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Nota do editor
Último post da série de 4 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25908: Parabéns a você (2308): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 / BCAV 490 (Mansoa, Bafatá e Jumbembém, 1963/65) e José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Mata dos Madeiros, Bassarel e Tite, 1971/73)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 5 de setembro de 2024
quarta-feira, 4 de setembro de 2024
Guiné 61/74 - P25910: Historiografia da presença portuguesa em África (439): Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Maio de 2024:
Queridos amigos,
Há na atualidade versões de um português modernizado que podem suscitar a atenção de quem se interessa pela obra daquele que foi o historiador hagiógrafo do Infante D. Henrique e que, com o concurso do testemunho oral, deu um quadro sequencial às navegações do Infante até a um período próximo da sua morte (1460). Um conjunto de historiadores, ao longo do século XX, dão uma leitura prudente de Zurara, ele comete omissões de peso, muito provavelmente aproveitou-se do trabalho de Afonso de Cerveira, habilmente nunca refere essa fonte. Atenda-se às críticas feitas à obra de Zurara por Duarte Leite, Fontoura da Costa, Barradas de Carvalho e Vitorino Magalhães Godinho, entre outros. Mas como diz Rodrigues Lapa há por vezes no trabalho historiográfico de Zurara textos de enorme talento.
Um abraço do
Mário
Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné
Mário Beja Santos
De há muito que o trabalho historiográfico de Zurara, com a preponderante Crónica dos Feitos da Guiné tem sido alvo de críticas fundamentadas de historiadores de várias gerações, como aqui se tem feito referência. Pego agora na seleção feita pelo eminente estudiosos Rodrigues Lapa para a coleção Textos Literários, um acontecimento cultural de grande peso onde Rodrigues Lapa teve um desempenho determinante. Falando nos dados biográficos de Zurara, sabe-se que só bastante tarde aprendeu as letras, segundo informação que nos é fornecido pelo latinista Mateus de Pisano, mestre de D. Afonso V, que dá a saber que este historiador do Infante D. Henrique aprendeu as letras em idade madura. E Rodrigues Lapa comenta este testemunho:
“Vem confirmar um seu defeito: o seu autodidatismo serôdio criou em Zurara uma vaidade ingénua, que gostava de se expandir em citações de fácil erudição. Não se sabe a ocupação de Zurara até aos 35 ou 40 anos. O mais provável é que enquanto jovem escudeiro fosse empregado no tombo das escrituras, guardadas na Torre do Castelo, e aí auxiliasse, como escrivão, o decrépito e glorioso Fernão Lopes. D. Afonso V encarregou Zurara de continuar a crónica de D. João I e que Fernão Lopes deixara no período de 1411. A Crónica da Tomada de Ceuta deve ter agradado aos círculos da Corte. Zurara, o plebeu engradecido, lisonjeava agora os poderosos, choveram benesses e honrarias, foi promovido a cavaleiro da Casa Real e bibliotecário do Paço e cronista, entrou na Ordem de Cristo como comendador de Alcains, certamente por interceção do Infante D. Henrique. Faltava ainda relatar as navegações ao longo da costa africana e o descobrimento de novas terras. O livro foi rapidamente composto, encarregado de o fazer em 1452, no ano seguinte estava pronta a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.”
Questiona-se como foi possível em tão curto espaço de tempo elaborar tal documento. Zurara dava muita importância ao testemunho dos navegadores do tempo. Ainda hoje parece incompreensível como a Crónica da Guiné jazeu durante séculos ignorada, até que em 1841 foi publicada sob um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Paris.
Rodrigues Lapa compara a obra de Zurara com a de Fernão Gomes, que não utilizou o testemunho oral, e que fundamentou o seu trabalho nos documentos escritos. “Temos, pois, em Fernão Lopes e em Zurara duas conceções da história: o primeiro, escrevendo a rogo do racionalista D. Duarte, funda-se no documento escrito; o segundo, escrevendo em instâncias do humanista D. Afonso V, baseia-se sobretudo no testemunho oral. Zurara teve consciência dos perigos do seu método, acresce que escolheu o seu herói, o Infante D. Henrique, a tudo sacrificou a verdade histórica, e comprovadamente foi acusado de ter praticado fraude na Torre do Tombo.” Com todos os seus defeitos e qualidades, Zurara é um apreciável escritor que apresenta na história os novos rumos da nacionalidade. Assegurada a independência do país, faz-se a política de expansão e conquista: a tomada das Praças do Norte de África e a exploração marítima da costa ocidental. Zurara é o historiador dessa época. Fernão Lopes ter-nos-ia dado talvez um quadro diferente; mas Fernão Lopes é um génio excecional, e Zurara foi apenas um cronista aplicado e por vezes talentoso. Acontece, contudo, que uma ou outra vez atinge a verdadeira arte como num quadro dos preparativos da tomada de Ceuta e nas cenas antes do assalto. Aqui chega a emparceirar com Fernão Lopes. Rodrigues Lapa, relativamente à Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, escolheu o retrato que Zurara dava do Infante D. Henrique, o que se sabia sobre o Mar Tenebroso, a chegada dos cativos de África a Lagos, talvez a mais comovente das suas descrições.
Quem pretenda aprofundar o valor historiográfico de Zurara e conhecer um pouco melhor a Crónica da Guiné, recomenda-se a edição da Livraria Civilização Editora, tem uma prosa mais modernizada e a introdução que José de Bragança fez para a mesma em 1937, aqui se explica como o documento de Zurara foi fundamental para desmontar as mentiras grosseiras que a França apresentava sobre os seus direitos na Costa da Guiné, tinha-se inventado que corsários normandos ali tinham chegado em 1364. O documento da Biblioteca Nacional de Paris também foi importante para o conhecimento do retrato do Infante, alguns peritos atribuíram logo pelos chamados Painéis de S. Vicente a figura do Infante, coberta pelo mesmo chapeirão negro que consta da biblioteca parisiense. Zurara procede à cronologia dos acontecimentos das navegações, relevando a passagem do Cabo Bojador, em 1434, por Gil Eanes. A crónica refere também o Mar Tenebroso, lenda de grande peso na Idade Média. José de Bragança não deixa de observar o sistemático silencio na Crónica da Guiné não só a respeito dos lucros com o tráfico de ouro em pó, das relações comerciais com os povos africanos do interior, mas também quanto às feitorias que o Infante mandou levantar em diferentes pontos da costa, e mesmo o que ele diz sobre o resgate de escravos tem pouca importância na crónica. Isto tudo vem a propósito de como se dele ver com prudência o documento de Zurara. Sabe-se que foi documentação que o Infante D. Henrique só depois da morte do Infante Santo (1443) começou a edificar no extremo ocidente do Algarve uma vila, onde os barcos dos mercadores pudessem encontrar poiso, a sua localização é alvo de opiniões contraditórias, tem mais peso a que atribuiu a Vila do Infante edificada na pequena península de Sagres.
Em termos de divulgação, dá-se relevo ao capítulo VII referente às cinco razões pelas quais o Infante foi movido mandar buscar as terras da Guiné; temos depois os capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, o primeiro dedicado ao quadro de sofrimento dos escravos em Lagos, os cativos chorando, todos em alvoroço, o Infante em cima de um poderoso cavalo; como o Infante mandou Gonçalo de Sintra à Guiné e ali morreu, seguiu-se, pelo adiante as viagens dos navegadores até ao Rio do Ouro, isto na edição da Crónica da introdução de José de Bragança, a edição de Rodrigues Lapa foca-se no retrato do infante, no que se pensava sobre o Mar Tenebroso e como o Infante, diz Zurara homem de mui grande autoridade, ouvindo Gil Eanes que trazia algum sinal da terra por onde Arara, encheu de contentamento o terceiro filho de D. João I que logo a seguir mandou armar um pequeno navio de carga onde seguiu Afonso Gonçalves Baldaia. Rodrigues Lapa também destaca a importância do texto sobre os cativos de África em Lagos, e fica-se por aqui, atenda-se que esta coleção de textos literários tinha uma importância primordial para os alunos de Letras no terceiro ciclo dos liceus e mesmo para certos cursos das Faculdades de Letras.
Uma das mais interessantes edições da Crónica da Guiné, com ortografia modernizada e uma interessante introdução de José de Bragança, Livraria Civilização Editora, 1973
Estátua de Zurara num monumento dedicado a Camões, no Chiado
Escultura de Zurara no Padrão dos Descobrimentos
O infante D. Henrique. Página de rosto da Crónica da Guiné, escrita por Gomes Eanes de Zurara, em 1453, ainda em vida do Infante_____________
Nota do editor
Último post da série de 28 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P25909: Timor: passado e presente (20): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XI: 1945, o ano da libertação ! (pp. 87-101)
Assistência â cerimónua de homenagem aos mortos da guerra em Timor (23 de setembro de 1945) (pág. 99)... "Ao centro, vê-se o governador Ferreira de Carvalho, fardado de capitão do exército português, lendo o seu discurso perante o brigadeiro Dyke, que está de costas para o observador, assim como dois oficiais australianos colocados mais atrás dele.
O Mastro da Bandeira da Soberania na Praia de Díli, em 23 de setembro de 1945 (pág. 96)
Restos do destruído edifício destruído da Cãmara Municipald e Timor (Setembro de 1945) (pág. 103)
Fonte: José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa: Livraria Portugal, 1972)
Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX. |
António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.
Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp. |
" Timor: ocupação japonesa dirante a Segunda Guerra Mundial,
2ª ed rev e aum, Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1996 309 pp.
Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)
Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.
Infografia : Wikipédia > Timor-Leste | Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Infografia : Wikipédia > Timor-Leste | Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive. Recorremos também a outras fontes,nomeadamennte, Rocha (1996).
Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)
Parte XI: 1945, o ano da libertação (pp. 87-101)
(i) 1945 vai ser um ano de grandes emoções para a população de Timor, e não só: a tão almejada paz chega ao território,
com o fim da guerra e a rendição dos japoneses aos Aliados...
A soberania da colónia volta a estar em mãos portuguesas. Nesses três anos e meio de ocupação do território pelas tropas do Império do Sol Nascente, morreram perto de um centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a *Portugal), mortos em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato. Sem falar das muitas dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos.
(...) Entrou o novo ano com o fornecimento pelos japoneses de
algum arroz, com casca, tal como era produzido pelos timorenses que o designam com a palavra «néli», em tétum.
Se, por um lado, foi motivo de satisfação o vermos géneros frescos que poderíamos consumir, parando com a ingestão
do arroz e mandioca podres que nos meses anteriores nos
tinham fornecido, por outro tínhamos mais um motivo de
preocupação.
Para despojar os grãos de arroz da sua casca só havia o
primitivo meio de o bater, à maneira timorense, com um pilão.
Ora, se já estávamos enfraquecidos pela prolongada privação
de alimentos suficientes, mais certamente o ficaríamos com o
esforço a que a preparação do "néli" nos obrigaria. Mas não
houve que hesitar e muitos tiveram de dar a sua quota-parte
a esse trabalho que nunca, por certo, haveriam sonhado ter
de executar.
Os bombardeamentos aliados a Lahane esmoreceram, felizmente, neste mês de janeiro, registando-se unicamente dois, e
já mais longe do hospital e do palácio.
Somente no fim da guerra soubemos que o Engenheiro
Canto havia falecido no dia 23 de fevereiro. Preso, com o
gerente Duarte em 10 de julho anterior, encontrara no quartel
da Kempy, em Díli, o tenente Liberato e o aspirante administrativo José Santa, tendo todos sido embarcados, em seguida,
num pequeno vapor que os levou à ilha holandesa de Alor, onde
ficaram encurralados num armazém da sua capital, a vila de
Kalabai, vedado a arame farpado.
Aí passaram «vida de inenarrável sofrimento e miséria»,
pois, pouco a pouco os «quiseram matar à fome» (1).
- «Outro não podia ser o propósito de quem os tratava com tamanha crueldade»;
- «Davam-lhes tigelas com três ou quatro colheres de arroz cobrindo o fundo estreito e afunilado da pequena vasilha» e «so isto»!;
- "Esperavam que, passados três meses de cativeiro, os japoneses os restituíssem à liberdade, Mas em lugar de libertação, os algozes presentearam-nos com o agravamento do regime alimentar»;
- «A fome era insuportável. Aquilo não podia continuar assim» .
Artur do Canto Resende (1897-1945) |
(...) Minados pelo paludismo, avitaminoses e miséria, sucumbiram o Engenheiro, com evidentes sintomas de escorbuto e beribéri, e o Gerente, um mês depois, a 25 de março [de 1945] .
Em meados de março fui visitado pelo vice-cônsul, senhor
Ycshitaro Susúki que me pediu o favor de ir examinar o cônsul Sotaro Hossokawa que se encontrava gravemente doente na
casa do consulado, antiga propriedade do capitão-farmacêutico
Oliveira situada perto do hospital de Lahane, do outro lado
da ribeira.
Pedida telefonicamente a necessária autorização para este
ato humanitário, ao Governador, que imediatamente a concedeu, acompanhei o vice-cônsul e encontrei o seu superior hierárquico prostrado no leito, diagnosticando-lhe uma tuberculose
pulmonar aguda para a qual, nesse tempo, não havia possibilidade de cura.
Faleceu no dia 21 de junho, conforme me informou o
senhor Suzuki que daí em diante o substituiu no consulado. (...)
(ii) Começa a haveralguns indícios de abrandamento da desumabnidade do regime de detenção
imposto aos portugueses,
concentrados na zona de Liquição-Maubara,
e completamente isolados do mundo desde meados de 1943.
(...) Subitamente, no mês de agosto [de 1945] , os japoneses pareceram
ínteressar-se pela melhoria da situação alimentar dos portugueses concentrados, comunicando ao capitão Vieira que tinham
preparado acomodações para eles, na plantação de Lebomeu da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, não longe de Fátu
Béssi, onde obteriam facilmente os géneros alimentícios necessários à sua subsistência produzidos pelos agricultores daquela
Sociedade.
Desta vez, expuseram sinceramente os seus desígnios e
cumpriram a sua palavra.
Partiram os portugueses de Liquiçá, em transporte fornecido pelos nipónicos, no dia 15, para Lebomeu, onde encontraram habitações suficientes, recentemente construídas.
Foi, então, pelo Governador nomeado chefe do reeém-criado
posto de Lebomeu o sargento António Joaquim Vicente que
se encontrava a viver no hospital de Lahane.
Situada a média altitude, com clima agradabilíssimo e
fresca e límpida água de nascente, a povoação teria condições
quase ideais para a vida de europeus se não fora um inconveniente que logo se revelou mas que, por certo, era imprevisível
para não-timorenses. Haviam as habitações sido construídas à maneira e com
materiais locais, com telhados de folhas de palmeira, tabiques
de madeira da palmeira chamada em Timor «palapeira» e forro
de tiras de bambu.
Ora, as casas timorenses reeém-construídas não podem ser
habitadas, sem que nelas sejam previamente acesas grandes
fogueiras durante muitas horas, isto para secar as suas madeiras que, deste modo, não são atacadas pelo caruncho, o qual
imediatamente as corrói, quando cortadas verdes.
Assim, ao instalarem-se os portugueses nas suas novíssimas residências, encontraram o pavimento coberto de pó da
madeira roída pelo caruncho, o qual caía do teto durante o
dia e sobretudo os incomodava à noite, quando deitados, penetrando pelas narinas e irritando-lhes as mucosas das vias respiratórias. (...)
(iii) Em 28 de agosto o tenente Liberato e o aspirante José Santa são libertados, depois do cativeiro na ilha de Alor, na parte holandesa.
A sua sobrevpvência , após 17 meses cativeiro, surpreendeu tudo e todos.
(...) Em Lahane eontinuava-se como anteriormente, embora
sentíssemos que a situação em Lebomeu parecia ser razoável,
comparada com os tempos passados.
Desconhecendo, por completo, o que se passava no Mundo,
em especial na zona de guerra, tínhamos, agora, mais esperança
que ela não se prolongasse indefinidamente e de que pudéssemos, ainda, sobreviver, pois os japoneses pareciam estar a
tratar-nos com uns lampejos de humanidade.
No dia 28 de agosto tivemos o primeiro sinal de possível
acabamento do nosso martírio. Pelas cinco horas da tarde,
chegou ao hospital o capitão Vieira trazendo no seu carro dois
homens que, depois duns momentos de dúvida e estupefacção,
reconhecemos como o tenente Liberato e o senhor José Santa,
apesar de estarem completamente desfigurados.
Magríssimos,
mas com edemas beribéricos na face e nas mãos, sem cor, olhar
apático, mal se sustendo nas fragilíssimas pernas, satisfizeram-nos a ansiada curiosidade contando-nos, em primeiro lugar
as mortes do engenheiro Canto e do gerente Duarte e a sua
odisseia em Kalabai. Depois, haviam sido obrigados a caminhar, durante muitos dias, por serem transferidos para Macuada
onde passaram «dois meses de fome e miséria, sessenta dias de
amargura, iguais aos já vividos naquela infindável peregrinação
de desterrados». (1)
E assim foi passando o tempo, seu estado era deplorável.
Corroídos pelo paludismo, minados pelo beribéri, definhados
pela fome, sem esperanças de sair daquele inferno, caíram num
estado de abatimento extremo. Só um milagre poderia salvá-los
E o milagre deu-se. (1) .
No dia 22 de agosto, comunicaram-lhes que iriam regressar a Timor e deram-lhes géneros para eles próprios cozinharem.
Na manhã seguinte, quatro indígenas trouxeram uma padiola
para transportar o tenente Liberato, Depois duma marcha
de cinco dias chegaram à praia, à qual os veio buscar uma
lancha que os desembarcou em Díli, no dia 28. Levaram-nos
para o quartel da Kempy [a polícia política] onde o sargento Nerita lhes deu de
almoçar e uns calções ao senhor Santa, para substituir os
andrajos que em parte o cobriam, nada tendo encontrado que
servisse ao tenente Liberato (1).
De tarde, conduziram-nos ao consulado nipónico. Ali jantaram e pernoitaram e ali os foi encontrar o capitão Vieira que,
por acaso, aparecera a tratar da qualquer assunto (1) .
No dia 29, apareceu o Governador, que exigiu a sua libertação, sendo entregues pelo vice-cônsul, senhor Suzuki.
Seguiram de automóvel para o palácio onde almoçaram e foram
cumulados de atenções pela família do Governador, o qual dera
ao tenente Liberato um par de calças e uma camisa, ficando em
condições de se apresentar (1) .
De tarde, o capitão Vieira foi
levá-los ao hospital onde a todos nos encontraram, «magros,
macilentos, quase irreconhecíveis, sinais evidentes do muito
que tínhamos passado, durante aqueles inolvidáveis anos sob
o domínio japonês» (1).
Descreve com todo o realismo, o tenente Liberato, num dos
seus livros (1), as impressões que nos causou a aparição
daqueles dois fantasmas no hospital.
«A nossa chegada surpreendeu-os. Não nos julgavam vivos. Todos conheciam a
crueldade dos nipónicos, adivinhavam a vida horrível, de fome
e de torturas imposta àqueles que tinham a desdita de caírem
nas suas masmorras. Por lá tinham passado dois ou três portugueses. Por lá os tinham conservado um mês, mês e meio, o
máximo. E em que estado eles tinham voltado ao convívio dos
seus compatriotas, santo Deus! Não! Era impossível resistir
dezassete meses àquela vida de inferno. Só forças sobrehumanas poderiam vencer tamanho martírio!». (...)
(iv) Em 1 de setembro, perante a incredulidade de todos (completamenmte isolados do mundo desde julho de 1943),
sabe-se a notícia do armistício.
(...) No dia 1 de setembro, ao anoitecer, surgiu no hospital o
automóvel do Governador, que o guiava, e era acompanhado
pelo capitão Vieira e tenente Alves. Imediatamente reunidos numa sala ouvimos, estupefactos,
a quase inacreditável, mas sempre ansiada notícia, de que a
guerra havia terminado.
O coronel Yoshioka, comandante das tropas japonesas,
havia-se dirigido ao palácio e comunicado oficialmente que
tinha sido assinado um armistício entre os beligerantes, cessando assim as hostilidades no Oriente.
A nossa primeira reação foi de dúvida e até de incredulidade, para alguns, pois, completamente isolados do mundo,
desde meados de julho de 1943 e habituados às falsidades dos
nipónicos, fundadamente pensávamos poder tratar-se de mais
uma mentira por eles forjada para atingirem malévolos fins.
Era, porém, verdade, como depois soubemos, faltando-lhe,
somente, o essencial pormenor de que o Japão se havia rendido
aos aliados, sem condições, no dia 15 de agosto, segundo declaração do imperador Hiro-Hito.
Destruída a cidade de Hiroshima por uma bomba, de novo
tipo, de efeitos terrivelmente desencorajantes, o governo japonês não pedira a paz e, por isso, fora lançada outra sobre
Nagasaki, no seguinte dia 9, o que motivou a decisão do
Imperador.
A rendição incondicional das forças nopónicas foi assinada
em Manilla, no dia 2 de setembro, a bordo do couraçado americano «Missouri», onde o general Mac Arthur a recebeu de uma
deputação do governo japonês constituída por dezasseis membros que aí se dirigiram para o efeito.
Manhã cedo do dia 3 de setembro, o Governador partiu
para Lebomeu, a comunicar a maravilhosa notícia aos concentrados.
Em todo o seu percurso, à ida e à volta, recebeu vibrantes
aclamações dos compatriotas timorenses e, em Lebomeu, a
cena revestiu-se de indescritível emoção e ardor patriótico,
segundo o dr. Tarroso Gomes me referiu (2).
«Não é fácil descrever o entusiasmo que se apoderou
daquela gente tão profundamente atingida pela carência de
tudo, com os ossos a desenharem-se por debaixo da pele, ao
ouvir da boca do governador que o seu martírio terminara.
«Reunidos todos na barraca que servia de Administração,
o governador dirigiu-lhes a palavra, começando por evocar a
memória dos que tinham caído pelo caminho, vítimas da sua
dedicação e do seu patriotismo e com uma referência especial
ao engenheiro Artur do Canto Resende, o qual, em circunstâncias bem difíceis, oferecera o seu concurso desinteressado e de
cuja morte se tivera conhecimento momentos antes.
"Terminando as suas palavras, entrecortadas por vezes de soluços de comoção, o governador levantou um viva a Pátria, correspondido por todos com o maior entusiasmo e logo seguido, sem se
explicar como, pelo hino nacional, cantado em coro por todos,
hmens e mulheres, crianças e velhos, no meio da mais profunda
emoção e cem lágrimas a correrem pelas faces de todos.
«Passados os instantes de júbilo, tratou-se logo de traçar
as bases para reocupar rapidamente todo o território da província. E aqueles que, pouco antes, pareciam incapazes de
qualquer esforço, levantaram-se como um só homem e ofereceram-se para cumprir essa missão. Todos queriam ser úteis e
só houve dificuldades na escolha. Quando o governador peeguntou: «E agora podemos reocupar todo o nosso território?»,
a resposta saiu nítida, firme, numa manifestação de energia
e de anseio de cooperar na missão desejada: «Vamos todos, cada
um para o seu lugar. Para isso ainda chegamos».
(v) O Governador rapidamente decide a reocupação da ilha,
de modo a garantir no terreno a soberania de Portugal.
(...) De regresso da sua feliz viagem, aguardavam o Governador, acompanhados das suas gentes, os liurais [régulos] .
de Díli, de
Laulara e de Aileu, que sentidamente o aclamaram e saudaram.
Nos dias imediatos não pararam de chegar, à residência do
governador, chefes timorenses de regiões mais distantes, à
frente da sua gente e radiantes de felicidade por poderem manifestar a sua dedicação.
Segundo o Governador me referiu, «todos vinham contentes, de uma alegria que não engana, e todos manifestaram o
desejo do nosso rápido regresso aos postos do interior, onde as
populações nos aguardavam ansiosas».
Não perdeu tempo o Governador em organizar a reocupação, declarando a Colónia em regime de administração militar
e dividida no concelho de Díli e nas circunscrições do Suro
(Aileu), Manatuto, S. Domingos (Baucau), Lautem e Fronteira
(Bobonaro).
Todos os reocupantes, funcionários ou voluntários,
ficariam subordinados, em cada zona administrativa, ao intendente militar, oficial do exército do activo ou reformado.
Encarregou-me o Governador de tomar as providências
para uma reocupação sanitária eficiente.
Rapidamente elaborei um plano que por ele foi aprovado
sem restrições. Todos os enfermeiros disponíveis seguiriam
com os intendentes militares e prestariam serviço da sua especialidade em ambulâncias que instalariam nos locais predeterminados por mim, servindo-se dos medicamentos e material de
penso e de pequena cirurgia que a todos foram entregues, na
mesma qualidade e quantidade.
Aos dois únicos médicos sobreviventes, que também se ofereceram para participar da reocupação, ordenou o Governador
a permanência nas ambulâncias de Lahane e de Liquiçá, prontos a actuar em qualquer emergência, deslocando-se aos locais
onde a sua presença se mostrasse conveniente.
As principais dificuldades da obra da reocupação consistiram na ausência de pessoal especializado e do necessário material para o transporte das gentes.
A segunda, desapareceu com a entrega pelos japoneses, no
dia 6 de setembro, de razoável quantidade de gasolina e óleo e
de três automóveis, nove camionetas de dois mil quilos e de
um carro-oficina.
A primeira, também foi facilmente eliminada,
pois logo surgiram voluntários, em especial deportados, com
que se improvisaram motoristas e mecânicos que se mostraram
completamente à altura das suas tarefas.
(...) Por fim, os japoneses começam a evacuar a ilha, a partir de 6 de setembro... A reocupação dos postos-chave da adminitração do território faz-se em tempo recorde (catorze dias)
por um escasso número de duas centenas de homens, funcionários e voluntários, incluindo deportados.
Neste mesmo dia, 6 de setembro, começaram os japoneses a evacuar a
ilha, seguindo em barcaças de desembarque para a ilha de Alor
e outros, por terra, para a parte holandesa de Timor.
Para poder oficializar as suas determinações, lançou o
Governador mão do recurso de me nomear vogal oficial do
Conselho do Governo e da sua secção permanente, podendo
assim, esta última, passar a funcionar novamente.
Assim, foi colocado nas várias circunscrições e postos o
pessoal necessário para se fazer a reocupação. Para preencher
os cargos indispensáveis houve que lançar mão de funcionários
do activo, reformados militares, funcionários aposentados e
até de particulares, porque não havia outros.
Em 9 de setembro chegou a Lahane o primeiro pessoal
de Lebomeu, ficando em 10 aí reunidas as equipas de reocupação dos postos administrativos do concelho de Dili e da circunscrição do Suro.
Neste mesmo dia 10 chegou a Díli uma estação-rádio que
os japoneses haviam mandado vir de Koepang, a pedido do
Governador, e que em seguida nos entregaram. Dela imediatamente se encarregou o único radiotelegrafista de que dispúnhamos, Alarico Guterres Fernandes, que o Governador tinha
mandado vir, dias antes, do território de Oecússi.
Concluído todo o trabalho de organização da reocupação
no dia 11 à noite, iniciou-se esse serviço na manhã de 12, pelos
postos de Liquiçá e Maubara, com a partida para esses locais
das equipas respetivas.
Nesta mesma manhã o Governador
voltou a Liquiçá e a Maubara. Nesta última localidade agradeceu e louvou ao liurai, coronel José Nunes a sua extrema
lealdade, convidando-o a içar no mastro do posto a bandeira
nacional, como justo prémio da sua dedicação.
Ao fim da tarde do dia 12 sentimos em Lahane o estampido
de várias explosões, elevando-se uma enorme nuvem de fumo
para os lados de Tai-Béssi. Soubemos depois que os japoneses
haviam lançado fogo ao seu parque automóvel, constituído por
mais de trezentas viaturas.
Na noite de 13 conseguiu o radiotelegrafista Alarico comunicar com a estação de Macau, o que permitiu a expedição de
telegramas para Lisboa e a receção de comunicações do
Governo.
Nesse mesmo dia ficou completada a reocupação dos
postos administrativos do concelho de Díli, cujo intendente
militar era o capitão Vieira, pela instalação em Laulara do
chefe de posto Torresão com o pessoal respectivo.
Em 14, o tenente reformado José Augusto Gomes, intendente militar do Suro, participou ao Governador a completa
reocupação desta circunscrição.
Na manhã do dia 15 partiu para Bobonaro a equipa de
reocupação da circunscrição da Fronteira, chefiada pelo intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes, a qual
aí chegou à noite.
Somente em 17 à tarde se conseguiu reunir
em Lahane as três equipas destinadas às circunscrições de leste
que partiram, simultaneamente, a 18.
Ao meio dia, chegaram a Manatuto, onde ficou a equipa
chefiada pelo tenente reformado José Afonso Ribeiro.
A equipa de reocupação da circunscrição de S. Domingos,
chefiada pelo tenente António de Oliveira Liberato, alcançou
Baucau às 17 horas.
A equipa de Lautem, chefiada pelo tenente
Jaime Hermínio Ramalho dos Santos, ficou em Baucau nessa
noite e, às 11 horas e quarenta minutos do dia 19 de setembro,
alcançava a sede da circunscrição.
Ficou assim concluída a reocupação total da colónia, levada
a efeito sem armas, por um grupo de:
- 163 portugueses não-timorenses;
- 19 funcionários timorenses;
- e 14 assalariados permanentes timorenses,
que tantos foram os que permaneciam em
Timor e se apresentaram ao serviço até ao final da reocupação,
no período exacto de catorze dias contados da data em que foi
comunicada a libertação completa da colónia.
Dos não-timorenses (n=163):
- 81 foram ocupar os vários postos administrativos, fazendo a sua reocupação administrativa, missionária e sanitária;
- 37 ficaram em Lahane trabalhando nos vários serviços da colónia;
- 19 reocuparam as suas propriedades agrícolas em Maubara e Fátu-Béssi;
- e 26 não puderam, pelo seu precário estado de saúde, ser utilizados, de momento, em qualquer serviço.
«Isto só foi possível mercê do extraordinário patriotismo
desse punhado de portugueses que, apesar de doentes na sua
quase totalidade e de todos estarem fortemente depauperados
e num estado de magreza que quase os tornava irreconhecíveis, souberam encontrar na sua excecional vontade de bem-servir
a energia suficiente para produzirem um esforço que seria
muito grande mesmo para quem estivesse em condições normais.
"A reocupação de Timor, feita nas condições em que o
foi, e justo título de orgulho para quem nela interveio, e foi,
sem dúvida, uma alta afirmação perante o Mundo da excelência
dos nossos meios de colonização» (3) .
Em todos os locais da colónia foram recebidos os reocpantes com as mais sinceras e profundas demonstrações de
amizade e carinho pelos povos timorenses, não se tendo registado qualquer incidente que perturbasse o ambiente de euforia
do reencontro, todos irmanados por um puro ideal de fraternidade e paz.
(v) O dr. Cal Brandão regressa da Austrália e conta-nos, no seu livro de memórias, como foram os emocioantes últimos dias de setembro de 1945: a homenagem, conjunta, por portugueses, timorenses e australianos de homenagem aos mortos; o hastear da bandeira portuguesa; a notícia, a 25, de que dois dias depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco,
vindos de Lourenço Marques.
(...) Na manhã do dia 22 de setembro, amarou na baía de Díli um
grande hidroavião australiano, depois de ter circumnavegado
em saudação, por três vezes, a cidade onde se erguia altaneiro
mastro com a bandeira nacional hasteada, construído e levantado sob a direcção do deportado, senhor Serafim Martins (4).
Passou o hidroavião, também, pelo hospital de Lahane, inclinando-se lateralmente em saudação à bandeira de Portugal,
que nele sempre tremulara durante a guerra, correspondendo
aos acenos amigos que todos nós lhe dirigíamos.
Passadas duas horas, chegou ao hospital um automóvel do Governador, do qual desceram dois soldados australianos, desarmados, e o dr. Cal Brandão, com o qual eu sempre tivera relações de simpática cortesia, após apresentação recíproca do
nosso comum amigo dr. Correia Teles.
De pouco tempo dispunha para estar connosco nesta visita
que fazia ao hospital para poder abraçar os seus cunhados,
senhores José Santa e Vítor Santa. Assim, foi de fugida que
nos referiu alguns acontecimentos que se tinham passado e dos
quais não poderíamos ter tido qualquer notícia.
O coronel Castilho havia falecido na Austrália, vitimado
por tuberculose pulmonar, e o padre Jaime Garcia Goulart era,
agora, o bispo de Timor, por nomeação pontifícia. Os Aliados
haviam derrotado e esmagado todos os seus inimigos.
Do livro do Dr. Cal Brandão (4) extraio alguns elementos
sobre a sua vinda da Austrália, no fim da guerra.
Um representante do Ministério dos Estrangeiros australiano, mr. Forsyth, convidara-o a acompanhá-lo a Timor, como
seu intérprete, fazendo também parte do grupo mr. Manderson,
um australiano que, anos antes, vivera nessa nossa província e
falava português.
Viajaram em avião de Sidney para Port Darwin e daqui,
embarcados num hidroavião «Catalina» seguiram para Koepang,
ao encontro do brigadeiro Dyke que nesta cidade recebera a rendição do general-comandante das tropas japonesas, em todo
o Timor (5) , no dia 11 de setembro.
O brigadeiro comunicou-lhes que havia ordenado a concentração do grande número de nipónicos que se entregavam,
em Atambua, próximo da nossa fronteira, para onde seguiriam.
(,,,) Também, os contingentes que guarneciam o Timor português,
com exceção dum grupo de 170 homens que ficara encarregado
de guardar o material até à sua verificação e entrega.
«O brigadeiro necessitava ir a Díli para esse fim e, ainda,
para proceder à pesquisa das sepulturas dos guerrilheiros que
ali tinham tombado».
«O governo australiano, em atenção à neutralidade portuguesa, não quis que a visita do brigadeiro tomasse o aspeto
duma operação militar, pelo que enviava um agente diplomático
para, com a sua presença, marcar o carácter amigo da obrigação
que impendia sobre o exército».
«De Koepang, por intermédio do general japonês que transmitia as instruções dos vencedores ao oficial-comandante em
Díli, o brigadeiro informou o governador português da chegada,
no dia seguinte, dum seu representante».
«Na manhã do dia 22, a bordo dum "Catilina", seguia um
major acompanhado dum oficial da RAAF (6), intérprete
de japonês, e o grupo enviado pelo Ministério dos Estrangeiros».
«Quando o aparelho, depois de deslisar nas águas do canal,
foi parar à entrada do porto, vimos aproximar-se uma pequena
embarcação a remos, arvorando a bandeira portuguesa, na qual
se destacava a figura branca dum homem esquelético, que só
muito ao perto reconheci como sendo o capitão-dos-portos.» (7)
«Disse-lhe ao que íamos, pedindo-lhe que solicitasse do
Governador a fineza de receber aquela missão. Mas não era
necessário, pois estava já autorizado a levar-nos para a praia
onde nos esperava o capitão-ajudante» (8).
No hospital o dr. Cal Brandão distribuiu abraços ao
reduzido número de conhecidos e amigos que ali se encontravam. :
«Era uma meia dúzia apenas, entre os quais o velho Brian,
mas esqueléticos, quase irreconhecíveis à primeira vista, deixando ver as canelas descarnadas a fugir daqueles calções que,
outrora, haviam sido calças».
«Tinham lágrimas de comoção ao apertar nos ósseos braços o primeiro português que chegava junto a eles, depois de tão
longo sofrimento, de tanta humilhação e fome».
«Gaguejavam no atropelo de perguntas, querendo saber
de amigos ou de pessoas de família que tinham faltado à concentração de Liquiçá, e supunham na Austrália. Queriam notícias do mundo, da guerra, das coisas de Portugal. À pressa, porque me esperavam, fui respondendo, distribuindo os poucos
jornais e cigarros que levava comigo».
«No Palácio que estava pouco danificado, mas sem um
único vidro, encontrámos o Governador e os funcionários de
que se rodeara para a receção. Todos impressionantemente
magros, mas bem vestidos.».
«Disse o major (9) ao que ia, do desejo que o brigadeiro
tinha em vir a Díli, e dos objetivos em vista».
«Bebidas, com as costumadas saudações, os uísques que
o Governador gentilmente oferecera, partimos a levar ao brigadeiro a certeza do seu bom acolhimento».
«Na manhã de 23, cerca das nove horas, estávamos de
volta, a bordo duma esquadrilha de 5 corvetas, uma das quais,
a 'Gladstone', arvorava as insígnias do brigadeiro comandante
militar».
«Uma vez chegados à residência do Governador, e após os
cumprimentos, realizou-se a conferência solicitada. O brigadeiro expôs o seu objetivo: inutilização do material de guerra;
repatriação dos prisioneiros de guerra dos japoneses, uma
centena de indianos e indonésios; localização das sepulturas
dos guerrilheiros australianos mortos no Timor português;
investigações das atrocidades cometidas pelos nipónicos».
«O Governador concedia todas as facilidades aos trabalhos que se pretendia realizar, exceção feita à matéria de investigações, a qual não podia autorizar sem prévia consulta ao
Governo central».
«Por sua sugestão, assentou-se que só os oficiais australilanos desembarcariam armados, devendo os soldados que os
acompanhassem apresentar-se sem qualquer arma».
«O Governador ofereceu, em seguida um bem servido
almoço, para o qual o australiano concorreu com o pão, aquele
pão alvo e delicioso que os portugueses não provavam desde
há muitos e longos meses».
«Na tarde do dia 23 realizou-se uma homenagem aos mortos da guerra, em Timor».
«Na base do mastro, erguido junto às ruínas da alfândega,
foi preparado um recinto ornamentado com folhas de palmeira
e buganvílias, a entrada do qual se fazia por duas ruas dispostas em V, o sinal da vitória, traçadas no atapetado da relva
guarnecidas a flores tropicais».
«O brigadeiro, num discurso breve, manifestou a alegria
que o povo australiano comungava com os portugueses pela
libertação de Timor e, num agradecimento, referiu-se à cooperação e simpatia que os portugueses lhe dispensaram para poder levar a cabo uma das suas missões, a de encontrar os vinte e
três túmulos dos seus soldados.
«O Governador português, prestando a sua homenagem
a todos os mortos, terminou: «Esta cerimónia é o fim de anos de paciente sofrer. As relações entre as forças australianas
em Timor e o meu governo, têm decorrido sempre numa base
da melhor amizade, e continuará a ser assim'.».
«O brigadeiro colocou junto do mastro uma coroa de belas
rosas da Ermera, dedicada aos portugueses mortos e o Governador depôs uma coroa igual, aos mortos australianos».
«A guarda de honra foi feita por trinta soldados australianos, que eram todos os que tinham acompanhado o brigadeiro,
e pelos oficiais do exército e marinha, desarmados e em continência, enquanto a sirene da corveta-chefe apitava em lúgubre
despedida, e o clarim executava o 'último toque' ".
A emocionante cerimónia terminou com o tradicional 'minuto de silêncio' (10) e a ela assistiram uma multidão de
timorenses e os poucos funcionários e pessoas da sua família
que então se encontravam em Díli.
Numa preciosa fotografia que possuo, identificam-se quase
todos os não-timorenses presentes. (...)
(...) Conta-nos o Dr. Cal Brandão (4) que na noite do dia 23,
o brigadeiro Dyke ofereceu uma jantar íntimo ao Governador,
que teve lugar a bordo da corveta «Moresby».
No dia seguinte regressaram à Austrália os cinco navios,
tendo ficado em Timor dois oficiais, com a missão de procurarem as campas dos australianos mortos durante a guerra, o que
fora autorizado pelo Governador, com a condição de seguirem
desarmados, responsabilizando-se ele, inteiramente, pela sua
segurança em qualquer parte da colónia.
No dia 25 soube-se, oficialmente a notícia de que dois dias
depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu, Dias e Gonçalves
Zarco, vindos de Lourenço Marques. (...)
________________
Notas do autor (JSC):
(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.
(2) Vide jornal "Novidades", de 3 de setembro de 1970, artigo de Tarrroso Gomes, «A Libertação de Timor».
(3) São estas palavras do governador de Timor, capitão Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.
(4) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.
(5) O general-comandante das forças japonesas em todo o Timor, era o major-general Tchiòda, cujo nome ouvi ao vice-cônsul, senhor Suzuki.
(6) Royal Australian Air Force.
(7) O capitão-dos-portos de Timor era o cabo verdeano, capitão-tenente César Gomes Barbosa.
(8) O capitão-ajudante do Governador era o capitão de infantria, Manuel do Nascimento Vieira.
(9) O major australiano, representante do brigadeiro Dyke.
(10) O texto integral dos discursos do Governador e do brigadeiro Dyke, pode ser lido no artigo do Dr. Tarroso Gomes, «A Libertação de Timor» inserto no jornal «Novidades» de 24 de Setembro de 1970.
(Continua)
(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, parênteses retos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)
________________
Notas do editor:
Guiné 61/74 - P25908: Parabéns a você (2308): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 / BCAV 490 (Mansoa, Bafatá e Jumbembém, 1963/65) e José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Mata dos Madeiros, Bassarel e Tite, 1971/73)
_____________
Nota do editor
Último post da série de3 de Setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25906: Parabéns a você (2307): Luís Gonçalves Vaz, Amigo Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)
terça-feira, 3 de setembro de 2024
Guiné 61/74 - P25907: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VIII: Nascido por volta de 1893, terá chegado à Guiné depois da I Grande Guerra, tendo-se instalado em Bolama, nos Bijagós e, mais tarde, em Ganjola: em 1960 produzia duas mil toneladas de arroz (Recorte de jornal, enviado pelo Manuel Barros Castro, que o conheceu pessoalmente, e que foi fur mil enf, CCAÇ 414, Catió, 1963/645, e Cabo Verde, 1964/65)
Em 1960/1961 tinha 68 anos, e mais de 40 anos de Guiné. Pelas nossas contas, terá nascido por volta de 1892/93, e terá chegado à Guiné depois da I Grande Guerra, c. 1918/19. São as primeiras fotos que temos do "velho Brandão" de Bolama, de Ganjolá, da ilha do Como, de Catió.
Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf,
CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1964/65);
nascido em 1940, Pica, São Gens, Fafe;
é um dos nossos "veteraníssimos";
integra a nossa Tabanca Grande desde 4/7/2019;
tem 18 referências no blogue
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barros Castro:
Data - domingo, 1/09/2024, 16:57
Assuntio - Manuel Brandão
Caro Camarada Carlos Vinhal,
Ao entrar no blogue deparou-se-me a notícia de uma reclamação apresentada pelo sr. Manuel de Pinho Brandão, em 1935.
O meu camarada Manuel Silva emprestou-me o n.º 95 da revista ilustrada “Portugal d`aquém e d`além mar”, do ano XXIV, da qual extraí as digitalizações aqui anexas sobre o sr Brandão, que conheci pessoalmente em Ganjola.
Junto, também a capa da revista.
Com grande abraço,
Manuel Castro (tabanqueiro 793).
Data - domingo, 1/09/2024, 16:57
Assuntio - Manuel Brandão
Caro Camarada Carlos Vinhal,
Ao entrar no blogue deparou-se-me a notícia de uma reclamação apresentada pelo sr. Manuel de Pinho Brandão, em 1935.
O meu camarada Manuel Silva emprestou-me o n.º 95 da revista ilustrada “Portugal d`aquém e d`além mar”, do ano XXIV, da qual extraí as digitalizações aqui anexas sobre o sr Brandão, que conheci pessoalmente em Ganjola.
Junto, também a capa da revista.
Com grande abraço,
Manuel Castro (tabanqueiro 793).
Ficamos a saber algo mais sobre a história (até então de sucesso) deste "beirão", de "espírito industrioso e coração magnânimo", que vivia em Ganjola, "como um rei, nos seus vastos domínios, em cuja coroa está gravado o honrado brasão do trabalho" (...), "feliz, entre os seus leais súbditos,preocupado apenas com o bom governo do seu reino", e raramente "transpo(ndo) as suas fronteiras".
O Santos Guerra vai visitá-lo "de surpresa", encontrando-o em plena atividade, no campo, "em cima do camião carregado de sacos e de pretos, de peito e barriga à vela" (sic).
Não há qualquer referência aos seus primórdios na Guiné, e às razões que o levaram até lá... Nem à sua família.
Estabeleceu-se primeiro em Bolama e nos Bijagós (apanhou a guerra de Canhabaque, em 1936), para se tornar mais tarde um grande agricultor, instalando-se em Tombali... Produzia erntão mais de 2 mil toneladas de arroz... Tinha meia centena de trabalhadores permanentes (e três vezes mais, de trabalhadores sazonais) e já um parque de máquinas, razoável para a época.
(A quantidade de produção de arrroz, destinado a exportação e ao consumo interno, era notável, sabendo-se que a média de exportação do arroz, na Guiné, no período de 1956-60 foi de 1398 toneladas e no valor de 4238 contos, destinada sobretudo a Cabo Verde. LG. )
Em suma, o Manuel de Pinho Brandão era um típico colono na época, cujo património e atividade (agrícola e comercial) vão ser profundamente afetados com o início da guerra, a começar pela ocupação da ilha do Como pelo PAIGC em 1963. Do retrato que o autor lhe faz, ficamos também a saber que, "embora de aspeto rude", tinha "boa presença", era "amável" (...) "conversa(va) muito bem e não e(ra) nada tolo".
E o autor remata com um piscar de olho a Lisboa: "Não seria demais o Governo da Nação tributar-lhe a homenagem que ele merece"... O que, pensamos, nunca chegou a acontecer: com a guerra, o velho Brandão caiu em desgraça e perecebe-se a razão por que ele nunca quis nada com a tropa de Catió...
Portugal d'Aquém e d'Além Mar - Revista Ilustrada, Ano XXIV, nº 95, março de 1961
Proprietário, diretor e editor: Manuel dos Santos Guerra, pp. 38-39.
(Recortes, revisão / fixação de texto: LG)
_________________
Último poste da série > 2 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25903: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VII: A Bolama de finais dos anos 30
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