Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua
esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An
Official Handbook, London, 1906)-Cortesia de ATS.
Assunto - Blogue: Guiné Séc. XIX
Caro Luís Graça,
Para quem se interessar pelos acontecimentos que se foram desenrolando na Guiné no decorrer do tempo, o texto que envio poderá ser útil e esclarecedor.
Há quem se queixe que em meados do século XX nada se sabia sobre aquele teritório. Tal não era também possível, pois não havia escritos que o pudessem permitir. Pouco mais se sabia além de que a Guiné tinha sido descoberta por Nuno Tristão.
Se percorrermos as “Histórias de Portugal”, mesmo, e sobretudo, as mais recentes, nada se encontra. E alguns trabalhos onde sumariamente se referem acções militares, confundem factos e apresentam erros. Acresce ainda que, quando se fala da Guiné, é quase sempre para denegrir. Talvez isto seja consequência do que ainda hoje leva a que se oiça dizer: “Mas aquilo tem algum interesse?”.
Parabéns ao blogue e seus editores, e... vida longa!
Abraço
ATS
2. Em comentário ao Post P18172 de 4-01-2018 (*), relativo à identificação do
topónimo Gan Sancó, muito possivelmente um antigo regulado mandinga, Cherno
Baldé menciona as contendas em que estiveram envolvidos mandingas e fulas. A
menção destas contendas levou-me a rever
o que havia escrito em “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e
Militar, 1878-1926” [, imagem da capa à esquerda,], sobre a própria emancipação dos fulas-pretos do domínio de
mandingas e beafadas.
O alferes Francisco António Marques Geraldes, que havia sido
comandante do presídio de Zeguichor, e que era chefe do presídio de Geba, relatando
o que fora acção de Alfá Moló, diz-nos em 1886 que este, fula-preto, era chefe
de uma “raça que há muitos anos vergava sob o jugo da escravidão. Beafadas,
mandingas, fulas-forros e futa-fulas eram seus senhores e, enquanto estes
descansavam das fadigas da guerra a que sempre se dedicaram, os fulas-pretos,
largando as armas com que defenderam seus senhores, pegavam nos instrumentos
agrícolas e ei-los curvados sobre o solo tirando do seu seio, à custa de
trabalhos insanos, o alimento preciso para sustentar as tribos guerreiras de
que dependiam.”
Este estado de escravidão resultava da ausência de um chefe
enérgico e audaz que se opusesse ao poder dos mandingas e beafadas. Moló, porém,
entendeu fazer um esforço sobre-humano para tentar tal milagre e, à frente de
um punhado de fulas, edifica a ocultas uma tabanca em lugar inculto e cheio de
denso arvoredo, tabanca pequena e povoada só por homens. À distância de duas
léguas existia uma outra de mandingas com suas famílias e haveres. “Os
fulas-pretos atacam uma madrugada e de improviso esta tabanca; matam os homens,
tomam as mulheres e cavalos; alargam a sua tabanca para assim haver cabimentos
para as famílias entradas”.
Marques Geraldes situa em 1864 o começo da emancipação dos
fulas-pretos, conseguindo Moló, que lutou até ao último dia da sua vida,
destruir quase todo o poder dos beafadas e mandingas nos territórios de Geba
até Gâmbia.
Depois da morte de Alfá Moló, será um dos seus filhos –Mussá Moló – possuidor de grande energia e superior inteligência, que chama a
si os principais guerreiros jalofes, saracolés e mesmo antigos fidalgos
mandingas que foram possuidores daqueles territórios e, devido às suas
liberalidades, premiando os mais valentes, dando-lhes cavalos e mulheres, soube
criar um tal prestígio que se tornou o ídolo dos fulas-pretos. Assim, Mussá
soube vencer aqueles restos dos grandes povos que dominaram na Guiné e, em
poucos anos tinha suplantado beafadas e mandingas, ficando possuidor de ambas
as margens do rio de Geba desde a sua embocadura.
O território do Forreá povoado por fulas-forros estava
igualmente cheio de escravos fulas-pretos. Em 1879, quando Agostinho Coelho
inaugurou o governo da província, decorria a luta sangrenta entre os fulas-forros
e os fulas-pretos, altura em que o Rio Grande mantinha o seu esplendor,
ostentando as suas cinquenta e três feitorias prósperas e ricas, e em que a
população de Buba era numerosa.
Por espírito humanitário Agostinho Coelho, na
difícil situação de procura da pacificação entre os povos que se digladiavam, e
portanto da pacificação da província, recebeu na sua praça de Buba todos os
fulas-pretos que quisessem ser livres, arrostando assim com uma guerra que lhe
trouxe o completo definhamento do comércio e agricultura. Vendo-se os
fulas-forros repentinamente privados dos seus escravos, não tiveram em mira
senão vingar-se, o que deu começo a uma guerra no território de Forreá, que
aniquilou o comércio e agricultura em Buba e feitorias do Rio Grande.
Joaquim da Graça Correia e Lança, que fora governador
interino entre 1888 e 1890, referindo-se também, em relatório de 1890, aos
povos que ocupavam a província, escreve:
“Toda a região do alto Geba era
ocupada pelos fulas-pretos, que se estendiam até ao Forreá, onde dominavam os
fulas-forros. Era uma enorme área, outrora ocupada por mandingas e beafadas.
Estes estendiam-se pela margem esquerda do rio Geba até à povoação deste nome e
ocupavam o território de Bricama, Corubal e o Forreá. Aqueles, estendiam o seu
império desde Farim até ao Futa-Djalon”.
Ora, tanto a grande nação mandinga do
interior, como os mandingas de Geba viram entrar no seu território “sem
desconfiança os inofensivos pastores fulas que, com os seus rebanhos caminhavam
sem cessar na direcção do oceano, apenas pedindo pastagem para os seus gados e
sal para as suas comidas”. Vivendo sujeitos aos mandingas e beafadas, os fulas
haviam sido objecto de “inúmeras extorsões e violências, vivendo uma vida
verdadeiramente servil”, até que, em 1863, se dá um primeiro movimento de
revolta, tendo-se verificado o primeiro combate em Cabucussará.
Como aqui se vê, Correia e Lança situa o primeiro combate de
emancipação dos fulas-pretos em 1863, em Cabucussará.
Atlas da Guiné (1914): posição relativa de Gam Sancó e Ber[e]colon. Cortesia de ATS
Mas os mandingas também sofreram ataques e pesadas derrotas
infligidas por futa-fulas, como se infere do referido comentário de Cherno
Baldé ao Post P18172 (*). Segundo este, a
fortaleza mandinga de Berecolon foi destruída pelos almames do Futa-Djalon no
início de uma guerra que se iniciara em 1852, e que terminaria com a derrota
dos mandingas na batalha de Cansala em 1864. Marques Geraldes diz-nos que fora
o almame Ibráhima, denominado o Sory, que maiores vitórias alcançara contra os
mandingas, e eu faço notar que em 1882, na praça de Buba, circundada por uma
paliçada, existia uma autêntica aldeia mandinga, onde se terão acolhido,
provavelmente fugidos dos ataques de futa-fulas.
Houve, porém, um território – o Oio – onde mandingas
soninqueses conseguiram resistir aos avanços fulas. É o governador Júdice Biker
que, em 1903, mais demoradamente se vai referir a este facto, começando por
notar que por muitos anos durou a luta entre fulas e soninquezes, ficando
aqueles vencedores tomando posse do chão dos soninquezes, à excepção da região chamada
Oio, ainda hoje pertencente aos soninquezes.
Acrescenta Júdice Biker:
“Depois, os fulas passaram a conquistar o território pertencente aos beafadas, luta que igualmente durou bastantes anos, mas sendo os beafadas expulsos do seu chão que igualmente ficou pertencendo à raça fula, refugiando-se os beafadas em Quinará e Cubissegue, que ainda hoje conservam devido à protecção do governo”.
E continua:
“Relativamente ao Oio, os fulas empregaram todos os esforços para ocupar aquela região. A tabanca de maior nome do Oio é a de Gussará; cinco vezes foi atacada pelos fulas que foram sempre derrotados sofrendo perdas enormes”. Por isso, “para os fulas o Oio passou a ser considerado como território com feitiço”.
“Depois, os fulas passaram a conquistar o território pertencente aos beafadas, luta que igualmente durou bastantes anos, mas sendo os beafadas expulsos do seu chão que igualmente ficou pertencendo à raça fula, refugiando-se os beafadas em Quinará e Cubissegue, que ainda hoje conservam devido à protecção do governo”.
E continua:
“Relativamente ao Oio, os fulas empregaram todos os esforços para ocupar aquela região. A tabanca de maior nome do Oio é a de Gussará; cinco vezes foi atacada pelos fulas que foram sempre derrotados sofrendo perdas enormes”. Por isso, “para os fulas o Oio passou a ser considerado como território com feitiço”.
Vai ser na sequência de uma incursão no Oio em 1902, e do “prestígio”
de que dela resultara, que Júdice Biker, devidamente autorizado, vai proceder a
título provisório à primeira cobrança do imposto de capitação (que antecedeu o
imposto de palhota), o que realiza durante uma extensa digressão, entre Fevereiro
e Março de 1903, em que percorreu de Buba a Geba 275 quilómetros . (**)
_______________Notas do editor:
(*) Vd. poste de 4 de janeiro de 2018 >Guiné 61/74 - P18172: Memória dos lugares (369): Fajonquito (1961) ou... Gam Sancó (1940, 1914, 1906, 1889)? (Armando Tavares da Silva)
(**) Último poste da série > 12 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18204: Historiografia da presença em África (105): O atlas da Guiné, de João Soares, que teve várias edições nos anos 40 do séc. XX e era usado no ensino liceal (Armando Tavares da Silva)