1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos em 22 de Maio de 2010, a seguinte mensagem:
Camaradas,
Tenho andado muito ocupado (?!). Melhor dizendo sem muita vontade e motivação para enviar «estórias».
Esta penso que vai originar algumas reacções, já que falo dos meus sentimentos em relação à forma como os nosso mortos foram tratados. (*)
HÁ MAIS DE QUARENTA ANOS, AINDA FALAMOS DOS NOSSOS MORTOS!
ESTA É UMA INDIGNIDADE QUE SÓ VAI DESAPARECER COM A ELIMINAÇÃO NATURAL DESTA GERAÇÃO!
As minhas desculpas pela ausência a que tenho votado o que devia ser uma presença «obrigatória» nesta Tabanca, grande de mais, mas demasiadamente respeitada e saudosa, para que a possamos «esquecer» durante tanto tempo.
E eu, ao que se confirma, tenho esquecido. Mas parece que não andava bem da minha consciência se não viesse aqui desabafar e confessar os meus sentimentos, neste caso de revolta. Tinha de me manifestar. E qual o melhor local, se não aqui?
Confesso ainda que andei largas dezenas de anos completamente enganado (sem aspas para amenizar a interpretação da palavra, nem nada, é a realidade), porque em 1963 e nos anos seguintes, pensava eu que os nossos camaradas falecidos, pelas causas mais inverosímeis, fossem trasladados para as suas terras sob a responsabilidade e custos do Estado Português.
Puro engano. Se houver pachorra para ler o resto da história, aí vai o meu raciocínio daquele tempo de 1963/1965.
E era assim: Íamos prestar serviço militar obrigatório. Já naquela altura, até as empresas privadas tinham, para os seus trabalhadores, a transferência de responsabilidade para Companhias de Seguros, dos riscos a que estavam sujeitos os seus colaboradores a eventuais acidentes de trabalho. E em caso de acidente, era a Companhia de Seguros chamada a responder pela responsabilidade que o caso a obrigava.
No nosso caso, não era privado. Mas era um serviço, visto aos olhos de alguns (muitos) de bastantes riscos, mas também que colocavam os militares em certa posição de prestígio (para o regime), mas isso não pagava as situações de deficiência e de morte. E o nosso patrão era o Estado.
O que é certo é que éramos «despachados» para as diferentes frentes de batalha, sem saber as condições em que o fazíamos.
Isto vem a propósito dos mortos em combate, por doença, em acidentes vários e na evacuação de feridos graves, que se verificava, quando a mesma resultava da necessidade de assistência médica, quer por doença, e, principalmente, em combate.
Já o disse que a minha campanha na Guiné, sendo de algum turismo, teve também alguns momentos menos bons. Mas não maus de todo. E, no meio de toda esta sorte, apenas houve duas baixas, num caso por acidente na montagem de uma armadilha e outra por doença.
Mesmo antes de ter sido admitido na Tabanca Grande, e foi por isso que aqui vim parar, andei a vasculhar a Internet, à procura dos dois camaradas falecidos. E a minha surpresa foi grande, do tamanho da minha revolta.
Encontrei os seus nomes identificados em duas campas, com os respectivos números, no cemitério de Bissau. E eu, até ali e durante tanto tempo (repito) a pensar que o Estado Português os tinha trasladado para as suas terras natal.
Confesso que fiquei revoltado, indignado, por admitir que todo aquele que tombava na guerra, o Estado colocava os seus restos mortais cá, ao menos por uma questão de justiça, de memória, de respeito pelos próprios, pelos seus familiares, esposas, filhos e outros.
De modo que, os mesmos, pudessem sufragar com a dignidade que a morte merece. Embora a morte seja uma passagem, pelo menos para mim, para a minha consciência e fé. Mas os que os amavam é que sofriam! Neste caso, é de censurar o comportamento e postura das autoridades a quem tínhamos de obedecer (contrariados em muitos casos) e que é ponto para afirmar, ainda debaixo da emoção e da irracionalidade em que nos colocavam involuntariamente, que, ao fim e ao cabo, não cabiam na hipocrisia de quem tinha que tomar decisões.
Falta-me, neste longo desabafo, dizer que aqueles que conheci e com quem convivi, e que encontrei identificados num blogue qualquer (de que já nem sei o endereço), mas que também parece que estão aqui mencionados no nosso blogue, foram o 1º Cabo de minas e armadilhas, José Gonçalves Rua, de Penude - Lamego, na fatídica data de 27 de Agosto de 1964, quando a armadilha que montava rebentou, sendo sepultado na campa do cemitério central de Bissau com o número 1020.
E o 1º Cabo Artur Branco Gonçalves (um rapaz alto e esguio), falecido em 13 de Outubro de 1964, no Hospital Militar 241, por doença, salvo erro de origem gástrica (úlcera?), e que ainda me lembro ele andar a queixar-se ao médico. Quando foi evacuado de helicóptero para ser operado, não terá havido tempo. Era de Vilarelho da Raia, concelho de Chaves, ali perto da fronteira com Espanha, onde muitos portugueses iam, normalmente, comprar caramelos espanhois.
Por outro lado, tudo vem a propósito não só pelo facto de há muitos meses (ou já anos) ter descoberto isso, como ainda pelo facto hediondo de agora descobrirem que, muitas vezes, nas urnas vinham sacos de areia e pedras. Já li casos idênticos noutros locais.
Num caso de que não me lembro a origem, dentro da urna foram detectados os rolos dos cibes que usávamos para diversos fins, desde fazer pontões, a meios de defesa, como eram o caso dos abrigos e das torres de vigia, que depois se começou a dispensar pelo perigo que originavam, neste último caso.
Então o Estado não tinha dinheiro (nem se gastava nada, pois as urnas eram metidas nos navios e vinham com todos os militares regressados) e andava a gastá-lo com uma urna a «esconder», a camuflar, um corpo que apenas era do interesse (humanamente falando e que devia ser respeitado) da família?
Há outros relatos e factos verídicos perfeitamente inadmissíveis, mas que as circunstâncias em que se encontravam não permitiam outra solução que não fosse o seu sepultamento mesmo ali. Mas, primeiro, os nossos soldados…
Quanto não terá custado aos seus camaradas tomar atitudes destas!
Ah! Como o tempo é o grande responsável pelas límpidas respostas que nos apresenta em todas as vertentes da vida…
Revoltado, revolto-me (passe o pleonasmo) e odeio estes comportamentos inaceitáveis da falta de ética, de sentimentos e de respeito para com todos aqueles que «batiam por lá o costado», frase vulgar utilizada naqueles recuados tempos.
Desculpem, porque se continuo ainda serei incomodado…
Para aqueles que ainda têm a dita de ler isto, vai o meu profundo reconhecimento de respeito, consideração e amizade.
Um abraço para todos,
J. M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes da CCAÇ 462
____________
Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)
E eu, ao que se confirma, tenho esquecido. Mas parece que não andava bem da minha consciência se não viesse aqui desabafar e confessar os meus sentimentos, neste caso de revolta. Tinha de me manifestar. E qual o melhor local, se não aqui?
Confesso ainda que andei largas dezenas de anos completamente enganado (sem aspas para amenizar a interpretação da palavra, nem nada, é a realidade), porque em 1963 e nos anos seguintes, pensava eu que os nossos camaradas falecidos, pelas causas mais inverosímeis, fossem trasladados para as suas terras sob a responsabilidade e custos do Estado Português.
Puro engano. Se houver pachorra para ler o resto da história, aí vai o meu raciocínio daquele tempo de 1963/1965.
E era assim: Íamos prestar serviço militar obrigatório. Já naquela altura, até as empresas privadas tinham, para os seus trabalhadores, a transferência de responsabilidade para Companhias de Seguros, dos riscos a que estavam sujeitos os seus colaboradores a eventuais acidentes de trabalho. E em caso de acidente, era a Companhia de Seguros chamada a responder pela responsabilidade que o caso a obrigava.
No nosso caso, não era privado. Mas era um serviço, visto aos olhos de alguns (muitos) de bastantes riscos, mas também que colocavam os militares em certa posição de prestígio (para o regime), mas isso não pagava as situações de deficiência e de morte. E o nosso patrão era o Estado.
O que é certo é que éramos «despachados» para as diferentes frentes de batalha, sem saber as condições em que o fazíamos.
Isto vem a propósito dos mortos em combate, por doença, em acidentes vários e na evacuação de feridos graves, que se verificava, quando a mesma resultava da necessidade de assistência médica, quer por doença, e, principalmente, em combate.
Já o disse que a minha campanha na Guiné, sendo de algum turismo, teve também alguns momentos menos bons. Mas não maus de todo. E, no meio de toda esta sorte, apenas houve duas baixas, num caso por acidente na montagem de uma armadilha e outra por doença.
Mesmo antes de ter sido admitido na Tabanca Grande, e foi por isso que aqui vim parar, andei a vasculhar a Internet, à procura dos dois camaradas falecidos. E a minha surpresa foi grande, do tamanho da minha revolta.
Encontrei os seus nomes identificados em duas campas, com os respectivos números, no cemitério de Bissau. E eu, até ali e durante tanto tempo (repito) a pensar que o Estado Português os tinha trasladado para as suas terras natal.
Confesso que fiquei revoltado, indignado, por admitir que todo aquele que tombava na guerra, o Estado colocava os seus restos mortais cá, ao menos por uma questão de justiça, de memória, de respeito pelos próprios, pelos seus familiares, esposas, filhos e outros.
De modo que, os mesmos, pudessem sufragar com a dignidade que a morte merece. Embora a morte seja uma passagem, pelo menos para mim, para a minha consciência e fé. Mas os que os amavam é que sofriam! Neste caso, é de censurar o comportamento e postura das autoridades a quem tínhamos de obedecer (contrariados em muitos casos) e que é ponto para afirmar, ainda debaixo da emoção e da irracionalidade em que nos colocavam involuntariamente, que, ao fim e ao cabo, não cabiam na hipocrisia de quem tinha que tomar decisões.
Falta-me, neste longo desabafo, dizer que aqueles que conheci e com quem convivi, e que encontrei identificados num blogue qualquer (de que já nem sei o endereço), mas que também parece que estão aqui mencionados no nosso blogue, foram o 1º Cabo de minas e armadilhas, José Gonçalves Rua, de Penude - Lamego, na fatídica data de 27 de Agosto de 1964, quando a armadilha que montava rebentou, sendo sepultado na campa do cemitério central de Bissau com o número 1020.
E o 1º Cabo Artur Branco Gonçalves (um rapaz alto e esguio), falecido em 13 de Outubro de 1964, no Hospital Militar 241, por doença, salvo erro de origem gástrica (úlcera?), e que ainda me lembro ele andar a queixar-se ao médico. Quando foi evacuado de helicóptero para ser operado, não terá havido tempo. Era de Vilarelho da Raia, concelho de Chaves, ali perto da fronteira com Espanha, onde muitos portugueses iam, normalmente, comprar caramelos espanhois.
Por outro lado, tudo vem a propósito não só pelo facto de há muitos meses (ou já anos) ter descoberto isso, como ainda pelo facto hediondo de agora descobrirem que, muitas vezes, nas urnas vinham sacos de areia e pedras. Já li casos idênticos noutros locais.
Num caso de que não me lembro a origem, dentro da urna foram detectados os rolos dos cibes que usávamos para diversos fins, desde fazer pontões, a meios de defesa, como eram o caso dos abrigos e das torres de vigia, que depois se começou a dispensar pelo perigo que originavam, neste último caso.
Então o Estado não tinha dinheiro (nem se gastava nada, pois as urnas eram metidas nos navios e vinham com todos os militares regressados) e andava a gastá-lo com uma urna a «esconder», a camuflar, um corpo que apenas era do interesse (humanamente falando e que devia ser respeitado) da família?
Há outros relatos e factos verídicos perfeitamente inadmissíveis, mas que as circunstâncias em que se encontravam não permitiam outra solução que não fosse o seu sepultamento mesmo ali. Mas, primeiro, os nossos soldados…
Quanto não terá custado aos seus camaradas tomar atitudes destas!
Ah! Como o tempo é o grande responsável pelas límpidas respostas que nos apresenta em todas as vertentes da vida…
Revoltado, revolto-me (passe o pleonasmo) e odeio estes comportamentos inaceitáveis da falta de ética, de sentimentos e de respeito para com todos aqueles que «batiam por lá o costado», frase vulgar utilizada naqueles recuados tempos.
Desculpem, porque se continuo ainda serei incomodado…
Para aqueles que ainda têm a dita de ler isto, vai o meu profundo reconhecimento de respeito, consideração e amizade.
Um abraço para todos,
J. M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes da CCAÇ 462
____________
Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)
2 comentários:
O título levanta a curiosa questão de muito se falar de mortos e sofrimentos e pouco, muito pouco, se falar de êxitos e resultados, como se não os tivesse havido ou como se houvesse acanhamento em os evocar.
SNogueira
CM de 28 Maio
Peniche
“Vi o corpo no caixão e selei-o”
Camarada de pelotão está incrédulo com urna vazia. Ernesto Ferreira certificou-se de que era do soldado Tertuliano Henriques.
João Mendes
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