segunda-feira, 24 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17279: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (7): a última carta de Amílcar Cabral, enviada em 19/1/1973, a Pedro Pires, com diretivas para o reforço da luta na região de Quitafine



Guiné > Região do Tombali > Quitafine, assinalada com elipse, na zona a cor laranja. Quitafine faz fronteira com a Guiné-Conacri (área 3.736 km²)

Fonte: https://peccaviconsulting.files.wordpress.com/2017/01/political-map-of-guinea-bis.gif (com a devida vénia...)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > s/d > s/l> O comandante Pedro Pires com dois combatentes do PAIGC

Citação:
(1963-1973), "Comandante Pedro Pires com dois combatentes do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43495 (2017-3-31)



Colaborador permanente do nosso blogue, Jorge Araújo (ex-fur mil op especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74) é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto foi nos enviado a 7 de abril último, com a seguinte nota:  "Conforme ontem te dei conta, anexo mais um pequeno trabalho a incluir na série 'D(o) outro lado do combate', tendo este por tema de partida a 'última carta de Amílcar' enviada a Pedro Pires,  a poucas horas de ser assassinado. Recordo que a sua publicação só deve acontecer depois do texto relacionado com "Pedro Pires e a Mina..." (*)

A ÚLTIMA CARTA DE AMÍLCAR CABRAL [1924-1973] A PEDRO PIRES ESCRITA MOMENTOS ANTES DO SEU ASSASSINATO (19 de janeiro de 1973)



1. INTRODUÇÃO

Ao projectar este pequeno texto historiográfico, utilizando como fonte privilegiada, uma vez mais, «o outro lado do combate», título destes meus escritos temáticos, fi-lo procurando valorar o que é percebido do objecto em análise (factos narrados), por um lado, colocando-o à disposição do universo dos ex-combatentes que sobre ele lhe possam adicionar algo mais, por outro, organizando-o a partir da triangulação da informação produzida pelos seus diversos actores, e por eles publicitada em diferentes momentos e contextos.

Considero-o, por isso, um modesto contributo, quiçá reforço, ao que foi sendo referido, comentado, discutido, esclarecido, analisado, durante as duas últimas semanas neste espaço de partilha, com destaque para os temas inseridos nos P17138 e P17162, da autoria do nosso camarada António Martins Matos (ten gen pilav ref).

Daí que, como questão de partida, o objecto em análise está relacionado com as novas diretrizes idealizadas por Amílcar Cabral (1924-1973), enviadas em carta datada de 19 de janeiro de 1973, ao seu camarada do Conselho de Guerra, cmdt Pedro Pires (que viria a ser a última), naquela ocasião a supervisionar as actividades da guerrilha nos territórios da Frente Sul [mapa acima], uma vez que passadas poucas horas de as ter escrito, o seu autor seria assassinado por membros do seu próprio partido, em Conacri, tema amplamente dissecado no blogue [exs. P15683 e P16510, entre outros].

Estas novas orientações propostas por Amílcar Cabral, que não teria a oportunidade de conhecer os resultados, acabariam, porém, por influenciar os tempos que se seguiram, transformando os cenários da guerra-de-guerrilha ao longo do ano de 1973 e os palcos das três frentes (Norte, Sul e Leste) onde cada um dos actores se movimentava. 

Esse ano, todos nós o sabemos, foi um ano farto de ocorrências de grande significado individual e colectivo, sendo que uma grande parte delas acabariam por ficar gravadas, para sempre, como efemérides no âmbito da historiografia da guerra no CTIGuiné.


2. A ÚLTIMA CARTA DE AMÍLCAR CABRAL A PEDRO PIRES

- Diretrizes para o prosseguimento da luta armada (1973) 

A poucas horas de ser assassinado, em Conacri, por elementos do seu próprio partido ligados à sua segurança pessoal, como foi referido na introdução, Amílcar Cabral escrevia uma missiva ao Cmdt Pedro Pires, dando-lhe novas diretrizes quanto ao que deveria ser feito a partir de então na zona da fronteira sul do território, identificando ao detalhe as acções a executar por cada grupo, o seu número de elementos e respectivo armamento a utilizar, bem como a competente cronologia.

De referir que o seu assassinato já havia sido por si vaticinado como uma forte probabilidade para o fim da sua vida (morte), ficando célebre a frase que lhe é atribuída - “se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC, só nós próprios”.

Em função do acima exposto, importa dar conta de que esta narrativa só foi possível elaborar depois de consultados, com a devida vénia, os arquivos da Casa Comum, Fundação Mário Soares, em particular a vasta correspondência escrita/manuscrita por Amílcar Cabral, donde foi seleccionada a carta acima referida. Ela será transcrita na íntegra, mas intercalada com outras referências extraídas do vasto espólio disponibilizado por este blogue, com o superior objectivo de aprofundamento desta problemática.

O original será colocado no final, assim como referida a sua fonte. Eis, abaixo, o conteúdo da carta em título [revisão e fixação de texto: JA].

“Acabo de receber a mensagem [dos serviços de inteligência (secretos)?] sobre a concentração do inimigo em Cacine com o objectivo de ocupar posições no Sector”.

[Será que se refere à Directiva n.º 2/73, de 8 de janeiro de 1973, do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné (?), onde cria o Comando Operacional n.º 5 (COP 5), para o qual foi designado, como seu Cmdt, Alexandre da Costa Coutinho e Lima, à data major de art, e hoje cor art ref. (P2677)].

Recupero a missão do COP 5, constituída por 8 pontos. Neste contexto apenas irei referir os primeiros seis, a saber:

1. Intercepta o corredor de Guileje, especialmente pela implantação de minas e armadilhas e execução de fogos de interdição.

2 .Executa acções de reconhecimento na faixa fronteiriça, por forma a detectar novas linhas de infiltração IN na sua ZA [zona de acção], com vista ao oportuno desenvolvimento de acções de contra-penetração.

3. Acaba com o IN na sua zona de acção, aniquilando-o, capturando-o, ou, no mínimo, expulsando-o para o exterior do TO.

4. Procura alargar a sua área de actividade de contra-guerrilha, por acções de reconhecimento no corredor de Guileje em ordem a intensificar o esforço de contra-penetração e por acções de golpe de mão sobre a área de Quitafine.

5. Assegura a defesa eficiente dos aglomerados populacionais ocupados pelas NT e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua ZA [zona de acção].

6. Garante as condições de segurança necessárias à execução de movimentos nos itinerários do Sector, em especial Gadamael-Guileje e Cacine-Cameconde. 

Em função dos objectivos acima, Amílcar Cabral escreve, como procedimentos de ataque: 

"Penso que devemos tomar medidas imediatas para verificar a informação dada [omite a sua origem; acaso se refira à Directiva n.º 2/73, essa informação chega-lhe dez dias após a sua aprovação/publicação] e estar prontos a enfrentar o inimigo. Pois, como sempre, a melhor defesa é o ataque. Por isso proponho:

1. Deves deslocar-te à fronteira de Quitafine, se a tua saúde o permite, para coordenar a acção dos combatentes na área. 

2. Mobilizar no Sector, para a acção, todas as forças regulares e locais.

3. Levar para lá a artilharia que está na fronteira de Kandiafara, com as suas dotações em homens, incluindo o Grad [foguetão de 122 mm]. Se possível fazer um ataque a Quebo [Aldeia Formosa] antes de retirar a artilharia pesada para Quitafine.

4. Os artilheiros de antiaérea que estão ainda na fronteira (vinte e tal homens) devem levar para Quitafine 3 peças [AA] ZGU-14, 5 mm para fazer emboscadas a helicópteros, apoiados pela infantaria.

5. Enviar a Quitafine os 15 homens da infantaria que estão em Gadamael. Vou ver a possibilidade de mandar mais alguns elementos de infantaria para lá, antes do fim do mês [de janeiro de 1973], o que é muito difícil.

6. Montar emboscadas, mesmo com poucos homens na área Cacine-Cameconde, com forças regulares. As forças locais devem estar vigilantes nas outras áreas.

7. Minar todas as vias de comunicação terrestres do inimigo, com minas anticarro e antipessoais.

Foguetão 122 mm. 
Foto de Nuno Rubim (2007)
8. Atacar o mais breve possível, inclusivo com Grad [foguetão de 122 mm] se houver condições para usar essa arma. Atacar duro com canhões, morteiros e bazucas RPG-7.

9. Dar ordens aos políticos para preparar as populações, que devem esconder bem as colheitas e tomar medidas de defesa contra os bombardeamentos.

10. Vou pôr tudo em marcha para que mais munições cheguem aí com urgência, se ainda não foram."


Quanto ao foguetão de 122 mm, a que o PAIGC chamou de arma especial, cujo tubo se apresenta na imagem ao lado, as suas características e outras informações de interesse geral podem ser consultadas no P1828, da responsabilidade do cor art ref Nuno Rubim, onde se refere, ainda, a existência de um tubo igual no Museu Militar de Lisboa, em Santa Apolónia, que segundo se julga saber é o exemplar capturado em Cufar, precisamente em janeiro de 1973.
E continua:

"Já era de prever que o inimigo fará tentativas para reocupar Quitafine e possivelmente o Boé Oriental. Os tugas pretendem evitar a reunião da Assembleia Nacional Popular, por isso querem as áreas em que poderemos pensar fazer a reunião."

[Esta viria a realizar-se oito meses depois na região do Boé, em 23 de setembro desse ano, local onde, no dia seguinte, foi proclamada a Independência do Estado da Guiné-Bissau].

"Temos de encarar a actividade do inimigo com calma e decisão, para fazer tudo para liquidar o maior número possível das suas forças vivas. Temos grandes dificuldades de homens, mas devemos fazer a guerra com os homens que temos.

Se não podes tu mesmo ir a Quitafine (área da fronteira de Ba-Kulontó), manda para aí camaradas capazes. Penso que o Bota [Cmdt Bouta N’Batcha] deve seguir para aí, deixando alguém no seu lugar. O Bobo Keita [1939-2009] que regressou para a missão, poderá também ajudar.

Por hoje é tudo, ficando aguardando notícias tuas sobre a evolução da situação. Saúde e bom trabalho. O melhor abraço do camarada. Amílcar Cabral."



2.1. A análise dos pontos 6: o da Directiva e o de Amílcar Cabral

Procurando confrontar cada um dos pontos 6, quer o da Directiva n.º 2/73, quer a execução da proposta avançada por Amílcar Cabral, prevista para a área Cacine-Cameconde, nada foi encontrado de muito relevante na investigação, em particular no itinerário Cacine-Cameconde, quando comparado com o de Gadamael-Guileje, este sim, já amplamente dissecado neste espaço.


Como reforço da investigação, foi consultada, no blogue, a Unidade de Quadricula instalada nessa zona naquela época. Constatamos que entre os anos de 1972 [jan] e 1973 [out] foi/era a CCAÇ 3520 [Estrelas do Sul], uma Companhia de Madeirenses, mobilizada pelo BII 19 (Funchal), que garantia a actividade operacional entre Cacine e Cameconde. Como as referências no blogue são escassas (uma dezena) e os factos relevantes terem uma relação directa com essa variável, esta narrativa ficará amputada, certamente, de outros elementos mais significativos, em particular na dicotomia causas/efeitos da sua missão, enquanto actividade operacional.


O que se sabe é que ela se iniciou em 24 janeiro de 1972, por efeito da sua chegada ao porto de Cacine após concluído o IAO no Cumeré, para render a CCAÇ 2726 [1970/72], viagem efectuada a bordo da LDG “Montante”, ainda que até 22 de fevereiro se tenha verificado o período de sobreposição.


Guiné> Região de Tombali > Cacine, 24 de janeiro de 1972 > Chegada da CCAÇ 3520 ao porto de Cacine a bordo da LDG "Montante".
(Foto do alf mil Juvenal Candeias, com a devida vénia: poste P4961).

Em Cacine ficou instalada a maioria do contingente da Unidade, com um grupo de combate destacado em Cameconde, que era substituído mensalmente, em regime de rotação. Cameconde era então o Destacamento das NT mais a sul da Guiné, local situado a cerca de sete quilómetros da sede, sem população civil, e onde existia também um pelotão de artilharia com obuses de 14 mm. Entre os dois locais era realizada uma coluna diária, de ida e volta, com recurso à competente picagem.

A propósito desse contexto e da coluna diária que se fazia entre Cacine-Cameconde, o ex-cap mil op esp Alexandre A. M. Margarido, que foi o 4.º Cmdt da CCAÇ 3520, refere que Cameconde “era um daqueles locais onde apenas os combatentes portugueses conseguiam manter-se durante anos, sem enlouquecerem, face à falta de condições mínimas de subsistência. Inclusive a água e os mantimentos tinham que ser transportados, numa coluna diária por um trilho rasgado na selva. As altas temperaturas dentro dos abrigos, os insectos, as cobras que deslizavam da selva durante a noite, procurando o calor dessas fortificações, autênticos fornos, a exposição a atiradores e às flagelações por RPG, tudo isso, recuando 40 anos [hoje, 45] nas minhas memórias, era impensável ser suportado nos dias de hoje” [P11129].

Quanto à Região de Quitafine, a sul de Cacine, cuja base era considerada o “santuário do PAIGC” na opinião do camarada Juvenal Candeias, alf mil da mesma Unidade [P4961 e P11127], este acrescenta que aí o PAIGC “estava fortemente instalado, numa mata que era densa e intransponível e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais. Com trilhos minados e sentinelas avançadas [algumas em cima de árvores] permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 mm, disparados do nosso destacamento de Cameconde."

Dispunham, como efectivos [forças regulares], “um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, que era apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando). Estes efectivos eram reforçados por uma vasta população armada em autodefesa [forças locais], distribuídas pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque, entre outras. O respectivo reabastecimento era regular e seguro [como se depreende na carta de Amílcar Cabral], feito a partir da fronteira com a Guiné-Conacri, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó."
Como prática operacional, “as forças na região furtavam-se sistematicamente ao contacto [aliás, como em todas as frentes], optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos”. [Vd. postes P4961 e P11127].


2.2.  A carta de Amílcar Cabral enviada a Pedro Pires em 19 de janeiro de 1973, na véspera de ser assassinado





Fonte: Portal Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07166.001

Assunto: Comunica que recebeu a mensagem sobre a concentração do inimigo em Cacine. Propõe que se averigue a veracidade da informação e apresenta as instruções para o ataque na mesma área, mobilizar homens e armamento para a região e zonas circundantes, montar emboscadas, minar as vias terrestres, preparar as populações para a defesa contra os bombardeamentos.

Remetente: Amílcar Cabral.

Destinatário: Pedro Pires

Data: Sexta, 19 de Janeiro de 1973

Observações: Anexa cópia.

Fundo: Pedro Verona Pires

Tipo Documental: Correspondência

Citação:

(1973), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34467 (2017-4-24)


3. Conclusão

Pelo exposto se conclui que na época em análise as NT e a guerrilha organizavam-se em função das informações que circulavam entre os dois lados da fronteira, obtidas em “fontes privilegiadas” (ou “secretas”), influenciando depois todas as acções no terreno, bem como o sentido de cada uma delas, definidas nas políticas, finalidades e objectivos, e nas formas que as acções práticas deveriam tomar: as individuais e as colectivas.

Jorge Araújo, 3/4/2017
____________

Nota do editor

Guiné 61/74 - P17278: Convívios (795): XIII Encontro do Pessoal da CCAÇ 2726, dias 14 a 18 de Junho de 2017, no Funchal (Luís Paulino, ex-Fur Mil)

 Foto de família de um dos Convívios anteriores da açoriana CCAÇ 2726


Mensagem do nosso camarada Luís Paulino, (ex-Fur Mil da CCAÇ 2726 Cacine e Cameconde, 1970/72), com data de 22 de Abril de 2017:

Caro Amigo e Camarada Carlos Vinhal 

A CCAÇ 2726 vai realizar o seu XIII Convívio, de 14 a 18/6, na cidade do Funchal, Ilha da Madeira. 

Agradeço que esta informação seja publicada no Blogue da Tabanca Grande. 

Saudações Fraternas,
Luís Paulino
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de Abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17262: Convívios (794): XV Encontro do pessoal da CART 2520, dia 20 de Maio de 2017, em Almeirim (José Nascimento, ex-Fur Mil)

Guiné 61/74 - P17277: Notas de leitura (950): Guerra da Guiné: Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes - Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Convidado para fazer a apresentação das 1500 páginas de uma resenha com trabalho muito sério, fiz bem aceitar a aprendi muito. Trata-se da primeira leitura cronologicamente sequencial que permite perceber que tanto Louro de Sousa como Arnaldo Schulz, confrontados com uma sublevação bem montada a partir da região Sul, que rapidamente atingiu a confluência do Geba com o Corubal e passou à região do Oio, reagiram com os meios disponíveis, mesmo sabendo que dispunham de efetivos à partida pouco motivados e desconhecedores das questões étnicas, como conduzir eficazmente à autodefesa das populações, restituir-lhes a possível tranquilidade, etc.
A partir de agora, abre-se um terreno promissor para que os investigadores desbravem caminho. Por exemplo, Louro de Sousa legou a esta comissão para o estudo das campanhas de África cerca de 3 mil documentos que estão por ler. E muito do espólio referente aos quatro anos da governação de Schulz ainda não está tratado. Isto para dizer que a guerra da Guiné continua por contar, do princípio ao fim.

Um abraço do
Mário

Mário Beja Santos durante a sua alocução


Guerra da Guiné:
Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes

(Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974))

Mário Beja Santos

Excelentíssimo Sr. Chefe do Estado-Maior do Exército,
Excelentíssimo Sr. Embaixador da República da Guiné-Bissau,
Distintíssimos Oficiais,
Senhoras e senhores,

Começo por agradecer o honroso convite que o Chefe do Estado-Maior do Exército me dirigiu para comentar nesta sessão pública os três espessos volumes produzidos pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África. Os seus coordenadores, prudentemente, classificaram a sua laboriosa recolha falando em resenha e quanto aos acontecimentos marcadamente operacionais tiveram cuidado de os apresentar como “aspetos de atividade operacional”.

Para o leitor menos avisado, esta leitura poderá apresentar-se como entediante, redutora, de um desenho convencional de escrita em forma de relatório. Mas na verdade, esta recolha de elementos, resumos e estratos, soube contextualizar as atividades operacionais que os seus autores consideraram mais relevantes. Alertam para a perda de documentos e até para a incapacidade de análise de muitos outros documentos que estão depositados. Um incêndio destruiu o acervo da documentação elaborada e arquivada no Comando Territorial Independente da Guiné e no Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Haverá que repensar em que arquivos se poderão encontrar as possíveis cópias. Somos informados que há milhares de documentos oferecidos pelo General Loureiro de Sousa, Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné nos primeiros anos do conflito, notícia que deve chegar aos investigadores, de há muito perfilho que os dois primeiros Comandantes-Chefes precisam de ser estudados exaustivamente de modo a que a sequência cronológica de todo o conflito se torne mais inteligível.

Quanto aos documentos que hoje se tornam públicos, dir-se-á antes de mais que é uma parte da investigação que mais tarde ou mais cedo irá confluir como muitíssimos outros trabalhos, só assim se criarão as condições propícias para a organização de um trabalho científico sobre a história da guerra da Guiné, derrubando mitologias, pondo termo a presunções e especulações e eliminando os aparatos ideológicos de que há uma história exclusivamente feita por “vencedores”. Acresce que é no conhecimento aprofundado da história da guerra da Guiné que se irá encontrar a germinação do Movimento das Forças Armadas, a partir do ano crítico de 1973, da declaração unilateral da independência, da disposição de meios armamentistas postos à disposição do PAIGC, esgotados os meios para lhes fazer face, restava, como estava decidido, fazer a retração do dispositivo, abandonando largas faixas de território e preparar os efetivos para um embate tremendo, talvez um compasso de espera para as derradeiras negociações e a retirada das forças portuguesas.

Dispõe esta resenha de um mérito próprio e único: pela primeira vez passamos a dispor de uma cronologia sequencial do pensamento e ação durante o período da guerra, na ótica dos mais altos executantes, e como se cumpriu, em todos os escalões do dispositivo, por via de operações e até à resistência às arremetidas do inimigo. Digo sem qualquer hesitação que esta resenha ilumina todo o período anterior a 1968, que tem estado praticamente na obscuridade. Dito de outro modo: está exaustivamente estudado todo o período correspondente ao Governador e Comandante-Chefe António de Spínola, continua por se produzir investigação rigorosa sobre os períodos de Vasco Rodrigues/Louro de Sousa e não há um só estudo, pasme-se, sobre o período crucial em que Arnaldo Schulz governou e comandou a Guiné, entre Maio de 1964 e Maio de 1968.

Lê-se a documentação produzida por esta resenha e fica claro que tanto Louro de Sousa como Arnaldo Schulz foram incansáveis, com os meios que lhes puseram à disposição, para conter a guerrilha, ocupar o território da Província. Tinham fragilidades imensas: não disponham de informação segura sobre a estratégica da guerrilha e havia um absoluto desconhecimento das motivações das populações, de que lado se posicionavam, etc. Esta documentação revela que os dois primeiros comandantes-chefes foram confrontados com uma arremetida espetacular de subversão que em meses instalou o caos e todo o tipo de desarticulação na região Sul, que progrediu para o rio Corubal, se instalou no Oio, cortando no continente as duas grandes vias de comunicação entre a ilha de Bissau e os pontos mais ermos da região Leste.

A resenha contextualiza os antecedentes da luta de libertação, dá-nos a relação dos efetivos e do dispositivo das nossas tropas desde as vésperas do conflito armado e períodos subsequentes. A partir de 1959, graças ao encontro de um ideólogo de gabarito, Amílcar Cabral, e um campeão da agitação clandestina, Rafael Barbosa, preparou-se uma estratégia, formaram-se combatentes e agentes da subversão, acertou-se na seleção do território para desencadear a guerrilha a intimidação, o Sul, o PAIGC recebeu apoios da população Balanta e Beafada, as populações entraram em pânico, refugiaram-se em povoações importantes como Aldeia Formosa, Catió, Buba ou Cufar ou então fugiram para a República da Guiné. Qualquer ideia de que Louro de Sousa baixou os braços ou teve indecisão para se confrontar com a guerrilha cai por terra quando se leem as suas diretivas e o modo como usou os efetivos e o equipamento disponível, conduziu a operações no Morés, tentou suster os ataques da guerrilha entre o Corubal e o Geba e no final do ano de 1963 elaborou os termos para a operação “Tridente”, que marcaria a reocupação do Como. É um comandante-chefe crítico, sabe que as forças que comanda dispõem de fraco espírito ofensivo e deixa claramente escrito que a maioria dos órgãos de comando não faziam previamente cuidado das operações e não lhes davam continuidade lógica. Quando se vê escrito que neste período, e até mesmo com Arnaldo Schulz, se negligenciou a ação psicossocial na guerra da Guiné, também esta resenha desmonta claramente o mito e mostra como se fez um esforço enorme para montar autodefesa das populações.

Enquanto decorre a operação “Tridente”, no Quitafine, num lugar chamado Cassacá, os líderes do PAIGC promoveram um congresso de onde saíram decisões determinantes sobre a sua nova organização político militar. A resenha, é outro lado meritório da excelente documentação publicada, revela como o PAIGC ia consolidando as suas posições e aumentando a sua visibilidade. De 1963 para 1964 duplicaram os efetivos em forças terrestres, houve um reforço das forças navais e em meios aéreos, apareceram vários grupos de Comandos. A partir de 14 de Janeiro a operação “Tridente” dominou as atenções, mas prosseguiu a perseguição da guerrilha nas áreas de Bula, Mansoa, tentou-se desalojar os grupos instalados entre o Geba e o Corubal, reocuparam-se territórios que tinham sido abandonados por populações em fuga, caso de Guileje, Binta e Guidage.

Atribui-se ao mau relacionamento entre o Governador Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa a decisão de Salazar na sua substituição por uma só pessoa, Arnaldo Schulz, que anuncia não dar tréguas a combate dos guerrilheiros e acabar a guerra em poucos meses. Schulz assistirá, no entanto, a uma nova escalada e a demonstrações de força do PAIGC nas regiões de Gabu e de Boé, Teixeira Pinto será atacada. A república do Senegal, sobretudo a partir de 1965, começará a autorizar a infiltração a partir das suas fronteiras. Schulz procura responder alargando extensamente a malha de aquartelamentos, reforçando a africanização da guerra com muito mais tropa nativa e mais milícias. A resenha elucida o pensamento de Schulz e as suas atividades operacionais. As bases são atacadas, a troca retira e os guerrilheiros e as populações afetas regressam – é o eterno jogo do rato e do gato.

Num relatório anual da ação psicológica, com a data do último dia do ano de 1965, diz-se que a população sobre controlo das autoridades excede os 65% e que a população fora de controlo das autoridades ultrapassa os 28%, havendo ainda mais de 5% da população sobre duplo controlo. Em 1 de Dezembro de 1966, na sua diretiva n.º 26/C, Schulz refere-se assim ao PAIGC: “Apesar dos golpes sofridos no decurso dos últimos dois anos, a virulência política-miliar do inimigo não tem diminuído”. Alude ao crescimento de apoios internacionais à guerrilha (caso de Cuba), às facilidades concedidas pelo Senegal, ao facto de o PAIGC ter sido reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único legitimo interlocutor.

Em suma, o primeiro volume da resenha abarca os antecedentes das lutas emancipalistas na Guiné, o início da subversão e os primeiros anos do conflito num arco temporal que finda no ano de 1966.

O Embaixador Hélder Vaz Lopes, novo embaixador da Guiné, a conversar com o Chefe do Estado-Maior do Exército, Frederico Rovisco Duarte.

Com óculos, o General Garcia dos Santos

Ao centro, o General Almeida Bruno

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17268: Notas de leitura (949): “As minhas aventuras no país dos sovietes”, por José Milhazes, Oficina do Livro, 2017 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17276: Blogues da nossa blogosfera (77): Alda Cabrita, em 24/4/2015, à conversa com o gen trms ref Pena Madeira: uma história com h pequeno dentro da História com H grande, a colocação do cabo de transmissões no Posto de Comando do MFA, na Pontinha... (Uma homenagem à arma de transmissões: a não perder, amanhã, às 21h00, na RTP1, o documentário "A Voz e os Ouvidos do MFA")


Odivelas > Pontinha > Núcleo Museológico do Posto de Comando do MFA, no Regimento de Engenharia 1. Imagem: cortesia da União das Freguesias  de Pontinha e Famões



O ator João de Brito e o ex-fur mil Carlos Cedoura, em 16/1/2017, na rodagem do documentário "A Voz e os Ouvidos do MFA", de António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira.  Fonte: cortesia da página do Facebook de João de Brito.


 



1. Página da escritora Alda Cabrita... Este texto ("À conversa com... Um dos primeiros passos para o sucesso do 25 de Abril"), datado de 24 de abril de 2015,  merece ser lido e divulgado. É uma homenagem à arma das transmissões e ao seu papel, discreto mas decisivo, no sucesso (operacional) do movimento dos capitães, em 25 de abril de 1974.


À conversa com o major-general ref Pena Madeira, então  jovem capitão de transmissões  em 1974, Alda Cabrita conta-nos uma  história dentro da História que é agora retomada em documentário "A Voz e os Ouvidos do MFA",  realizado por António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira, a ser emitido no próximo 25 de abril, às 21h00 na RTP1. (*)

Com a devida vénia à autora, aqui vão alguns excertos:

(i) "A 20 de Abril de 1974, foi [...] determinado [ao Capitão Pena Madeira], pelo então Tenente-Coronel Garcia dos Santos, que estabelecesse a integração na rede telefónica automática militar do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, que iria ser montado no Regimento da Pontinha, para que pudesse ficar ligado a todas as unidades do Exército. Analisado o problema, foi decidido que essa incorporação iria ser feita com recurso a um cabo telefónico aéreo de 5 pares, que teria o seu início no Instituto dos Pupilos do Exército e iria percorrer uma distância aproximada de 4,5 km." (...)

(ii) "Os trabalhos, a cargo da secção de guarda-fios, [de que era chefe o furriel miliciano Carlos Cedoura,] iniciaram-se ao crepúsculo de segunda-feira, 22 de Abril. Pelas 4 horas da manhã do dia 23, tinha-se conseguido lançar o cabo telefónico até ao Colégio Militar, sendo que a tarefa foi facilitada pelo facto de ter sido apoiado nos postes telefónicos militares já existentes ao longo de todo o percurso. Durante a manhã foram efectuados trabalhos de consolidação, tendo esta primeira fase sido dada como concluída pela hora do almoço do dia 23." (...)

(iii) "Cerca das 20 horas, deste mesmo dia, foi iniciada a segunda fase de lançamento que iria ligar o Colégio Militar à Pontinha. Nesta fase, tudo se tornou mais complexo, dado não existirem pontos de apoio onde o cabo pudesse ser amarrado. A juntar a estas dificuldades, o tempo galopava. Assim, o cabo foi lançado com recurso à capacidade de improviso que parece ser típica dos militares de Transmissões, passando por postes, esquinas dos prédios e até pela copa das árvores. Acresce que as actividades que estavam a ser executadas tinham carácter secreto e não podiam levantar qualquer suspeita." (...)

(iv) (...) "Às 6 da manhã do dia 24, o cabo telefónico chegaria, como previsto, à porta do Quartel da Pontinha, onde uma pequena equipa procedeu à sua consolidação, seguindo-se ensaios de continuidade nos locais mais importantes, tais como o Quartel-General da Região Militar de Lisboa, os Pupilos do Exército, o Serviço de Telecomunicações Militares em Sapadores e no Posto de Comando na Pontinha." (...)

(v) "Das cinco linhas telefónicas instaladas, duas ficaram ligadas à central automática do Quartel-General, outras duas à central automática da Escola Prática de Transmissões em Sapadores, e a última destinava-se a fazer a ligação ponto-a-ponto entre a sala de operações do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas e a central automática da Escola Prática de Transmissões, onde iriam ser efectuadas escutas telefónicas, designadamente, às comunicações entre os Ministros da Defesa e do Exército, o Chefe de Estado Maior do Exército e as linhas militares que serviam a PIDE-DGS." (...)

O texto merece ser lido por inteiro, na página pessoal de Alda Cabrita. No final da conversa (com visita e fotos tiradas no Núcleo Museológico do Posto de Comando do MFA, no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, Odivelas), o maj-gen trms ref Pena Madeira "considerou importante fazer referência aos elementos que também estiveram directamente envolvidos neste processo", a saber:

(...) "Tenente-Coronel Garcia dos Santos, Comandante das Transmissões da operação e que apresentou aos dois oficiais do Serviço Telefónico do Exército, o requisito operacional da necessidade de telefones automáticos ligados à rede telefónica militar que foram colocados no Posto de Comando do MFA na Pontinha;"

(...) "Capitão Veríssimo da Cruz que, com ele, foi corresponsável pela organização e concretização das actividades descritas. Desenvolveu uma acção notável dentro do quartel no aliciamento da secção de guarda-fios e do seu chefe;

(...) "Furriel Miliciano Carlos Cedoura que, como chefe da secção de guarda-fios, aceitou executar o trabalho de lançamento do cabo telefónico, apenas sabendo que era urgente e clandestino." (...)
2.  Nota do editor:

O "trailer" do documentário sobre a colocação do cabo de transmissões no Posto de Comando do MFA, pode ser visto aqui, na página do Facebook da produtora, a JustUp:

https://www.facebook.com/justup/videos/750370961812397/

A partir de informação dada pelo general trms ref Garcia dos Santos,  que identificou o ex-fur mil Carlos Cerdoura, foi possível a sua localização, através do Arquivo Militar.  O realizador António Pedro Vasconcelos interessou-se de imediato por esta história de dentro da História, onde o protagonismo foi de atores até agora desconhecidos dos portugueses,  militares de baixa patente, de transmissões,  de uma arma discreta mas fundamental em qualquer operação militar. O documentário, com a reconstituição deste episódio, tem um título feliz,"A Voz e os Ouvidos do  MFA". (**)

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série >  12 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17044: Blogues da nossa blogosfera (76): Operadores Portugueses Lançam Guiné-Bissau (Ilhas Bijagós) como destino de férias 2017 (Tabanca do Centro)

(**) Vd. poste de 18 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17255: Agenda cultural (554): "A Voz e os Ouvidos do MFA", documentário realizado por António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira, a ser emitido no próximo 25 de abril, às 21h00 na RTP1

Guiné 61/74 - P17275: (Ex)citações (324): Quando se dizia, no final da I República, que a Guiné era uma colónia de Cabo Verde... (Armando Tavares da Silva, historiador)

1. Texto enviado em 19 do corrente por Armando Tavares da Silva, membro nº 734 da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Caminhos Romanos, 2016)


Caro Luís Graça,

Notei no Post P17250 de 17 de Abril de Mário Beja Santos referente ao livro do Embaixador António Pinto da França, Em Tempos de Inocência (Prefácio, 2006) (*), alguns parágrafos que atraíram a minha particular atenção. Beja Santos escreve que o autor “está atento e regista um conflito racial que muitos pretendem iludir”, e transcreve as suas palavras:

“Muitos guineenses olham os cabo-verdianos como uma classe colonizadora que os despreza e explora e não querem nem ouvir falar em tal união, achando que já lhes basta a predominância de cabo-verdianos nascidos aqui, instalados no Governo e em todos os postos de comando. Eles foram no tempo da colónia a classe intermédia, como na Indonésia os chineses e, politicamente mais preparados, puseram de pé o PAIGC, herdando assim o poder dos portugueses”.


A terminar a sua referência ao livro de António Pinto da França, Beja Santos faz nova transcrição das palavras do autor:

"Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático… Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua resignação ou sofrimento. Ensinaram-me algumas coisas importantes. Passados estes anos de iniciação, na euforia da independência, tempos duros e difíceis se desenham no horizonte, toldando as esperanças dos guineenses”.



Estas palavras fazem-me pensar na sucessão de acontecimentos que têm moldado a vida da Guiné-Bissau desde a independência até aos dias de hoje, e ainda em situações e acontecimentos que tiveram lugar na Guiné muito antes da luta do PAIGC contra os portugueses, e sobre as quais se manifestaram várias autoridades com responsabilidade na administração do território.

Por exemplo, vejamos o que diz Manuel Maria Coelho (um dos revolucionários do 31 de Janeiro, governador de Angola no início da República, e que veio ainda a chefiar o governo a seguir aos acontecimentos de 19 de Outubro de 1921), que no início de 1917 fora enviado para a Guiné, por António José de Almeida (na altura presidente do ministério e ministro das colónias), como sindicante na sequência de alegadas irregularidades que haviam rodeado a campanha de Teixeira Pinto na ilha de Bissau em 1915, e ainda para esclarecimento das muitas e variadas queixas que chegavam ao ministério sobre a vida pública da colónia.

Na ausência do governador Andrade Sequeira, Manuel Maria Coelho assumiria interinamente o governo da província afastando o secretário-geral Sebastião José Barbosa, e ao fazer a análise das acusações que eram feitas a Teixeira Pinto por Andrade Sequeira, e referindo-se ao facto de Sebastião Barbosa considerar desnecessária a guerra, considera não haver nisto surpresa e que tudo era fácil de explicar. Escreve:

“Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo, e é sobrinho, ou coisa parecida, de um célebre Caetano José Nosoliny, que foi o encarregado de ir a Lisboa pela Liga Guineense, pedir ao governo para que não fizesse a guerra aos papeis! Este Nosoliny tem sangue estrangeiro e, como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.

Vejamos ainda o que mais tarde escreve Vellez Caroço, que governou a Guiné por dois períodos consecutivos, de 1921 a 1923, e de 1924 a 1926, no seu relatório referente ao primeiro ano da sua governação, referindo-se à qualidade do funcionalismo e da organização da secretaria do governo. Depois de notar que a província se encontrava “enxameada” de empregados recrutados em Cabo Verde, acrescenta:

“Hoje é já vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”. E Vellez Caroço pergunta, talvez premonitoriamente: o que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?”.

Por considerar que a obra de desnacionalização da Guiné era lenta, mas era contínua e persistente, tornava-se necessário actuar para que não se não continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era uma colónia de Cabo Verde. E, a propósito, nota que “o nativo de da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”.


A influência cabo-verdiana na vida pública da província pode ser notada ainda em anos muito anteriores e mesmo como factor importante ou mesmo determinante no desencadear de alguns conflitos e operações militares, nomeadamente na ilha de Bissau nos anos 1890.

Notemos, a terminar esta pequena nota, que no grupo de fundadores do PAIGC estavam dois cabo-verdianos: Pedro Pires, também natural da ilha do Fogo, e Amílcar Cabral (nascido em Bafatá, segundo consta). E que o “conflito racial” acima referido continua presente num clima de “desconfiança e intriga” que – como recentemente me tenho apercebido – se sente na Guiné-Bissau.



2. Nota do editor:

Meu caro Armando, queria dizer "Aristides Pereira" e não "Pedro Pires", como cofundador do PAIGC, em 1956 (na altura ainda só PAI - Partido Avricano para a Indepedência, só em 1960 é que passa a designar-se PAIGC). (**)

Dos seis fundadores do PAI, só há três cabo-verdianos de nascimento: Júlio Almeida e Fernando Fortes, ambos naturais da ilha de São Vicente, e Aristides Pereira, natural da Boavista. Os restantes nasceram na Guiné: Amílcar Cabral, em Bafatá, o seu meio irmão Luís Cabral, nascido em Bissau, e Elysée Turpin, também nascido em Bissau, em 1930. Luís Cabral é o mais novo dos seis (,é de 1931), seguido de Elysée Turoin (que nasceu em 1930); todos os outros são da década de 1920: Aristides Pereira, o mais velho, nascido em 1923, seguido do Amílcar, que é de 1924, Júlio Almeida (1926) e Fernando Fortes (1929).

Amílcar e Luís são filhos do mesmo pai, cabo-verdiano, professor primário. A mãe de Amílcar era cabo-verdiana, nascida na ilha de Santiago, a mãe de Luís teve uma vivência cabo-verdiana, mas nasceu em Portugal. Ambos os irmãos têm uma dupla vivência, cabo-verdiana e guineense.

Pedro Pires é de facto da ilha do Fogo, mas dez anos mais novo do que Amílcar Cabral. Desertou da Força Aérea Portuguesa, tendo ingressado depois nas fileiras do PAIGc.

Sobre esta questão, ler a comunicação "As Trajectórias dos Fundadores do PAIGC (1923 – 1960", de Ângela Sofia Benoliel Coutinho (CESNOVA – IPRI/ UNL) in: Atas do Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné-Bissau: percursos do saber e da ciência, Lisboa, 21-23 de junho de 2012. [Consult 23/4/1017]. Disponível em https://coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/p03c02-angela-coutinho.pdf


3. Comentário, posterior, do Armando Tavares da Silva:

Obrigado Luís Graça pelas achegas sobre a fundação do PAIGC. Eu não investiguei a fundação deste partido, mas lembro-me de ter lido – já não sei onde – que Pedro Pires estava incluído num grupo de três pessoas que o teriam fundado. Notemos contudo que a sua biografia em http://www.barrosbrito.com/5498.html nos diz que em 1961 abandonou clandestinamente Portugal para se juntar ao PAIGC. 

Possivelmente haverá mais do que uma versão sobre os acontecimentos da altura, e António Duarte Silva, no seu trabalho que se pode ler em https://cea.revues.org/1236#tocto1n5, nos parágrafo 32 e 33 deste documento escreve:

“Segundo a versão consolidada, a 19 de Setembro de 1956, domingo à tarde, inter­vindo num círculo de amigos convidados para o efeito, Amílcar Cabral propôs a constituição de um partido político para alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde e defender a união entre os povos guineense e cabo-verdiano, numa perspec­tiva geral de unidade africana. Seria o Partido Africano da Independência (PAI)”. E a seguir: “A reunião durou cerca de uma hora, foram poucos os presentes (a maioria de ori­gem cabo-verdiana) e não há qualquer documento comprovativo”. E acrescenta: “Elisée Turpin afir­ma que teriam sido «aprovados os Estatutos do PAI, elaborados por Amílcar», mas o tes­temunho de Turpin, habitualmente indicado como um dos seis fundadores, está posto em causa”.

Penso que podemos concluir que cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) foram determinantes na criação do movimento de oposição à presença portuguesa, e que o que se terá passado na altura não constitui hoje uma certeza.

Armando Tavares da Silva


24.Abril.2017
___________________

Guiné 61/74 - P17274: Parabéns a você (1243): David Guimarães, ex-Fur Mil Art da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17265: Parabéns a você (1242): António Branquinho, ex-Fur Mil Inf do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)