado no blogue do Sr. TC BF, considero mais adequada a publicação do meu comentário no nosso, para assim todos os tabanqueiros dele tomarem conhecimento.

Um abraço amigo
Coutinho e Lima


************

2. Nota prévia do editor

A retirada do Guileje está mais que debatida, aqui no nosso Blogue e não só, mas não queremos privar o Cor Coutinho e Lima do direito de resposta, utilizando um meio semelhante àquele onde foi publicado o artigo em causa.

Para contextualizar a resposta, o artigo pode ser lido no Blogue O Adamastor.
O comentário do camarada Coutinho e Lima, por ser algo extenso, vai ser publicado em duas partes. CV

************

1.ª Parte do Comentário ao artigo
"Guiné, Guileje e o desnorte do reino" (1)

Há umas semanas, fazendo uma pesquisa no Google, sob a rubrica “retirada de Guileje – comentários”, encontrei um artigo, com o título referido acima, da autoria do Sr. Ten. Cor. Pil Av. (Ref.) Brandão Ferreira, com data de 22 JUN 2013, publicado no seu blogue Novo Adamastor. Neste, o Autor apresenta-se como Comandante de Linha Aérea e Mestre em Estratégia.

Antes de entrar na análise do artigo indicado, importa referir que o Sr. Ten. Cor. nasceu em Setembro de 1973; por esse facto, na data de 25 de Abril de 1974 (referido, na sua escrita, como “21/4”, o que, só por si, tem o seu significado), tinha 20 anos, estando portanto no início da sua vida militar. Por esta razão, não pôde participar na guerra – Angola, Guiné e Moçambique; em consequência, a sua experiência nestas guerras é igual a ZERO. Não obstante este facto, não se coíbe de fazer afirmações sobre a nossa guerra em África, como se tratasse de um catedrático na matéria, com longa experiência no campo de batalha. Talvez o Curso de Comandante de Linha Aérea e o Mestrado em Estratégia o tenham habilitado com as ferramentas necessárias para perorar sobre assuntos que desconhece.
“Presunção e água benta cada qual toma a que quer”.

No que diz respeito a experiência de guerra, devo informar que cumpri 3 comissões, por imposição, na Guiné: a 1ª. (63/65), comandando a Companhia de Artilharia 494 (CART 494), que esteve em Ganjola (Norte de Catió), desde Setembro a Dezembro de 1963; em Gadamael, com um destacamento em Ganturé, desde Dezembro de 1963 até Maio de 1965; todas estas localidades, foram ocupadas pela primeira vez, pela CART 494. Além da missão prioritária, que era a actividade de contra-subversão, contra um inimigo bastante aguerrido, a Companhia teve que construir 3 aquartelamentos, partindo praticamente do zero.

 Na 2.ª Comissão (68/70), fui colocado no Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné, em Bissau. Não se pense que esta colocação foi consequência de alguma “cunha”; na verdade estava habilitado com o Curso de Observador Aéreo de Artilharia (COAA), frequentado em Vendas Novas e Tancos, em 1958; o COAA era especialidade de mobilização (já o era em 63), razão pela qual tive esta colocação. Refiro que o Sr. Comandante Chefe era, durante toda esta Comissão, o Sr. General António de Spínola.

Na 3.ª Comissão (72/74), com o posto de Major, fui mobilizado, em rendição individual, de novo para a Guiné; de SET a DEZ 72, prestei serviço no Centro de Instrução Militar (CIM) em Bolama; de JAN a MAI 73, fui Comandante do Comando Operacional nº. 5 (COP 5), em Guileje; de MAI 73 a MAI 74, estive na situação preventiva, em Bissau, como consequência de ter decidido efectuar a Retirada de Guileje. Regressei a Lisboa, em 12 MAI 74.

Portanto, comparando a minha experiência de combate e a do Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira estamos conversados.

Depois de ler o artigo do Sr. Ten. Cor., que contem algumas, poucas, afirmações verdadeiras, tem, porém, muitas mentiras, imprecisões e omissões, fica claro que o articulista não conhece, verdadeiramente, o que se passou e, presumo que não leu o meu livro “A Retirada de Guileje”, pois se o tivesse feito, não dizia tantas asneiras.
Felizmente que, depois do 25 de Abril de 1974, há liberdade de expressão e, em consequência, também há liberdade para a ASNEIRA.

Vou agora analisar o conteúdo do artigo em causa, nesta 1.ª Parte apenas no que respeita à retirada de Guileje; na 2.ª Parte abordarei os aspectos relativos a Guidage e Gadamael, assim como referirei documentos relacionados com a guerra dos 3 G – Guidage, Guileje e Gadamael.

Começo com a seguinte referência:

“…e ao mito que se veio a criar que a guerra na Guiné estava perdida…”

Sobre este “mito”, reporto-me ao livro MARECHAL COSTA GOMES – No centro da tempestade, da autoria de LUIS NUNO RODRIGUES (pág. 101 a 103), referindo uma viagem, em JUN 73 à Guiné:

“… A posição de Costa Gomes relativamente à situação no teatro de operações da Guiné era bastante clara. Na sua opinião, o “desenvolvimento da manobra em curso” e a “manutenção do actual dispositivo” só seria possível mediante a “disponibilidade de volumosos meios adicionais que permitissem o reforço adequado das guarnições de fronteira”. Nisso concordava com Spínola. No entanto, nas condições existentes em Portugal, tanto humanas como materiais, a Guiné não poderia contar com o “reforço adequado de meios por absoluta impossibilidade de os fornecer actualmente”. A solução, sob o ponto de vista militar, passaria pela “adopção de uma manobra visando o encurtamento de área efectivamente ocupada, evitando-se desse modo a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira que se impõe a todo o transe evitar, atentas as repercussões militares e políticas externas e internas”.

De acordo com Costa Gomes, esta modificação do dispositivo implicava a retirada de todas as forças colocadas nas fronteiras para uma zona onde não pudessem ser “vítimas” dos “chamados morteiros de 120”, uma arma terrível, utilizada pelo PAIGC “com muita facilidade”.

…Na sua opinião, a Guiné era “defensável” caso o dispositivo fosse modificado, retirando para o interior as guarnições militares que estavam a defender as povoações localizadas junto à fronteira. Tudo isto, porém, na condição de o PAIGC não utilizar os Migs que se sabia possuir. 
Deste modo, se o PAIGC viesse a dispor doa aviões Migs poderia bombardear Bissau, “nós perderíamos imediatamente a guerra.”

Relativamente aos meios aéreos de que o PAIGC dispunha nessa altura, transcreve-se o que o  Sr. Chefe da Repartição de Informações do Comandante Chefe afirmou, na Reunião de Comandos, realizada em Bissau, em 15 MAI 73:

“…Para complementar o quadro da evolução do potencial material do In, resta acrescentar, no que se refere a meios aéreos, que o PAIGC dispõe já de 4 aviões ligeiros e aguarda o fornecimento de mais 6 de tipo não revelado, contando já com 28 pilotos…
    
…no quadro do potencial aéreo inimigo, os meios que a REP GUINE pode empenhar e em relação aos quais se refere:

- A recente chegada de 6 pilotos estrangeiros (líbios e argelinos) à REP GUINE para substituir, nos MIG-15 e MIG-17, os pilotos guineanos cuja imperícia se revelou em alguns acidentes.

- A chegada à REP GUINE de 2 helicópteros MI-8 em fins de Abril.

- A promessa da REP GUINE ceder uma pista ao PAIGC para manobra dos seus aviões.”

Pelo que fica escrito, parece que não se tratava propriamente de um “mito”.

Continuando com as afirmações do Sr. Ten. Cor.:

“No meio da ofensiva referida veio a ter destaque, pelas piores razões, o abandono do quartel do quartel e povoação de Guileje, no dia 22 de Maio.
Piores razões, porque marca uma página negra da História Militar Portuguesa, dado que uma guarnição que estanho longe de ser batida, quebrou o dever militar, ao abandonar a sua área de operações sem ordem para o fazer e sem razão que o justificasse. A única que o fez em 13 anos de combate.”

“Pelas piores razões”, é a opinião do Sr. Ten. Cor., mas não é, seguramente, a da esmagadora maioria (com uma única excepção) dos militares que estavam em Guileje, que, para mim, é incomensuravelmente a mais importante.

Felizmente não é o Sr. Ten. Cor. que faz a História Militar Portuguesa e por isso vamos esperar  para ver se os historiadores consideram o facto “uma página negra”.

A guarnição, contrariamente ao articulista afirma (até parece que estava lá…), “estando longe de ser batida”, estava, com toda a certeza, muito próxima de ficar completamente cercada pelo PAIGC (o cerco estaria completo no dia 22 MAI 73).

Não considero que tenha quebrado “o dever militar”, porque, alem de não estar vedada a retirada (só o estaria se a Missão fosse “defesa a todo o custo”, o que não era o caso), esta foi efectuada “sem ordem para o fazer”, pelo facto de o quartel ter ficado privado de qualquer meio de comunicação, porque o centro de comunicações foi totalmente destruído pela flagelação sofrida na tarde do dia 21 MAI 73.

Tenho sérias dúvidas que o abandono de Guileje tenha sido o único; o Sr. Ten. Cor. contradiz-se, quando refere em (1) que em 30/1/73 (enganou-se no ano, pois foi em 74 e não em 73), também foi abandonado Copá; não tenho a certeza se também o quartel de Canquelifá não terá sido também abandonado e em seguida reocupado em 74.

Continuando a análise, afirma o Sr. Ten. Cor:

“Depois de abandonar o serviço activo, escreveu um livro, profere conferências e entra em debates, no sentido de descrever o que se passou, explicar as razões por que tomou a decisão que tomou e insurgindo-se contra o processo de que foi alvo”

Será que só o Sr. Ten. Cor. está autorizado a escrever, proferir conferências e entrar em debates? Continuarei a fazê-lo, quando para isso for solicitado, mesmo com a sua discordância.

Nunca me insurgi contra o processo de que fui alvo (isto é mais uma invenção do Sr. Ten. Cor.), porque sabia que a instauração de um auto de corpo de delito era inevitável.

O que censuro, com a maior veemência, é a maneira, verdadeiramente tendenciosa, como o mesmo processo foi levado a efeito. Sabe-se que o objectivo primário da investigação é o apuramento da verdade; seguramente, não foi esta a preocupação do Sr. Oficial da Polícia Judiciária Militar (PJM) – Sr. Brigadeiro Leitão Marques; não sei se este recebeu algumas orientações específicas para conduzir o processo, nem isso interessa muito. O Sr. Brigadeiro foi o único responsável pela forma como dirigiu a investigação, da qual resultou a intenção deliberada de me acusar.

No processo, podem verificar-se várias anomalias, apontadas no meu livro. Indico algumas:

- Depoimentos contraditórios de duas testemunhas, sobre a destruição dos carros sanitários, sem que o Sr. Oficial da PJM tenha feito qualquer diligência para esclarecer o assunto.

- Não aceitação da procuração em que eu nomeava meus defensores 4 Advogados, Oficiais Milicianos, todos a prestar serviço militar na Guiné, prejudicando assim a minha defesa.

- O interrogatório que o Sr. Brigadeiro Leitão Marques fez à testemunha, Sr. Ten. Cor. Pinto de Almeida, Chefe da Repartição de Operações do Comando Chefe (pág 692 a 697 do processo), em que nem uma pergunta foi feita sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje; todas as perguntas versaram sobre o que ocorrera em Guidage.

Sobre este último assunto escrevi no meu livro:

“Após ter feito a primeira leitura do depoimento do S. Chefe da Repartição, fiquei com dúvidas se teria lido bem. Voltei a ler, com toda a atenção, e fiquei perplexo e estupefacto; na realidade, o caso não era para menos; não é que, tratando-se de um processo sobre a retirada de Guileje, o Sr. Oficial da PJM não formulou nenhuma pergunta acerca do objecto dos autos!

Isto tem um nome, que é DESONESTIDADE INTELECTUAL.”

A testemunha podia, por sua iniciativa, fazer declarações sobre Guileje, mas assim não entendeu.

Não tenho qualquer dúvida, que se tratou de UM VERDADEIRO CONLUIO ENTRE O SR. OFICIAL DA PJM E A TESTEMUNHA, o que considero gravíssimo, especialmente por se ter verificado no Exército Português.

Continuando a análise do artigo, o Sr. Ten. Cor. Afirma:

“ Foram escolhidas pois estavam mesmo junto à fronteira…”

Referia-se a Guidage e Guileje; enquanto que a primeira localidade está mesmo na fronteira, já Guileje dista da dita fronteira, cerca de 8 quilómetros, em linha recta, o que significa que, mais uma vez, não sabe do que estava a falar.

“No meio desta ofensiva séria, foi atacado o aquartelamento de Guileje, no dia 18 de Maio, possivelmente como diversão, para obrigar forças que estavam a auxiliar Guidage.”

A “ofensiva séria” era em Guidage, podendo por isso entender-se que, em Guileje, a “ofensiva era a brincar…”. No mínimo, haja respeito por quem lá estava.

Não admira que o Sr. Ten. Cor. confunda tudo, porque da guerra da Guiné, não percebe nada.

Para seu esclarecimento, devo informá-lo que, pelo chamado “corredor de Guileje”, que vindo da República da Guiné Conacri, passava bem longe do aquartelamento de Guileje, o PAIGC fazia entrar cerca de 60/70% dos abastecimentos, de toda a ordem, para todo o nosso território. Daí a importância atribuída pelo In à nossa presença, o que fez com que preparasse, com muitos meses de antecedência um “ataque com toda a força a Guileje”, na própria expressão do PAIGC.

Não tenho qualquer dúvida que o ataque a Guidage (de acordo com informações recolhidas no Simpósio Internacional de Guileje, em Mar 2008, em Bissau, devia ter início ao mesmo tempo que o ataque a Guileje e só não houve simultaneidade porque, no primeiro caso, foram detectados pelas NT, as comunicações do In, obrigando este a desencadear o ataque mais cedo), era uma manobra de diversão, sendo o ataque a Guileje a acção principal. A intenção do PAIGC era obrigar o Comando Chefe , em Bissau, a socorrer as duas guarnições, tendo que repartir as suas reservas. Para o In, a actuação do Sr. General Spínola não podia ser-lhe mais favorável, ao hipotecar praticamente todas as suas reservas no socorro a Guidage. Mais à frente voltarei a este assunto.

“A guarnição do Comando Operacional 5 sofreu um morto e dois feridos. O Comandante, Major Coutinho e Lima, decidiu ir a Bissau expor a situação. Regressou no dia seguinte e tomou a decisão de abandonar o quartel, levando consigo toda a população para Gadamael- Porto, uma povoação a poucos quilómetros.”

Esta narrativa (como agora se diz) do Sr. Ten. Cor., muito sintética, sobre o que se passou em Guileje, fica muito aquém da realidade, além de incluir várias incorreções e deturpação dos factos. Passo a esclarecer.

As baixas sofridas pelas NT, na emboscada de 18 MAI 73, foram: um morto, sete feridos graves e quatro feridos ligeiros (e não um morto e dois feridos).

Não decidi ir a Bissau, conforme afirma o Sr. Ten. Cor.

Após a emboscada montada pelo In, impedindo, pela primeira vez, a realização da coluna de reabastecimento, tive a noção perfeita de que estávamos perante uma situação grave. Nestas condições, enviei, em 18 MAI 73, às 09H05, uma mensagem RELÂMPAGO (a de maior prioridade, sendo as prioridades seguintes: IMEDIATO, URGENTE e ROTINA), para a REP/OPER, com o seguinte texto:

VIRTUDE FORTE EMBOSCADA COLUNA HOJE SOLICITO VINDA ESTE DELEGADO ESSA DELEGADO COAT”. (COAT = Comando Aero-Táctico da Força Aérea)

Quando enviei esta mensagem, não sabia ainda que a Força Aérea não ia a Guileje, o que vim a verificar depois.

A resposta foi dada, no mesmo dia, às 13H13, com uma mensagem IMEDIATO:

“ REF S/…AGUARDA-SE ENVIO RELIM” (RELIM= Relatório Imediato).

Às15H10, enviei nova mensagem RELÂMPAGO:

“ S/…INFO RELIM INSUFICIENTE. ASSUNTO TRATAR DIZ RESPEITO FALTA APOIOS EFECTIVOS REALIZAÇÃO COLNS FACE POTENCIAL IN. SOLICITO INFORME ESTA VIA QUANDO VÊM DELEGADOS.

Continuando sem resposta da REP/OPER, enviei nova mensagem RELÂMPAGO, às 22H45 desse dia 18MAI:

“M/…SOLICITO RESPOSTA ESTA VIA POIS TENHO POSSIBILIDADE SEGUIR MANHÃ 19 MAI GADAMAEL PORTO.”

Preocupado com a vinda os delegados, enviei em 19 MAI, às 03H50, a mensagem RELÂMPAGO:

CASO HAJA DIFICULDADE VINDA DELEGADOS SOLICITO AUTORIZAÇÃO IDA BISSAU E TRANSPORTE PARTIR GADAMAEL PORTO FIM EXPOR SITUAÇÃO.”

Esta mensagem foi respondida, no mesmo dia, às 11H11 (07H21 depois, o que é um exagero, inadmissível, para responder a uma mensagem RELÂMPAGO):

“ REF S/… DE 19 MAI 73, SITUAÇÃO LOCAL NÃO ACONSELHA SAÍDA DEMORADA DO SECTOR. ESTE TENTOU IR MAS FAEREA SO VAI GADAMAEL EMERGENCIA, EXPONHA SITUAÇÃO ESTA VIA.”

Esta mensagem foi enviada apenas para o COP 5 (Guileje), onde a REP/OPER sabia que eu não estava, o que demonstra a maneira desleixada (para não ser mais contundente), como o assunto foi tratado; o procedimento correcto era enviar a mensagem também para Gadamael e Cacine, havendo assim a certeza que eu a receberia, na hora.

Em consequência, só tive conhecimento do seu teor no dia 20 MAI, pelas 03H00, quando foi retransmitida de Guileje para Cacine, onde eu me encontrava.

Tendo chegado a Cacine na manhã do dia 19 MAI, donde foram evacuados os feridos pela Força Aérea (a REP/OPER não se lembrou de utilizar este transporte para enviar os delegados que eu, insistentemente pedia), e não recebendo resposta de Bissau (recordo que a mensagem acima só foi do meu conhecimento no dia seguinte), desesperado com tanta negligência, fui tentando resolver a situação, inclusivamente solicitando transporte ao Comando de Defesa Marítima, que tinha um avião à sua disposição, o que não foi possível.

Entretanto Guileje estava sujeito à acção do In, com flagelações de dia e de noite.

No dia 20 MAI, às 03H20, após tomar conhecimento da mensagem da REP/OPER do dia 19 MAI, (11H11), pelas razões apontadas, enviei, de Cacine, a seguinte mensagem RELÂMPAGO:

“ SUA…DE 19 MAI 73 CMDT PRESENTE NESTA INFORMA NECESSITA UMA COMPANHIA TROPA ESPECIAL FIM EFECTUAR REFORÇO TEMPORÁRIO REABASTECIMENTO GUILEJE. NECESSÁRIO TAMBÉM REFORÇO VIATS E ESTIVADORES. VIRTUDE SE ENCONTRAR NESTA JULGA ACONSELHÁVEL IR BISSAU REGRESSANDO IMEDIATAMENTE”.

No dia 20 MAI, à tarde, veio finamente a Cacine um helicóptero, que me transportou para Bissau.

Pelo que fica escrito, espero que o Sr. Ten. Cor. se convença que não decidi ir a Bissau.

“Do que se sabe o General Spínola …e não lhe explicou nada. Podia ter-lhe dito…eu agora não lhe posso valer pois tenho todas as minhas reservas empenhadas (o que era verdade), volte para lá, aguente-se, que logo que possa envio-lhe auxílio”.

Realmente o Sr. General Spínola não me explicou nada. Contrariamente ao que afirma o Sr. Ten. Cor., não é verdade que todas as reservas estivessem empenhadas. Conforme se pode verificar pelo depoimento do Sr. Chefe de Repartição de Operações, já indicado atrás, em resposta à pergunta do Sr. Oficial da PJM:

“… qual a situação das reservas do TO em vinte de Maio de mil novecentos e setenta e três…”, a resposta foi:

“…A trigésima quinta de Comandos encontrava-se em Bissau com a missão de segurança ao Palácio do Governo. …A Companhia de Caçadores Paraquedistas cento e vinte e um encontrava-se em Bissau em descanso desde vinte de Abril de mil novecentos e setenta e três.”

Portanto, se o Sr. General Spínola quisesse (e não quis), podia reforçar Guileje, de imediato, com a 35ª. Companhia de Comandos (depois de substituída na missão que lhe estava atribuída, o que não era particularmente difícil) e com a Companhia de Paraquedistas 121; refere-se que, esta Companhia foi reforçar Guidage, desde as 17H00 do dia 20 MAI 73 (ironicamente, depois de eu ter pedido reforço- ver mensagem anterior, enviada às 03H20 desse mesmo dia 20- esta Compª foi mandada para Guidage) até às 15H00 do dia 31 MAI73.

O argumento de que não havia reservas para reforçar Guileje, como se vê, é verdadeiramente falacioso. Acrescenta-se que estavam, em 20 MAI 73, em Cufar, as Companhias de Paraquedistas 122 e 123 (Sector do COP 4), que quinze dias mais tarde, foram reforçar Gadamael. Estas duas Companhias também podiam socorrer Guileje, de imediato, se recebessem essa missão do Comandante Chefe.

Se o Sr. General tivesse dito (e não disse), …”logo que possa envio-lhe auxílio”, isto equivaleria a dizer que a guerra, em Guileje, poderia esperar. Na prática, foi o que o Sr. General determinou, com a sua decisão de não atribuir qualquer reforço. Esqueceu-se foi do PORMENOR do envio de uma mensagem RELÂMPAGO, de teor semelhante ao seguinte:

“ Para o Comandante Zona Sul PAIGC – Nino Vieira
VIRTUDE TER TODAS MINHAS RESERVAS EMPENHADAS GUIDAGE, SOLICITO PARAGEM TEMPORÁRIA VOSSA ACÇÃO GUILEJE. LOGO QUE RESOLVA PROBLEMA NORTE, INFORMAREI ESTA VIA.
       António de Spínola

Talvez Nino Vieira tivesse sido sensível à solicitação!

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste dasérie de 21 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13776: (Ex)citações (242): Água da bolanha... quem a não bebeu ?!... Abastecimento na poça da Tabanca de Padada, dia 15JUN69 (Fernando Gouveia)