quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25910: Historiografia da presença portuguesa em África (439): Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Há na atualidade versões de um português modernizado que podem suscitar a atenção de quem se interessa pela obra daquele que foi o historiador hagiógrafo do Infante D. Henrique e que, com o concurso do testemunho oral, deu um quadro sequencial às navegações do Infante até a um período próximo da sua morte (1460). Um conjunto de historiadores, ao longo do século XX, dão uma leitura prudente de Zurara, ele comete omissões de peso, muito provavelmente aproveitou-se do trabalho de Afonso de Cerveira, habilmente nunca refere essa fonte. Atenda-se às críticas feitas à obra de Zurara por Duarte Leite, Fontoura da Costa, Barradas de Carvalho e Vitorino Magalhães Godinho, entre outros. Mas como diz Rodrigues Lapa há por vezes no trabalho historiográfico de Zurara textos de enorme talento.

Um abraço do
Mário


Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné

Mário Beja Santos

De há muito que o trabalho historiográfico de Zurara, com a preponderante Crónica dos Feitos da Guiné tem sido alvo de críticas fundamentadas de historiadores de várias gerações, como aqui se tem feito referência. Pego agora na seleção feita pelo eminente estudiosos Rodrigues Lapa para a coleção Textos Literários, um acontecimento cultural de grande peso onde Rodrigues Lapa teve um desempenho determinante. Falando nos dados biográficos de Zurara, sabe-se que só bastante tarde aprendeu as letras, segundo informação que nos é fornecido pelo latinista Mateus de Pisano, mestre de D. Afonso V, que dá a saber que este historiador do Infante D. Henrique aprendeu as letras em idade madura. E Rodrigues Lapa comenta este testemunho:
“Vem confirmar um seu defeito: o seu autodidatismo serôdio criou em Zurara uma vaidade ingénua, que gostava de se expandir em citações de fácil erudição. Não se sabe a ocupação de Zurara até aos 35 ou 40 anos. O mais provável é que enquanto jovem escudeiro fosse empregado no tombo das escrituras, guardadas na Torre do Castelo, e aí auxiliasse, como escrivão, o decrépito e glorioso Fernão Lopes. D. Afonso V encarregou Zurara de continuar a crónica de D. João I e que Fernão Lopes deixara no período de 1411. A Crónica da Tomada de Ceuta deve ter agradado aos círculos da Corte. Zurara, o plebeu engradecido, lisonjeava agora os poderosos, choveram benesses e honrarias, foi promovido a cavaleiro da Casa Real e bibliotecário do Paço e cronista, entrou na Ordem de Cristo como comendador de Alcains, certamente por interceção do Infante D. Henrique. Faltava ainda relatar as navegações ao longo da costa africana e o descobrimento de novas terras. O livro foi rapidamente composto, encarregado de o fazer em 1452, no ano seguinte estava pronta a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.”
Questiona-se como foi possível em tão curto espaço de tempo elaborar tal documento. Zurara dava muita importância ao testemunho dos navegadores do tempo. Ainda hoje parece incompreensível como a Crónica da Guiné jazeu durante séculos ignorada, até que em 1841 foi publicada sob um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Paris.

Rodrigues Lapa compara a obra de Zurara com a de Fernão Gomes, que não utilizou o testemunho oral, e que fundamentou o seu trabalho nos documentos escritos. “Temos, pois, em Fernão Lopes e em Zurara duas conceções da história: o primeiro, escrevendo a rogo do racionalista D. Duarte, funda-se no documento escrito; o segundo, escrevendo em instâncias do humanista D. Afonso V, baseia-se sobretudo no testemunho oral. Zurara teve consciência dos perigos do seu método, acresce que escolheu o seu herói, o Infante D. Henrique, a tudo sacrificou a verdade histórica, e comprovadamente foi acusado de ter praticado fraude na Torre do Tombo.” Com todos os seus defeitos e qualidades, Zurara é um apreciável escritor que apresenta na história os novos rumos da nacionalidade. Assegurada a independência do país, faz-se a política de expansão e conquista: a tomada das Praças do Norte de África e a exploração marítima da costa ocidental. Zurara é o historiador dessa época. Fernão Lopes ter-nos-ia dado talvez um quadro diferente; mas Fernão Lopes é um génio excecional, e Zurara foi apenas um cronista aplicado e por vezes talentoso. Acontece, contudo, que uma ou outra vez atinge a verdadeira arte como num quadro dos preparativos da tomada de Ceuta e nas cenas antes do assalto. Aqui chega a emparceirar com Fernão Lopes. Rodrigues Lapa, relativamente à Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, escolheu o retrato que Zurara dava do Infante D. Henrique, o que se sabia sobre o Mar Tenebroso, a chegada dos cativos de África a Lagos, talvez a mais comovente das suas descrições.

Quem pretenda aprofundar o valor historiográfico de Zurara e conhecer um pouco melhor a Crónica da Guiné, recomenda-se a edição da Livraria Civilização Editora, tem uma prosa mais modernizada e a introdução que José de Bragança fez para a mesma em 1937, aqui se explica como o documento de Zurara foi fundamental para desmontar as mentiras grosseiras que a França apresentava sobre os seus direitos na Costa da Guiné, tinha-se inventado que corsários normandos ali tinham chegado em 1364. O documento da Biblioteca Nacional de Paris também foi importante para o conhecimento do retrato do Infante, alguns peritos atribuíram logo pelos chamados Painéis de S. Vicente a figura do Infante, coberta pelo mesmo chapeirão negro que consta da biblioteca parisiense. Zurara procede à cronologia dos acontecimentos das navegações, relevando a passagem do Cabo Bojador, em 1434, por Gil Eanes. A crónica refere também o Mar Tenebroso, lenda de grande peso na Idade Média. José de Bragança não deixa de observar o sistemático silencio na Crónica da Guiné não só a respeito dos lucros com o tráfico de ouro em pó, das relações comerciais com os povos africanos do interior, mas também quanto às feitorias que o Infante mandou levantar em diferentes pontos da costa, e mesmo o que ele diz sobre o resgate de escravos tem pouca importância na crónica. Isto tudo vem a propósito de como se dele ver com prudência o documento de Zurara. Sabe-se que foi documentação que o Infante D. Henrique só depois da morte do Infante Santo (1443) começou a edificar no extremo ocidente do Algarve uma vila, onde os barcos dos mercadores pudessem encontrar poiso, a sua localização é alvo de opiniões contraditórias, tem mais peso a que atribuiu a Vila do Infante edificada na pequena península de Sagres.

Em termos de divulgação, dá-se relevo ao capítulo VII referente às cinco razões pelas quais o Infante foi movido mandar buscar as terras da Guiné; temos depois os capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, o primeiro dedicado ao quadro de sofrimento dos escravos em Lagos, os cativos chorando, todos em alvoroço, o Infante em cima de um poderoso cavalo; como o Infante mandou Gonçalo de Sintra à Guiné e ali morreu, seguiu-se, pelo adiante as viagens dos navegadores até ao Rio do Ouro, isto na edição da Crónica da introdução de José de Bragança, a edição de Rodrigues Lapa foca-se no retrato do infante, no que se pensava sobre o Mar Tenebroso e como o Infante, diz Zurara homem de mui grande autoridade, ouvindo Gil Eanes que trazia algum sinal da terra por onde Arara, encheu de contentamento o terceiro filho de D. João I que logo a seguir mandou armar um pequeno navio de carga onde seguiu Afonso Gonçalves Baldaia. Rodrigues Lapa também destaca a importância do texto sobre os cativos de África em Lagos, e fica-se por aqui, atenda-se que esta coleção de textos literários tinha uma importância primordial para os alunos de Letras no terceiro ciclo dos liceus e mesmo para certos cursos das Faculdades de Letras.
Uma das mais interessantes edições da Crónica da Guiné, com ortografia modernizada e uma interessante introdução de José de Bragança, Livraria Civilização Editora, 1973
Estátua de Zurara num monumento dedicado a Camões, no Chiado
Escultura de Zurara no Padrão dos Descobrimentos
O infante D. Henrique. Página de rosto da Crónica da Guiné, escrita por Gomes Eanes de Zurara, em 1453, ainda em vida do Infante

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Nota do editor

Último post da série de 28 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25909: Timor: passado e presente (20): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XI: 1945, o ano da libertação ! (pp. 87-101)


Assistência â cerimónua de homenagem aos mortos da guerra em Timor (23 de setembro de 1945) (pág. 99)... "Ao centro, vê-se o governador Ferreira de Carvalho, fardado de capitão do exército português, lendo o seu discurso perante o brigadeiro Dyke, que está de costas para o observador, assim como dois oficiais australianos colocados mais atrás dele. 


O Mastro da Bandeira da Soberania na Praia de Díli, em 23 de setembro de 1945  (pág. 96)



Restos do destruído edifício destruído da Cãmara Municipald e Timor (Setembro de 1945) (pág.  103)


Fonte: José  dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa: Livraria Portugal, 1972)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.





Capa do livro de Carlos Vieira da Rocha,
" Timor: ocupação japonesa dirante a Segunda Guerra Mundial,
2ª ed rev e aum, Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1996 309 pp.





Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive. Recorremos também a outras fontes,nomeadamennte, Rocha (1996).


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte XI:    1945, o ano da libertação (pp. 87-101)

 

(i) 1945 vai ser um ano de grandes emoções para a população de Timor, e não só: a tão almejada paz chega ao território, 
com o fim da guerra  e a rendição dos japoneses aos Aliados...

A soberania da colónia volta a estar em mãos portuguesas. Nesses três anos e meio de ocupação do território pelas tropas do Império do Sol Nascente, morreram perto de um centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a *Portugal), mortos em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato.  Sem falar das muitas  dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos.



(...) Entrou o novo ano com o fornecimento pelos japoneses de algum arroz, com casca, tal como era produzido pelos timorenses que o designam com a palavra «néli», em tétum. 

 Se, por um lado, foi motivo de satisfação o vermos géneros frescos que poderíamos consumir, parando com a ingestão do arroz e mandioca podres que nos meses anteriores nos tinham fornecido, por outro tínhamos mais um motivo de preocupação. Para despojar os grãos de arroz da sua casca só havia o primitivo meio de o bater, à maneira timorense, com um pilão. Ora, se já estávamos enfraquecidos pela prolongada privação de alimentos suficientes, mais certamente o ficaríamos com o esforço a que a preparação do "néli" nos obrigaria. Mas não houve que hesitar e muitos tiveram de dar a sua quota-parte a esse trabalho que nunca, por certo, haveriam sonhado ter de executar. 

 Os bombardeamentos aliados a Lahane esmoreceram, felizmente, neste mês de janeiro, registando-se unicamente dois, e já mais longe do hospital e do palácio. 

 Somente no fim da guerra soubemos que o Engenheiro Canto havia falecido no dia 23 de fevereiro.  Preso, com o gerente Duarte em 10 de julho anterior, encontrara no quartel da Kempy, em Díli, o tenente Liberato e o aspirante administrativo José Santa, tendo todos sido embarcados, em seguida, num pequeno vapor que os levou à ilha holandesa de Alor, onde ficaram encurralados num armazém da sua capital, a vila de Kalabai, vedado a arame farpado. 

 Aí passaram «vida de inenarrável sofrimento e miséria», pois, pouco a pouco os «quiseram matar à fome» (1). 

  • «Outro não podia ser o propósito de quem os tratava com tamanha crueldade»;
  • «Davam-lhes tigelas com três ou quatro colheres de arroz cobrindo o fundo estreito e afunilado da pequena vasilha» e «so isto»!; 
  • "Esperavam que, passados três meses de cativeiro, os japoneses os restituíssem à liberdade, Mas em lugar de libertação, os algozes presentearam-nos com o agravamento do regime alimentar»;
  • «A fome era insuportável. Aquilo não podia continuar assim» . 


Artur do Canto
 Resende
(1897-1945)

(...) Minados pelo paludismo, avitaminoses e miséria, sucumbiram o Engenheiro, com evidentes sintomas de escorbuto e beribéri, e o Gerente, um mês depois, 
a 25 de março [de 1945] .

 Em meados de março fui visitado pelo vice-cônsul, senhor Ycshitaro Susúki que me pediu o favor de ir examinar o cônsul Sotaro Hossokawa que se encontrava gravemente doente na casa do consulado, antiga propriedade do capitão-farmacêutico Oliveira situada perto do hospital de Lahane, do outro lado da ribeira. 

Pedida telefonicamente a necessária autorização para este ato humanitário, ao Governador, que imediatamente a concedeu, acompanhei o vice-cônsul e encontrei o seu superior hierárquico prostrado no leito, diagnosticando-lhe uma tuberculose pulmonar aguda para a qual, nesse tempo, não havia possibilidade de cura. Faleceu no dia 21 de junho, conforme me informou o senhor Suzuki que daí em diante o substituiu no consulado. (...)

(ii) Começa a haveralguns  indícios de abrandamento da desumabnidade do regime de detenção 
imposto aos portugueses, 
concentrados na zona de Liquição-Maubara,
 e completamente isolados do mundo desde meados de 1943.


 (...) Subitamente, no mês de agosto [de 1945]  , os japoneses pareceram ínteressar-se pela melhoria da situação alimentar dos portugueses concentrados, comunicando ao capitão Vieira que tinham preparado acomodações para eles, na plantação de Lebomeu da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, não longe de Fátu Béssi, onde obteriam facilmente os géneros alimentícios necessários à sua subsistência produzidos pelos agricultores daquela Sociedade. 

 Desta vez, expuseram sinceramente os seus desígnios e cumpriram a sua palavra. Partiram os portugueses de Liquiçá, em transporte fornecido pelos nipónicos, no dia 15, para Lebomeu, onde encontraram habitações suficientes, recentemente construídas. Foi, então, pelo Governador nomeado chefe do reeém-criado posto de Lebomeu o sargento António Joaquim Vicente que se encontrava a viver no hospital de Lahane. 

 Situada a média altitude, com clima agradabilíssimo e fresca e límpida água de nascente, a povoação teria condições quase ideais para a vida de europeus se não fora um inconveniente que logo se revelou mas que, por certo, era imprevisível para não-timorenses. Haviam as habitações sido construídas à maneira e com materiais locais, com telhados de folhas de palmeira, tabiques de madeira da palmeira chamada em Timor «palapeira» e forro de tiras de bambu. 

 Ora, as casas timorenses reeém-construídas não podem ser habitadas, sem que nelas sejam previamente acesas grandes fogueiras durante muitas horas, isto para secar as suas madeiras que, deste modo, não são atacadas pelo caruncho, o qual imediatamente as corrói, quando cortadas verdes. 

 Assim, ao instalarem-se os portugueses nas suas novíssimas residências, encontraram o pavimento coberto de pó da madeira roída pelo caruncho, o qual caía do teto durante o dia e sobretudo os incomodava à noite, quando deitados, penetrando pelas narinas e irritando-lhes as mucosas das vias respiratórias.  (...)

 
(iii) Em 28 de agosto o tenente Liberato e o aspirante José Santa são libertados, depois do cativeiro na ilha de Alor, na parte holandesa. 
A sua sobrevpvência , após 17 meses cativeiro,  surpreendeu tudo e todos.


(...) Em Lahane eontinuava-se como anteriormente, embora sentíssemos que a situação em Lebomeu parecia ser razoável, comparada com os tempos passados. Desconhecendo, por completo, o que se passava no Mundo, em especial na zona de guerra, tínhamos, agora, mais esperança que ela não se prolongasse indefinidamente e de que pudéssemos, ainda, sobreviver, pois os japoneses pareciam estar a tratar-nos com uns lampejos de humanidade. 

No dia 28 de agosto tivemos o primeiro sinal de possível acabamento do nosso martírio. Pelas cinco horas da tarde, chegou ao hospital o capitão Vieira trazendo no seu carro dois homens que, depois duns momentos de dúvida e estupefacção, reconhecemos como o tenente Liberato e o senhor José Santa, apesar de estarem completamente desfigurados. 

Magríssimos, mas com edemas beribéricos na face e nas mãos, sem cor, olhar apático, mal se sustendo nas fragilíssimas pernas, satisfizeram-nos a ansiada curiosidade contando-nos, em primeiro lugar as mortes do engenheiro Canto e do gerente Duarte e a sua odisseia em Kalabai. Depois, haviam sido obrigados a caminhar, durante muitos dias, por serem transferidos para Macuada onde passaram «dois meses de fome e miséria, sessenta dias de amargura, iguais aos já vividos naquela infindável peregrinação de desterrados». (1)  

E assim foi passando o tempo, seu estado era deplorável. Corroídos pelo paludismo, minados pelo beribéri, definhados pela fome, sem esperanças de sair daquele inferno, caíram num estado de abatimento extremo. Só um milagre poderia salvá-los E o milagre deu-se. (1) . No dia 22 de agosto, comunicaram-lhes que iriam regressar a Timor e deram-lhes géneros para eles próprios cozinharem. 

 Na manhã seguinte, quatro indígenas trouxeram uma padiola para transportar o tenente Liberato, Depois duma marcha de cinco dias chegaram à praia, à qual os veio buscar uma lancha que os desembarcou em Díli, no dia 28. Levaram-nos para o quartel da Kempy [a polícia política] onde o sargento Nerita lhes deu de almoçar e uns calções ao senhor Santa, para substituir os andrajos que em parte o cobriam, nada tendo encontrado que servisse ao tenente Liberato (1).

 De tarde, conduziram-nos ao consulado nipónico. Ali jantaram e pernoitaram e ali os foi encontrar o capitão Vieira que, por acaso, aparecera a tratar da qualquer assunto (1) . 

No dia 29, apareceu o Governador, que exigiu a sua libertação, sendo entregues pelo vice-cônsul, senhor Suzuki. Seguiram de automóvel para o palácio onde almoçaram e foram cumulados de atenções pela família do Governador, o qual dera ao tenente Liberato um par de calças e uma camisa, ficando em condições de se apresentar (1) . 

De tarde, o capitão Vieira foi levá-los ao hospital onde a todos nos encontraram, «magros, macilentos, quase irreconhecíveis, sinais evidentes do muito que tínhamos passado, durante aqueles inolvidáveis anos sob o domínio japonês» (1). 

 Descreve com todo o realismo, o tenente Liberato, num dos seus livros (1),  as impressões que nos causou a aparição daqueles dois fantasmas no hospital. 

«A nossa chegada surpreendeu-os. Não nos julgavam vivos. Todos conheciam a crueldade dos nipónicos, adivinhavam a vida horrível, de fome e de torturas imposta àqueles que tinham a desdita de caírem nas suas masmorras. Por lá tinham passado dois ou três portugueses. Por lá os tinham conservado um mês, mês e meio, o máximo. E em que estado eles tinham voltado ao convívio dos seus compatriotas, santo Deus! Não! Era impossível resistir dezassete meses àquela vida de inferno. Só forças sobrehumanas poderiam vencer tamanho martírio!». (...)

(iv) Em 1 de setembro, perante a incredulidade de todos (completamenmte isolados do mundo desde julho de 1943), 
sabe-se a notícia do armistício. 

(...) No dia 1 de setembro, ao anoitecer, surgiu no hospital o automóvel do Governador, que o guiava, e era acompanhado pelo capitão Vieira e tenente Alves.  Imediatamente reunidos numa sala ouvimos, estupefactos, a quase inacreditável, mas sempre ansiada notícia, de que a guerra havia terminado. O coronel Yoshioka, comandante das tropas japonesas, havia-se dirigido ao palácio e comunicado oficialmente que tinha sido assinado um armistício entre os beligerantes, cessando assim as hostilidades no Oriente. 

 A nossa primeira reação foi de dúvida e até de incredulidade, para alguns, pois, completamente isolados do mundo, desde meados de julho de 1943 e habituados às falsidades dos nipónicos, fundadamente pensávamos poder tratar-se de mais uma mentira por eles forjada para atingirem malévolos fins. 

 Era, porém, verdade, como depois soubemos, faltando-lhe, somente, o essencial pormenor de que o Japão se havia rendido aos aliados, sem condições, no dia 15 de agosto, segundo declaração do imperador Hiro-Hito. 

Destruída a cidade de Hiroshima por uma bomba, de novo tipo, de efeitos terrivelmente desencorajantes, o governo japonês não pedira a paz e, por isso, fora lançada outra sobre Nagasaki, no seguinte dia 9, o que motivou a decisão do Imperador. 

 A rendição incondicional das forças nopónicas foi assinada em Manilla, no dia 2 de setembro, a bordo do couraçado americano «Missouri», onde o general Mac Arthur a recebeu de uma deputação do governo japonês constituída por dezasseis membros que aí se dirigiram para o efeito. 

 Manhã cedo do dia 3 de setembro, o Governador partiu para Lebomeu, a comunicar a maravilhosa notícia aos concentrados. Em todo o seu percurso, à ida e à volta, recebeu vibrantes aclamações dos compatriotas timorenses e, em Lebomeu, a cena revestiu-se de indescritível emoção e ardor patriótico, segundo o dr. Tarroso Gomes me referiu (2). 

 «Não é fácil descrever o entusiasmo que se apoderou daquela gente tão profundamente atingida pela carência de tudo, com os ossos a desenharem-se por debaixo da pele, ao ouvir da boca do governador que o seu martírio terminara. 

 «Reunidos todos na barraca que servia de Administração, o governador dirigiu-lhes a palavra, começando por evocar a memória dos que tinham caído pelo caminho, vítimas da sua dedicação e do seu patriotismo e com uma referência especial ao engenheiro Artur do Canto Resende, o qual, em circunstâncias bem difíceis, oferecera o seu concurso desinteressado e de cuja morte se tivera conhecimento momentos antes. 

"Terminando as suas palavras, entrecortadas por vezes de soluços de comoção, o governador levantou um viva a Pátria, correspondido por todos com o maior entusiasmo e logo seguido, sem se explicar como, pelo hino nacional, cantado em coro por todos, hmens e mulheres, crianças e velhos, no meio da mais profunda emoção e cem lágrimas a correrem pelas faces de todos

 «Passados os instantes de júbilo, tratou-se logo de traçar as bases para reocupar rapidamente todo o território da província. E aqueles que, pouco antes, pareciam incapazes de qualquer esforço, levantaram-se como um só homem e ofereceram-se para cumprir essa missão. Todos queriam ser úteis e só houve dificuldades na escolha. Quando o governador peeguntou: «E agora podemos reocupar todo o nosso território?», a resposta saiu nítida, firme, numa manifestação de energia e de anseio de cooperar na missão desejada: «Vamos todos, cada um para o seu lugar. Para isso ainda chegamos». 

 (v) O Governador rapidamente decide a reocupação da ilha, 
de modo a garantir no terreno a soberania de Portugal.


(...) De regresso da sua feliz viagem, aguardavam o Governador, acompanhados das suas gentes, os liurais [régulos] .
de Díli, de Laulara e de Aileu, que sentidamente o aclamaram e saudaram. Nos dias imediatos não pararam de chegar,  à residência do governador, chefes timorenses de regiões mais distantes, à frente da sua gente e radiantes de felicidade por poderem manifestar a sua dedicação. 

 Segundo o Governador me referiu, «todos vinham contentes, de uma alegria que não engana, e todos manifestaram o desejo do nosso rápido regresso aos postos do interior, onde as populações nos aguardavam ansiosas». 

Não perdeu tempo o Governador em organizar a reocupação, declarando a Colónia em regime de administração militar e dividida no concelho de Díli e nas circunscrições do Suro (Aileu), Manatuto, S. Domingos (Baucau), Lautem e Fronteira (Bobonaro). 

Todos os reocupantes, funcionários ou voluntários, ficariam subordinados, em cada zona administrativa, ao intendente militar, oficial do exército do activo ou reformado. 

 Encarregou-me o Governador de tomar as providências para uma reocupação sanitária eficiente. Rapidamente elaborei um plano que por ele foi aprovado sem restrições. Todos os enfermeiros disponíveis seguiriam com os intendentes militares e prestariam serviço da sua especialidade em ambulâncias que instalariam nos locais predeterminados por mim, servindo-se dos medicamentos e material de penso e de pequena cirurgia que a todos foram entregues, na mesma qualidade e quantidade. 

 Aos dois únicos médicos sobreviventes, que também se ofereceram para participar da reocupação, ordenou o Governador a permanência nas ambulâncias de Lahane e de Liquiçá, prontos a actuar em qualquer emergência, deslocando-se aos locais onde a sua presença se mostrasse conveniente. 

 As principais dificuldades da obra da reocupação consistiram na ausência de pessoal especializado e do necessário material para o transporte das gentes. A segunda, desapareceu com a entrega pelos japoneses, no dia 6 de setembro, de razoável quantidade de gasolina e óleo e de três automóveis, nove camionetas de dois mil quilos e de um carro-oficina.

A primeira, também foi facilmente eliminada, pois logo surgiram voluntários, em especial deportados, com que se improvisaram motoristas e mecânicos que se mostraram completamente à altura das suas tarefas. 

 (...) Por fim, os japoneses começam a evacuar a ilha, a partir de 6 de setembro... A reocupação dos postos-chave da adminitração do território faz-se em tempo recorde (catorze dias) 
por um escasso número de duas centenas de homens, funcionários e voluntários, incluindo deportados.

Neste mesmo dia, 6 de setembro,  começaram os japoneses a evacuar a ilha, seguindo em barcaças de desembarque para a ilha de Alor e outros, por terra, para a parte holandesa de Timor. 

 Para poder oficializar as suas determinações, lançou o Governador mão do recurso de me nomear vogal oficial do Conselho do Governo e da sua secção permanente, podendo assim, esta última, passar a funcionar novamente. 

 Assim, foi colocado nas várias circunscrições e postos o pessoal necessário para se fazer a reocupação. Para preencher os cargos indispensáveis houve que lançar mão de funcionários do activo, reformados militares, funcionários aposentados e até de particulares, porque não havia outros. 

 Em 9 de setembro chegou a Lahane o primeiro pessoal de Lebomeu, ficando em 10 aí reunidas as equipas de reocupação dos postos administrativos do concelho de Dili e da circunscrição do Suro. 

 Neste mesmo dia 10 chegou a Díli uma estação-rádio que os japoneses haviam mandado vir de Koepang, a pedido do Governador,  e que em seguida nos entregaram. Dela imediatamente se encarregou o único radiotelegrafista de que dispúnhamos, Alarico Guterres Fernandes, que o Governador tinha mandado vir, dias antes, do território de Oecússi. 

 Concluído todo o trabalho de organização da reocupação no dia 11 à noite, iniciou-se esse serviço na manhã de 12, pelos postos de Liquiçá e Maubara, com a partida para esses locais das equipas respetivas. 

Nesta mesma manhã o Governador voltou a Liquiçá e a Maubara. Nesta última localidade agradeceu e louvou ao liurai, coronel José Nunes a sua extrema lealdade, convidando-o a içar no mastro do posto a bandeira nacional, como justo prémio da sua dedicação. 

 Ao fim da tarde do dia 12 sentimos em Lahane o estampido de várias explosões, elevando-se uma enorme nuvem de fumo para os lados de Tai-Béssi. Soubemos depois que os japoneses haviam lançado fogo ao seu parque automóvel, constituído por mais de trezentas viaturas. Na noite de 13 conseguiu o radiotelegrafista Alarico comunicar com a estação de Macau, o que permitiu a expedição de telegramas para Lisboa e a receção de comunicações do Governo.

 Nesse mesmo dia ficou completada a reocupação dos postos administrativos do concelho de Díli, cujo intendente militar era o capitão Vieira, pela instalação em Laulara do chefe de posto Torresão com o pessoal respectivo. 

 Em 14, o tenente reformado José Augusto Gomes, intendente militar do Suro, participou ao Governador a completa reocupação desta circunscrição. 

 Na manhã do dia 15 partiu para Bobonaro a equipa de reocupação da circunscrição da Fronteira, chefiada pelo intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes, a qual aí chegou à noite. 

Somente em 17 à tarde se conseguiu reunir em Lahane as três equipas destinadas às circunscrições de leste que partiram, simultaneamente, a 18. 

 Ao meio dia, chegaram a Manatuto, onde ficou a equipa chefiada pelo tenente reformado José Afonso Ribeiro. A equipa de reocupação da circunscrição de S. Domingos, chefiada pelo tenente António de Oliveira Liberato,  alcançou Baucau às 17 horas. 

A equipa de Lautem, chefiada pelo tenente Jaime Hermínio Ramalho dos Santos, ficou em Baucau nessa noite e, às 11 horas e quarenta minutos do dia 19 de setembro, alcançava a sede da circunscrição. 

 Ficou assim concluída a reocupação total da colónia, levada a efeito sem armas, por um grupo de:
  •  163 portugueses não-timorenses;
  • 19 funcionários timorenses;
  • e 14 assalariados permanentes timorenses, 

que tantos foram os que permaneciam em Timor e se apresentaram ao serviço até ao final da reocupação, no período exacto de catorze dias contados da data em que foi comunicada a libertação completa da colónia. 

 Dos não-timorenses (n=163):

  • 81 foram ocupar os vários postos administrativos, fazendo a sua reocupação administrativa, missionária e sanitária; 
  • 37 ficaram em Lahane trabalhando nos vários serviços da colónia; 
  • 19 reocuparam as suas propriedades agrícolas em Maubara e Fátu-Béssi;
  •  e 26 não puderam, pelo seu precário estado de saúde, ser utilizados, de momento, em qualquer serviço. 

 «Isto só foi possível mercê do extraordinário patriotismo desse punhado de portugueses que, apesar de doentes na sua quase totalidade e de todos estarem fortemente depauperados e num estado de magreza que quase os tornava irreconhecíveis, souberam encontrar na sua excecional vontade de bem-servir a energia suficiente para produzirem um esforço que seria muito grande mesmo para quem estivesse em condições normais. 

"A reocupação de Timor, feita nas condições em que o foi, e justo título de orgulho para quem nela interveio, e foi, sem dúvida, uma alta afirmação perante o Mundo da excelência dos nossos meios de colonização» (3) . 

 Em todos os locais da colónia foram recebidos os reocpantes com as mais sinceras e profundas demonstrações de amizade e carinho pelos povos timorenses, não se tendo registado qualquer incidente que perturbasse o ambiente de euforia do reencontro, todos irmanados por um puro ideal de fraternidade e paz. 


(v)  O dr. Cal Brandão regressa da Austrália e conta-nos, no seu livro de memórias, como foram os emocioantes últimos dias de setembro de 1945: a homenagem, conjunta, por portugueses, timorenses e australianos de homenagem aos mortos; o hastear da bandeira portuguesa; a notícia,  a 25, de que dois dias depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco,
vindos de Lourenço Marques. 


 (...) Na manhã do dia 22 de setembro, amarou na baía de Díli um grande hidroavião australiano, depois de ter circumnavegado em saudação, por três vezes, a cidade onde se erguia altaneiro mastro com a bandeira nacional hasteada, construído e levantado sob a direcção do deportado, senhor Serafim Martins (4).

 Passou o hidroavião, também, pelo hospital de Lahane, inclinando-se lateralmente em saudação à bandeira de Portugal, que nele sempre tremulara durante a guerra, correspondendo aos acenos amigos que todos nós lhe dirigíamos.

 Passadas duas horas, chegou ao hospital um automóvel do Governador, do qual desceram dois soldados australianos, desarmados, e o dr. Cal Brandão, com o qual eu sempre tivera relações de simpática cortesia, após apresentação recíproca do nosso comum amigo dr. Correia Teles. 

 De pouco tempo dispunha para estar connosco nesta visita que fazia ao hospital para poder abraçar os seus cunhados, senhores José Santa e Vítor Santa. Assim, foi de fugida que nos referiu alguns acontecimentos que se tinham passado e dos quais não poderíamos ter tido qualquer notícia. 

 O coronel Castilho havia falecido na Austrália,  vitimado por tuberculose pulmonar,  e o padre Jaime Garcia Goulart era, agora, o bispo de Timor, por nomeação pontifícia. Os Aliados haviam derrotado e esmagado todos os seus inimigos. Do livro do Dr. Cal Brandão (4) extraio alguns elementos sobre a sua vinda da Austrália, no fim da guerra. 

 Um representante do Ministério dos Estrangeiros australiano, mr. Forsyth, convidara-o a acompanhá-lo a Timor, como seu intérprete, fazendo também parte do grupo mr. Manderson, um australiano que, anos antes, vivera nessa nossa província e falava português. 

 Viajaram em avião de Sidney para Port Darwin e daqui, embarcados num hidroavião «Catalina» seguiram para Koepang, ao encontro do brigadeiro Dyke que nesta cidade recebera a rendição do general-comandante das tropas japonesas, em todo o Timor (5) , no dia 11 de setembro. 

 O brigadeiro comunicou-lhes que havia ordenado a concentração do grande número de nipónicos que se entregavam, em Atambua, próximo da nossa fronteira, para onde seguiriam.
 
(,,,) Também, os contingentes que guarneciam o Timor português, com exceção dum grupo de 170 homens que ficara encarregado de guardar o material até à sua verificação e entrega.

 «O brigadeiro necessitava ir a Díli para esse fim e, ainda, para proceder à pesquisa das sepulturas dos guerrilheiros que ali tinham tombado». 

 «O governo australiano, em atenção à neutralidade portuguesa, não quis que a visita do brigadeiro tomasse o aspeto duma operação militar, pelo que enviava um agente diplomático para, com a sua presença, marcar o carácter amigo da obrigação que impendia sobre o exército». 

 «De Koepang, por intermédio do general japonês que transmitia as instruções dos vencedores ao oficial-comandante em Díli, o brigadeiro informou o governador português da chegada, no dia seguinte, dum seu representante». 

 «Na manhã do dia 22, a bordo dum "Catilina", seguia um major acompanhado dum oficial da RAAF (6), intérprete de japonês, e o grupo enviado pelo Ministério dos Estrangeiros». 

 «Quando o aparelho, depois de deslisar nas águas do canal, foi parar à entrada do porto,  vimos aproximar-se uma pequena embarcação a remos, arvorando a bandeira portuguesa, na qual se destacava a figura branca dum homem esquelético, que só muito ao perto reconheci como sendo o capitão-dos-portos.» (7) 

 «Disse-lhe ao que íamos, pedindo-lhe que solicitasse do Governador a fineza de receber aquela missão. Mas não era necessário, pois estava já autorizado a levar-nos para a praia onde nos esperava o capitão-ajudante» (8). 

 No hospital o dr. Cal Brandão distribuiu abraços ao reduzido número de conhecidos e amigos que ali se encontravam. :

 «Era uma meia dúzia apenas, entre os quais o velho Brian, mas esqueléticos, quase irreconhecíveis à primeira vista, deixando ver as canelas descarnadas a fugir daqueles calções que, outrora, haviam sido calças». 

 «Tinham lágrimas de comoção ao apertar nos ósseos braços o primeiro português que chegava junto a eles, depois de tão longo sofrimento, de tanta humilhação e fome».

 «Gaguejavam no atropelo de perguntas, querendo saber de amigos ou de pessoas de família que tinham faltado à concentração de Liquiçá, e supunham na Austrália. Queriam notícias do mundo, da guerra, das coisas de Portugal. À pressa, porque me esperavam, fui respondendo, distribuindo os poucos jornais e cigarros que levava comigo». 

«No Palácio que estava pouco danificado, mas sem um único vidro, encontrámos o Governador e os funcionários de que se rodeara para a receção. Todos impressionantemente magros, mas bem vestidos.». 

 «Disse o major (9) ao que ia, do desejo que o brigadeiro tinha em vir a Díli, e dos objetivos em vista». 

 «Bebidas, com as costumadas saudações, os uísques que o Governador gentilmente oferecera, partimos a levar ao brigadeiro a certeza do seu bom acolhimento». 

 «Na manhã de 23, cerca das nove horas, estávamos de volta, a bordo duma esquadrilha de 5 corvetas, uma das quais, a 'Gladstone', arvorava as insígnias do brigadeiro comandante militar». 

 «Uma vez chegados à residência do Governador, e após os cumprimentos, realizou-se a conferência solicitada. O brigadeiro expôs o seu objetivo: inutilização do material de guerra; repatriação dos prisioneiros de guerra dos japoneses, uma centena de indianos e indonésios; localização das sepulturas dos guerrilheiros australianos mortos no Timor português; investigações das atrocidades cometidas pelos nipónicos». 

 «O Governador concedia todas as facilidades aos trabalhos que se pretendia realizar, exceção feita à matéria de investigações, a qual não podia autorizar sem prévia consulta ao Governo central». 

 «Por sua sugestão, assentou-se que só os oficiais australilanos desembarcariam armados, devendo os soldados que os acompanhassem apresentar-se sem qualquer arma». 

 «O Governador ofereceu, em seguida um bem servido almoço, para o qual o australiano concorreu com o pão, aquele pão alvo e delicioso que os portugueses não provavam desde há muitos e longos meses». 

 «Na tarde do dia 23 realizou-se uma homenagem aos mortos da guerra, em Timor». 

 «Na base do mastro, erguido junto às ruínas da alfândega, foi preparado um recinto ornamentado com folhas de palmeira e buganvílias, a entrada do qual se fazia por duas ruas dispostas em V, o sinal da vitória, traçadas no atapetado da relva guarnecidas a flores tropicais». 

 «O brigadeiro, num discurso breve, manifestou a alegria que o povo australiano comungava com os portugueses pela libertação de Timor e, num agradecimento, referiu-se à cooperação e simpatia que os portugueses lhe dispensaram para poder levar a cabo uma das suas missões, a de encontrar os vinte e três túmulos dos seus soldados. 

 «O Governador português, prestando a sua homenagem a todos os mortos, terminou: «Esta cerimónia é o fim de anos de paciente sofrer. As relações entre as forças australianas em Timor e o meu governo, têm decorrido sempre numa base da melhor amizade, e continuará a ser assim'.». 

 «O brigadeiro colocou junto do mastro uma coroa de belas rosas da Ermera, dedicada aos portugueses mortos e o Governador depôs uma coroa igual, aos mortos australianos». 

«A guarda de honra foi feita por trinta soldados australianos, que eram todos os que tinham acompanhado o brigadeiro, e pelos oficiais do exército e marinha, desarmados e em continência, enquanto a sirene da corveta-chefe apitava em lúgubre despedida, e o clarim executava o 'último toque' ". 

 A emocionante cerimónia terminou com o tradicional 'minuto de silêncio'  (10) e a ela assistiram uma multidão de timorenses e os poucos funcionários e pessoas da sua família que então se encontravam em Díli. Numa preciosa fotografia que possuo, identificam-se quase todos os não-timorenses presentes.  (...) 

 (...) Conta-nos o Dr. Cal Brandão (4) que na noite do dia 23, o brigadeiro Dyke ofereceu uma jantar íntimo ao Governador, que teve lugar a bordo da corveta «Moresby». 

 No dia seguinte regressaram à Austrália os cinco navios, tendo ficado em Timor dois oficiais, com a missão de procurarem as campas dos australianos mortos durante a guerra, o que fora autorizado pelo Governador, com a condição de seguirem desarmados, responsabilizando-se ele, inteiramente, pela sua segurança em qualquer parte da colónia. 

 No dia 25 soube-se, oficialmente a notícia de que dois dias depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu, Dias e Gonçalves Zarco, vindos de Lourenço Marques. (...)
________________

Notas do autor (JSC):

 
(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(2)  Vide jornal "Novidades",  de 3 de setembro de 1970, artigo de Tarrroso Gomes, «A Libertação de Timor».

 (3) São estas palavras do governador de Timor, capitão Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

(4) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

 (5) O general-comandante das forças japonesas em todo o Timor, era o major-general Tchiòda, cujo nome ouvi ao vice-cônsul, senhor Suzuki. 

(6)  Royal Australian Air Force.

(7) O capitão-dos-portos de Timor era o cabo verdeano, capitão-tenente César Gomes Barbosa.

(8) O capitão-ajudante do Governador era o capitão de infantria, Manuel do Nascimento Vieira.

(9) O major australiano, representante do brigadeiro Dyke.

 (10) O texto integral dos discursos do Governador e do brigadeiro Dyke, pode ser lido no artigo do Dr. Tarroso Gomes, «A Libertação de Timor» inserto no jornal «Novidades» de 24 de Setembro de 1970. 

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, parênteses retos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

Guiné 61/74 - P25908: Parabéns a você (2308): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 / BCAV 490 (Mansoa, Bafatá e Jumbembém, 1963/65) e José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Mata dos Madeiros, Bassarel e Tite, 1971/73)


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Nota do editor

Último post da série de3 de Setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25906: Parabéns a você (2307): Luís Gonçalves Vaz, Amigo Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25907: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VIII: Nascido por volta de 1893, terá chegado à Guiné depois da I Grande Guerra, tendo-se instalado em Bolama, nos Bijagós e, mais tarde, em Ganjola: em 1960 produzia duas mil toneladas de arroz (Recorte de jornal, enviado pelo Manuel Barros Castro, que o conheceu pessoalmente, e que foi fur mil enf, CCAÇ 414, Catió, 1963/645, e Cabo Verde, 1964/65)



"Manuel de Pinho Brandão quando chegou à Guiné"




Em 1960/1961 tinha 68 anos, e mais de 40 anos de Guiné. Pelas nossas contas, terá nascido por volta de 1892/93, e terá chegado à Guiné depois da I Grande Guerra,  c. 1918/19. São as primeiras fotos que temos do "velho Brandão" de Bolama, de Ganjolá, da ilha do Como, de Catió.



Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf,
CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1964/65);
nascido em 1940, Pica, São Gens, Fafe;
é um dos nossos "veteraníssimos";
integra a nossa Tabanca Grande desde 4/7/2019;
tem 18 referências no blogue


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barros Castro:

Data - domingo, 1/09/2024, 16:57
Assuntio - Manuel Brandão

Caro Camarada Carlos Vinhal,

Ao entrar no blogue deparou-se-me a notícia de uma reclamação apresentada pelo sr. Manuel de Pinho Brandão, em 1935.

O meu camarada Manuel Silva emprestou-me o n.º 95 da revista ilustrada “Portugal d`aquém e d`além mar”, do ano XXIV, da qual extraí as digitalizações aqui anexas sobre o sr Brandão, que conheci pessoalmente em Ganjola.

Junto, também a capa da revista.

Com grande abraço,

Manuel Castro (tabanqueiro 793).

2. Excertos da revista ilustrada "Portugal d'Aquém e d'Além Mar",  ano XXIV, nº 95, março  de 1961, pp. 38-39.  O "diretor, proprietário e editor" desta revista, muito ao gosto da época, de divulgação e propaganda das várias parcelas do território ultramarino, está de "visita" à Guiné, em data que não podemos precisar, mas tudo indica que seria no tempo seco, no início do ano de 1961, "na hora conturbada que (o país) atravessa" (referência õbvia aos acontecimentos em Angola).  Faz questão de ir a Ganjola, a 300 km de Bissau, para conhecer os vastos "domínios" do Manuel de Pinho Brandão que havia conhecido há 5 anos atrás (c. 1955/56) e que ele descreve como um lídimo representante dos portugueses de antanho. 

Ficamos a saber algo mais sobre a história (até então de sucesso)  deste "beirão",   de "espírito industrioso e coração magnânimo",  que  vivia em Ganjola, "como um rei, nos seus vastos domínios, em cuja coroa está gravado o honrado brasão do trabalho" (...), "feliz, entre os seus leais súbditos,preocupado apenas com o bom governo do seu reino", e raramente "transpo(ndo) as suas fronteiras". 

O Santos Guerra vai visitá-lo "de surpresa", encontrando-o em plena atividade, no campo,  "em cima do camião carregado  de sacos e de pretos, de peito e barriga à vela" (sic). 

Não há qualquer referência aos seus primórdios na Guiné, e às razões que o levaram até lá... Nem à sua família.  

Estabeleceu-se primeiro em Bolama e nos Bijagós (apanhou a guerra de Canhabaque, em 1936), para se tornar mais tarde  um grande agricultor, instalando-se em Tombali...  Produzia erntão mais de 2 mil toneladas de arroz... Tinha meia centena de trabalhadores permanentes (e três vezes mais, de trabalhadores sazonais) e já um parque de máquinas, razoável para a época.

(A quantidade de produção de arrroz, destinado a exportação e ao consumo interno, era notável, sabendo-se que a média de exportação do arroz, na Guiné, no período de 1956-60 foi de 1398 toneladas e no valor de  4238 contos, destinada sobretudo a Cabo Verde. LG. )

Em suma, o Manuel de Pinho Brandão era um típico colono na época, cujo património e atividade (agrícola e comercial) vão ser profundamente afetados com o início da guerra, a começar pela ocupação da ilha do Como pelo PAIGC em 1963.   Do retrato que o autor lhe faz,  ficamos também a saber que, "embora de aspeto rude", tinha "boa presença", era "amável" (...) "conversa(va) muito bem e não e(ra) nada tolo".

E o autor remata com um piscar de olho a Lisboa: "Não seria demais o Governo da Nação tributar-lhe a homenagem que ele merece"... O que, pensamos, nunca chegou a acontecer: com a guerra, o velho Brandão caiu em desgraça e perecebe-se a razão por que ele nunca quis nada com a tropa de Catió...



















Portugal d'Aquém e d'Além Mar - Revista Ilustrada, Ano XXIV, nº 95, março de 1961
Proprietário, diretor e editor: Manuel dos Santos Guerra, pp. 38-39.


(Recortes, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25903: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VII: A Bolama de finais dos anos 30