sexta-feira, 28 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6483: Notas de leitura (113): As ausências de deus, por António Loja; Editorial Notícias, 2001 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Dá satisfação encontrar prosa tão boa, irrecusável, daquela que a nossa descendência irá relembrar.
Hoje vou à Associação 25 de Abril buscar mais livros.
Confio que os camaradas dos blogue não se esqueçam de me dar o apoio que lhes for possível, dando-me a saber se têm lá em casa algumas relíquias que caibam dentro destas recensões.

Um abraço do
Mário


Do hospital para a guerra, lá entre Mejo e Guileje

por Beja Santos

A narrativa “As ausências de Deus – no labirinto da guerra colonial”, de António Loja (Editorial Notícias, 2001) é um relato assombroso de um comandante de companhia, oficial miliciano, que de Buba foi lançado nalgumas das zonas mais ásperas do Sul da Guiné. Cerca de trinta anos depois, a pretexto de uma hospitalização, farrapos dessas memórias, possivelmente as mais intensas e discrepantes, assomam, aparecem associadas à sua vida de internado, antes, durante e depois os actos operatórios.

Por vezes entre o pesadelo e a insónia, aquele Sul da Guiné regressa implacavelmente. Está-se em progressão para um objectivo, através de terrenos encharcados, acompanhados por mosquitos insuportáveis: “Levantavam-se do solo em nuvens densas que nos invadiam a boca e o nariz. Para ficarmos com as mãos livres, cada um de nós sacou do grande lenço verde que o generoso Exército fornecia aos seus heróis e amarou-o na nuca, cobrindo com ele a boca e o nariz, o que nos permitia respirar com alguma limpeza. Parecíamos Zorros”. Segue-se pela floresta, abre-se o caminho à catana. Um soldado transmite ao capitão o que um dos alferes, lá à frente, considerava importante que soubesse: que o pessoal estava com medo de atacar. Nisto rebenta a poderosa reacção do inimigo, urge pedir apoio aéreo, o capitão dirige-se ao radiotelegrafista, o Gordo, sempre a lamentar-se dos seus pés chatos. Segue-se a descrição:

“Cheguei ofegante da corrida, deita-me com a arma dirigida para a frente e disse ao telegrafista, estava estendido junto do rádio:

– Liga ao comando!

Não tive resposta. Julguei que ele estivesse com medo.

O medo do radiotelegrafista, se existira, já tinha passado. Quando me cheguei para junto dele, para o chamar ao dever, o corpo estava inerte, perto do rádio. Neste escorria uma massa gelatinosa e ensanguentada. Eram pedaços do cérebro. A parte superior do crânio tinha sido aberta por um estilhaço de granada de morteiro... Tirei o rádio das costas do morto. Encostei-o a uma das árvores, comecei a limpar o quadrante e os botões de sincronização, para tentar ligar ao coronel que voava nos céus diáfanos gritando ordens histéricas. A frequência estava correcta e logo apanhei o homem do outro lado. A besta queria um Relim, um relatório imediato.

– Puta que o pariu! – berrei”

Não há condições de pedir um helicóptero imediatamente, corre-se o risco de se apanharem emboscadas sucessivas, transportam-se feridos em padiola, bem como o corpo do Gordo. O capitão reflecte amargamente: governar é escolher, ao decidir poupar a coluna a uma eventual mortandade, lá vão caminhando aos tropeções a mentir aos feridos, o Toni gemia constantemente e chamava pela mulher e pelo filho que ainda não conhecia, até que o Toni morreu, com tanto sofrimento.

Quando se tratou de evacuar os feridos, havia aqueles dois mortos que o piloto lembrou que não podiam ser transportados. O capitão apela à sua boa vontade. O piloto resiste. Quem desempatou foi a enfermeira, que encontrou uma fórmula à altura:

“ – Desculpe, meu capitão, mas estes homens não estão mortos, mas sim gravemente feridos e provavelmente morrerão no trajecto. Mas estão vivos”. Retirou os cartões de identidade, salvou a coluna de mais sofrimentos inúteis.

Naquele hospital de Coimbra, o ex-capitão miliciano reaprende a andar e, abruptamente, recua trinta anos, lembrou-se do cabo Calçada, que apanhara uma rajada de metralhadora no tórax, numa emboscada na estrada Mejo – Guileje. O furriel enfermeiro previu o pior, o Calçada safou-se, mesmo com a extracção de um pulmão. O seu capitão foi visitá-lo. O encontro é impressionante:

“De repente, vejo avançar um homem magro, em pijama, agarrado a um suporte metálico com rodízios, onde se suspendia um invólucro transparente com soro. O homem olhava fixamente para mim, que, de tão perturbado, mal via o que se passava à minha volta. Mas, quando levantei para ele o meu olhar, descobri a cara risonha do Calçada, que de novo me piscava o olho e me dizia, arfando:

– Ainda cá estou, meu capitão.

E estava. Para ficar. Porque era mesmo invencível. Dera um pontapé na morte. Dispensado da guerra, veio lutar por uma causa mais digna: o dia-a-dia de um ser humano com vontade de viver”.

Não hesito em afirmar que alguns destes parágrafos da narrativa de António Loja farão parte, obrigatoriamente, de todas as antologias que se escrevem sobre a guerra da Guiné. Pela intensidade na transmissão das emoções. No sucinto da escrita, que se levanta como a mão que apedreja o que já esquecemos ou que ignoramos: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; as confidências do Francisco, o condutor do rebenta minas, que vai casar dentro de dois meses e que deixou de sentir tesão, houve urgência em tomar medidas para combater o stress; o “Roncolho”, um herói improvisado que um dia gritou “ai minha mãe!” lá numa emboscada e quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto de Bissau; as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, dos momentos de depressão que assaltam toda a gente; daquele aviador que durante uma operação achou que não devia almoçar em Mejo e o alferes disse ao cabo Chico e pegar numa metralhadora e caso o helicóptero levantasse lhe desse uma rajada das grossas. Nunca mais vou esquecer este livro de António Loja, grato pela sua humanidade e o vigor da sua escrita.

Despeço-me dele com um doloroso parágrafo, inesquecível:

“A mina devia ter algum defeito. Quando o rodado da frente da GMC passou sobre ela, nem rosnou. Só quando o rodado traseiro caiu pesadamente no tronco de palmeira atravessado na picada é que ela rebentou com toda a violência. E, com isso, fez explodir também o depósito de gasolina que lhe ficava por cima. Estava atestado e espalhou a chama ardente à sua volta. O soldado que caminhava ao lado do veículo, de espingarda a tiracolo, parecia uma tocha. Correu como um louco sem direcção definida. Saltámos em cima dele com as camisas arrancadas dos nossos corpos para apagar o fogo, mas era tarde para conseguir qualquer resultado. O rapaz estava irremediavelmente queimado e levou pouco tempo a morrer”. Ainda há mais dor à frente deste relato: a aprendizagem com o cheiro da morte, com o fedor horroroso que se desprendia do caixão quando houve que o perfurar para que a caixa de chumbo interior não estoirasse. Coisas da guerra, tudo por causa de uma operação; bendita foi a hora em que ela ocorreu, lá no hospital em Coimbra, em que António Loja relembrou os tempos que passou na Guiné.

O livro foi-me oferecido pelo José Brás, que tem procurado assistir-me nesta aventura da caça aos livros. Fará parte da biblioteca do nosso blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6477: Notas de leitura (112): As ausências de deus, de António Loja (1) (Mário Beja Santos)

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