quinta-feira, 10 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2742: Blogoterapia (46): Promessa de comando: vou retomar as minhas crónicas de guerra (Amílcar Mendes, 38ª CCmds)

Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do Rio Corubal > Gampará > 38ª Companhia de Comandos > Agosto / Dezembro de 1972 > O Comando Amílcar Mendes, cujo último relato foi o de uma operação helitransportada, no dia 13 de Setembro de 1972 (nome de código: Acção Águia Errante), na região de Lagoa de Bionrá, e em que participaram 3 Gr Comb da 38ª CCmds.

Foto: © Amilcar Mendes (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Amílcar Mendes, taxi driver na praça de Lisboa, ex-1º Cabo Comando, 38ª CCmds (Guiné, 1972/74):

Assunto - As minhas crónicas de guerra

Amigo Luis Graça e camaradas da tertúlia, reconheço que estou em falta com aquilo que te prometi (1). Interrompi as minhas crónicas por vontade própria e porque aquilo que ia transmitindo foram notas tomadas durante situações de stress, algumas delas memorizadas debaixo de fogo, e em que o pensamento na altura pertencia a um jovem e arrogante gerreiro que inchava de vaidade, quando a intervalos das operações descia a cidade da Bissau e se pavoneava de orgulho, exibindo para a plateia o seu camufulado - para que saibas, eramos a única tropa autorizada a fazê-lo na cidade -, o lenço preto e a boina com fitas pretas.

Eramos já nesse tempo admirado por uns e odiado por outros. Nunca compreendi o olhar de desprezo com que alguns camaradas nos brindavam, [em Bissau]. E porquê? A maioria dos soldados que frequentavam a 5ª Rep (Café Bento), Pelicano, Zé da Amura, Ronda, Império, etc... eram militares em trânsito para regressar ao mato e que de alguma forma já tinham colado a orelha ao chão connosco em alguma picada, trilho ou destacamento. Podíamos até nem comungar dos mesmos ideais mas no perigo eramos gémeos.

Só muito mais tarde e com as mudanças da sociedade a nível político consegui decifrar o significado dos olhares que me eram dirigidos no tempo de guerra e em época posterior, já então no Regimento de Comandos da Amadora. Percebi que esses olhares vinham de algums camaradas mais esclarecidos(ou manipulados) em política e em que para eles tropas especiais era o que havia de mais desprezível no teatro de guerra. Assassinos. Comedores de criancinhas, frios e calculistas, sem ponta de emoção. Já na Amadora e com a liberdade esses ódios declararam-se e fui cuspido e chamado frontalmente de assassino.

Vem isto a propósito de quê? Quando comecei a escrever no Blogue, comecaram logo a aparecer ums vozes críticas que eu fui ignorando, direi mais, desprezando, porque realmente já 'tou farto de guerrilheiros do arame farpado e chegou ao ponto de haver aqui quem insinuasse que nós, os COMANDOS, só eramos valentes em grupo, o que quer dizer que isolado sou um cobarde.

Nunca, amigo Luis Graça, isso me imcomodou, até ao dia em que as mensagems aónimas começaram a chegar. Aí parei.Mas não foi por medo. Foi por achar que tais pessoas (?) não mereciam partilhar daquilo que me é muito íntimo. O que me pode afectar são acontecimentos e não pessoas. Sou um cota simpático, tentando alegrar os dias que vão passando e em que muita coisa já me passa ao lado e não percebo como ainda existe gente que, decorridas quase quatro décadas, ainda vive ressentida por aquilo que outros fizeram já tão longe.

Bem, amigo Luis, longe já vai este mail e o que te queria dizer é que te vou cumprir o que prometi e vou-te mandar mais apontamentos do meu diário de guerra e isso porque, se há quem não goste, há muito mais quem goste.

AMILCAR MENDES
1º Cabo Comando
38ª Companhia de Comandos (Guiné, 1972/74)
AUDACES FORTUNA JUVATE
[em latim, A Sorte Protege os Audazes]

2. Comentário de L.G.:

Camarada e amigo Amílcar:

Como já te oportunidade de te dizer (e agira passo a partillhar com o o resto dos camaradas e amigos da nossa Tabanca Grande), fico feliz pela tua decisão, sensata e generosa.

Abertamente, no nosso blogue, nunca ninguém te tratou mal... Que eu saiba, ou que me lembre, pelo menos... De qualquer modo, a malta foi aprendendo, nestes últimos 3 anos, a conviver uns com os outros e a respeitar-se, como camaradas, independentemente da arma a que cada um pertencia, do ano em que foi mobilizado, do sítio onde esteve, das ideias e valores que defendia (ou defende), etc. São mais as coisas que nos unem do que as que nos separam... O hífen, o traço de união tem sido a nossa terra, a nossa pátria, Portugal, e a Guiné, país-irmão, a que nos ligam, para além da história e da língua, afectos, emoções, memórias, vivências, amizades...

Por outro lado, e como sabes, é regra de outro, entre nós, não fazer juizos de valor sobre o comportamento militar de cada de um nós enquanto esteve no TO da Guiné... Não somos juízes e muito menos carrascos de ninguém. Agora, já não posso impedir que te mandem, cobardemente, emails anónimos... A única hipótese é ocultar (ou não divulgar mais) o teu endereço de correio electrónico... Mas não adianta. Tu não tens que ter vergonha do que escreves, pelo contrário: fostes um homem e um português do teu/nosso tempo, e que te portaste à altura, e queres dar testemunha disso... aos teus camaradas, aos teus amigos, aos teus filhos e netos, aos teus concidadãos, às gerações do futuro... Ninguém te pode roubar esse direito de contar a tua história de vida... Quem sabe até se não poderás (ou não poderemos), um dia, reunir em livro os teus escritos...

Que fique bem claro: tu e os teus camaradas, comandos, serão sempre bem vindos. Este blogue é teu, é nosso... Não fazemos distinção entre tropas especiais e tropa-macaca, a não a ser às vezes na brincadeira... Também nunca puxa dos galões, nem se rama em herói... E tu já deste mais contributos para este trabalho (colectivo) de preservação, defesa e divulgação da nossa memória de guerra, da memória da nossa geração, do que a grande maioria dos que estão cá estão inscritos, como tu, na tertúlia...

Vá, manda-me os teus textos, as tuas notas (e, se possível fotos), que tens pelo menos em mim um leitor interessado e fiel... Não te esqueças que ficaste em Gampará, f... e esfomeado, lá para o mês de Setembro ou Outubro de 1972... Aqui tens os teus dois últimos postes... Podes clicar e ver o conteúdo (2)...

Vá, recebe um Alfa Bravo do tamanho do Corubal, onde há dias estive, no Saltinho, e entre o Saltinho e o Xitole, na margem direita, em Cusselinta...

Luís Graça
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 4 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2719: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos (Amílcar Mendes)

(2) Vd. postes de:

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1930: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (1): Um sítio desolador

16 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1956: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (2): Passa-se fome, muita fome

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