Extractos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 6-8.
Nota de L.G.:
Como já tive ocasião de o dizer aqui, a história da CCAÇ 12 foi escrita por mim, embora com a cumplicidade e a colaboração de vários camaradas, milicianos, incluindo um sargento do quadro. Já não está no activo, posso dizer o seu nome: o Sargento Piça, o Grande Piça, para os amigos!Oficialmente, o documento não tem autor nem sequer a sua versão final chegou a ser autorizada pelo comandante da companhia, o afável Capitão Brito, hoje coronel na reforma (e muito menos pelo comando do batalhão de quem estávamos hierarquicamente dependentes, o BART 2917, a partir de Junho de 1970 até Fevereiro de 1971).
Um versão, escrita e impressa à luz do dia, a stencil, na secretaria da companhia, foi discretamente distribuída aos alferes e furriéis milicianos (mesmo assim, não sei se a todos...), na véspera da partida (Os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 eram de rendição individual). Gostaria que este documento tivesse podido chegar às mãos de todos os meus camaradas, incluindo os nossos soldados e cabos metropolitanos. E até aos africanos, embora muito poucos (dois ou três) soubessem ler e escrever. Infelizmente, não chegou.
A sua divulgação, nestas páginas, pretende atingir um público mais vasto, incluindo os amigos e os camaradas que fazem parte da tertúlia de ex-combatentes da Guiné (uma tertúlia que vai crescendo lentamente). Quero começar por dizer que a nossa actuação na Guiné não teve nada de heróico. E a leitura da história da CCAÇ 12 vem confirmar, à distância de trinta e tal anos, essa primeira impressão de quem, como eu, tendo sido actor, não pode ser advogado em causa própria. Procurei, mesmo assim, ser o mais possível objectivo, ou pelo menos factual, e distanciar-me dos acontecimentos que, muitos dos quais, eu próprio vivi como combatente sui generis (não levava granadas à cintura, andava com a G3 em posição de segurança...).
Cumprimos a nossa missão, com sangue, suor e lágrimas (um dos slogans preferidos dos nossos camaradas que fizeram tattuagens no corpo). Recordo-me de algumas tatuagens: Guine 69/71: Amor de mãe ou Guiné 69/71: Sangue, suor e lágrimas (Seria interessante estar esta forma de comunicação...).
Partimos tal como chegámos: discretamente. Na Guiné fomos amigos e solidários uns dos outros. Honrámos a Pátria, mesmo discordando (alguns, como eu) daquela guerra. Batemo-nos com dignidade e até coragem. Fomos uma das primeiras unidades da nova força africana, criada por Spínola. Deixámos lá a nossa juventude... Em contrapartida, nunca mais soube nada dos meus, dos nossos, soldados africanos. Portugal abandonou-os à sua sorte em 1974. Nós abandonámo-los à sua sorte. E isso dói-me...
A partir de 18 de Julho de 1969, finda a instrução de especialidade, a CCAÇ 12 foi dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, o regulado Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...).
Pelas informações posteriores que recolhi (graças ao Sousa de Castro, da CART 3494 / BART 3873, 1972/74), em Abril de 1973 a CCAÇ 12 passou a unidade de quadrícula, aquartelada no Xime, e por lá terá ficado até ao fim da guerra. Tal significou que os nossos soldados africanos, ou uma boa parte deles (exceptuando os mortos, os feridos graves, os inoperacionais...), fizeram três anos e nove meses como força de intervanção (andaram no mato com a canhota...) e mais um ano e tal, aquartelados no Xime (de Abril de 1973 até provavelmente a Setembro de 1974). No mínimo, cinco anos de tropa, ao serviço dos tugas. A esse tempo deveria acrescentar-se os meses e os anos em que foram milícias nas suas pobres tabancas do Cossé e de outros regulados, organizadas em autodefesa...
Em Julho de 1969 (e até Junho de 1970), o dispositivo das NT no Sector L1 era o seguinte:
(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ 2852 (Bamdabinca, 1968/70);
(ii) Forças de intervenção (Bambadinca): CCAÇ 12 (1969/71); Pelotão de Caçadores Nativos 53;
(iii) Subunidades em quadrícula do BCAÇ 2852: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole)
Havia ainda a considerar o Pelotão de Cavalaria Daimler (Bambadinca), o PEL CAÇ NAT 52 (Missirá) e 53 (Fá Mandinga), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete). Se excluirmos a população fula armada (nas tabancas em autodefesa), no Sector L1 (mais ou menos equivalente à Região do Xitole, para o PAIGC), as NT poderiam ser estimadas em cerca de 1250 homens, o que nos dava uma vantagem , em relação ao IN, de talvez cinco ou seis para um. De resto, estimava-se que, no final da guerra, o PAIGG em todas as frentes não tivesse mais do que 10 mil homens em armas, quatro vezes menos do que as NT.
___________________
(l) Julho/69: Baptismo de fogo em Madina Xaquili
Ainda não haviam sido distribuídos os camuflados às praças africanas quando a CCAÇ 12 fez a sua primeira saída para o mato. A 21, três Gr Comb (2º, 3º e 4º) seguiam em farda nº 3 para Madina Xaquili a fim de reforçar temporariamente o sub- sector de Galomaro,[a sul de Bafatá].
Entretanto, o 1º Gr Comb efectuaria à tarde uma patrulha de segurança ao Mato Cão, [no chamado Rio Geba Estreito], tendo detectado vestígios muito recentes do IN que fizera uma tentativa de sabotagam da ponte sobre o Rio Gambana, provavelmente na altura do último ataque a Missirá (a 15).
Este afluente do Rio Geba está referenciado como um ponto de cambança [travessia] do IN. Depois de se ter mostrado particularmente activo, durante o mês anterior na zona oeste do Sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), o IN procurava agora abrir uma nova frente a leste, utilizando as linhas de infiltração do Boé [Madina do Boé tinha sido abandonada pelas NT em 8 de Fevereiro último e logo ocupada pelo IN] e visando especialmente as tabancas de Cossé, Cabomba e Binafa.
Dias antes IN tinha atacado três tabancas do regulado de Cossé [donde era oriunda a maior parte das nossas praças africanas]e reagido a uma emboscada das NT.
Sori Jau, a primeira vítima em combate
Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24, à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.
0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].
0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau].
A 25, os três Gr Comb regressam a Bambadinca com a sua primeira experiência de combate. Nesse mesmo dia, o 1º Gr Comb participava numa operação, a nível de Batalhão no sub-sector do Xime. Foram detectados vestígios recentes do IN na área do Poindon mas não houve contacto (Op Hipopótamo).
No dia seguinte à tarde, depois das NT terem regressado ao Xime, o aquartelamento seria flagelado com canhão s/r e mort 82 durante 10 minutos.
A 26, o 4º Gr Comb segue para Missirá [, a norte do Rio Geba,] a fim de realizar com o PEL CAÇ NAT 52 uma patrulha de nomadização na região de Sancorlã/ Salá até à margem esquerda do RPassa (limite a partir do qual começa a ZI do Com-Chefe), com emboscada entre Salá e Cossarandin onde o IN vinha com frequência reabastecer-se de vacas.
Verificou-se que os trilhos referenciados não eram utilizados durante o tempo das chuvas (Op Gaúcho).
Entretanto, uma secção da CCAÇ 12 passava a ficar permanentemente destacada (…), [falta aqui um bocado de texto, presumo que fosse em Sansacutà ], na sequência de informações de que o IN se instalava de novo no regulado do Corubal, e na previsão duma acção de força contra o eixo de tabancas em auto-defesa a sudeste de Bambadinca.
Novo ataque, de 1 hora, a (e abandono de) Madina Xaquili
Por outro lado, o 1º e o 2a Gr Comb seguiam para o sub-sector de Galomaro a fim de reforçar temporariamente Dulombi e Madina Xaquili.
A 28, por volta das 22.30h , Madina Xaquili sofria um ataque de 1 hora por parte dum grupo IN estimado em 60 elementos, tendo sido gravemente atingidos por estilhaços de mort 82 os soldados do 2º Gr Comb Braima Bá (hoje inoperacional) e Udi Baldé (que foi evacuado para o HMP/Lisboa, passando posteriormente à disponibilidade com 35% de incapacidade física).
Na reacção ao ataque, o apontador de mort 60 Mamadu Úri ficou com as mãos queimadas devido ao intenso ritmo de fogo que executou.
A partir de Agosto, Madina Xaquili passaria à responsabilidade do COP 7 [Bafatá] e, em Outubro, seria retirada pelas NT depois de totalmente abandonada pela população.
A 23, pelas 10h, em Dulombi, um grupo IN reagiu com armas automáticas a uma patrulha do 1º Gr Comb que havia saído em virtude do accionamento duma mina antipessoal por parte dum elemento pop [abreviatura de população], a escassa distância do arame farpado, tendo simultaneamente flagelado o destacamento durante 10 minutos.
Ataque de duas horas a Candamã
E finalmente a 30, o 3º e 4º Gr Comb seguiram para Candamã a fim de levar a efeito um patrulhamento ofensivo na região de Camará, juntamente com forças da CART 2339 [Mansambo](Op Guita).
Ao chegar-se a Afiá, pelas 7.30, soube-se que Candamã tinha sido atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer.
Em Candamã, os dois Gr Comb da CCAÇ 12 procederam imediatamente ao reconhecimento das posições de fogo do IN, tendo estimado os seus efectivos em 60/100 elementos [1 bigrupo reforçado], armado de canhão s/r, mort 82, LGFog, metralhadora pesada 12.7, armas ligeiras automáticas.
Havia abrigos individuais junto ao arame farpado que fora cortado em vários pontos, tendo o grupo de assalto utilizado granadas de mão.
Em consequência da reacção das NT e da população organizada em autodefesa, o IN sofrera várias baixas, a avaliar por duas poças de sangue e sinais de arrastamento de dois corpos, além de dólmen ensanguentado que foi encontrado já num dos trilhos de retirada. Foram recolhidas várias granadas de canhão s/r e RPG-2.
Do lado das NT houve 5 feridos (1 dos quais grave) e da população dois mortos e vários feridos graves, além de danos materiais (moranças destruídas, etc.].
O facto do IN ter retirado ao amanhecer indicava que deveria ter um ou mais acampamentos a escassas horas de Candamã. A corroborar esta hipótese, o aquartelamento de Mansambo seria flagelado na tarde desse mesmo dia.
A Op Guita não forneceu, porém, qualquer pista que levasse a detecção do IN na região de Camará.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 29 de junho de 2005
terça-feira, 28 de junho de 2005
Guiné 63/74 - P87: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967) (Marques Lopes)
Texto do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967):
Falam muito no Niassa e no Uíge, por razões óbvias. Mas já ouviram falar no Ana Mafalda? Se calhar, não.
Pois o Ana Mafalda é (ou era, porque já foi abatido) este barquito que aqui vos mostro:
Tinha 103 metros de comprimento e 14 metros de largura, em linguagem de pescador de canoa em água doce, e tinha uma velocidade máxima de 13,5 nós, isto é, em linguagem de velho motorista de fim-de-semana, dava no máximo 25 km por hora.
Tinha 16 alojamentos em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira. Tinha 47 tripulantes (estou muito agradecido a um deles, um que me vendeu a máquina fotográfica com a qual tirei as fotografias que vocês conhecem). Alguns dos modernos "cacilheiros" que atravessam o rio Tejo não serão tão "grandes", mas aproximam-se.
Pois é verdade, meus amigos, foi neste transatlântico que a CART 1690 [Geba, 1967/69] largou do cais de Alcântara até à Guiné. Era a única unidade que lá ia, porque não cabia mesmo mais ninguém, penso eu.
Como alguns meses antes de embarcarmos nos tinham dito que íamos para Timor, ficámos satisfeitos por decidirem mandar-nos para a Guiné, pois pensámos que seria terrível ir num barco daqueles até à Oceânia...
Os alferes, sargentos e furriéis foram distribuídos pelos beliches dos "camarotes" de segunda e terceira classe. Em primeira classe ficou o capitão da companhia, o comandante do navio, o imediato, o oficial das máquinas, certamente, e uns mangas que se penduraram em nós à boleia, que eu não sei quem eram nem procurei saber.
O Zé Soldado, sempre o mais fodido nestas situações, foi para o porão onde estavam montados uns beliches de ferro com umas enxergas em cima, e onde casa de banho não havia.
Largámos às 12h00 do dia 8 de Abril de 1967. Foi uma bela viagem, como devem calcular, com os baldes dos dejectos do porão a serem despejados borda fora de manhã e ao fim da tarde (ao menos haja regras). Mas os "despejos" começaram logo à saída da barra do Tejo. Eu, pessoalmente, nunca tinha chamado tantas vezes pelo Gregório.
Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu "superior" quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!
Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu.
O homem é (ou era, não sei se já morreu) este:
© A. Marques Lopes (2005)
Depois, no dia 8 de Abril, então, seguimos de comboio especial para a gare marítima. Fizemos um belíssimo e aprumadíssimo desfile, com a nossa mascote Morena à frente (vai a fotografia com ela a falar com um macaco; coitada, não vem na lista, mas estava em Sare Banda, aquando do ataque, e foi morta durante ele; morreu em combate também; era uma cadela muito porreira) perante um representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino deram muitos santinhos, calendários e bolachas a todos. O representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército ainda fez uma prelecção aos sargentos e oficiais dentro do navio. Aos soldados não deu trela. E lá embarcámos com as lágrimas dos familiares presentes.
Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.
Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...
© A. Marques Lopes (2005)
Dormimos em Bambadinca, em tendas, ao pé do rio, porque não havia instalações. Foi o primeiro combate com a mosquitada.
A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro [vd. post desta semana, de 26 de Junho de 2005 > Guiné LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67), presente!].
A brincar, a brincar, é o começo da nossa estória.
Marques Lopes
Falam muito no Niassa e no Uíge, por razões óbvias. Mas já ouviram falar no Ana Mafalda? Se calhar, não.
Pois o Ana Mafalda é (ou era, porque já foi abatido) este barquito que aqui vos mostro:
Tinha 16 alojamentos em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira. Tinha 47 tripulantes (estou muito agradecido a um deles, um que me vendeu a máquina fotográfica com a qual tirei as fotografias que vocês conhecem). Alguns dos modernos "cacilheiros" que atravessam o rio Tejo não serão tão "grandes", mas aproximam-se.
Pois é verdade, meus amigos, foi neste transatlântico que a CART 1690 [Geba, 1967/69] largou do cais de Alcântara até à Guiné. Era a única unidade que lá ia, porque não cabia mesmo mais ninguém, penso eu.
Como alguns meses antes de embarcarmos nos tinham dito que íamos para Timor, ficámos satisfeitos por decidirem mandar-nos para a Guiné, pois pensámos que seria terrível ir num barco daqueles até à Oceânia...
Os alferes, sargentos e furriéis foram distribuídos pelos beliches dos "camarotes" de segunda e terceira classe. Em primeira classe ficou o capitão da companhia, o comandante do navio, o imediato, o oficial das máquinas, certamente, e uns mangas que se penduraram em nós à boleia, que eu não sei quem eram nem procurei saber.
O Zé Soldado, sempre o mais fodido nestas situações, foi para o porão onde estavam montados uns beliches de ferro com umas enxergas em cima, e onde casa de banho não havia.
Largámos às 12h00 do dia 8 de Abril de 1967. Foi uma bela viagem, como devem calcular, com os baldes dos dejectos do porão a serem despejados borda fora de manhã e ao fim da tarde (ao menos haja regras). Mas os "despejos" começaram logo à saída da barra do Tejo. Eu, pessoalmente, nunca tinha chamado tantas vezes pelo Gregório.
Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu "superior" quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!
Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu.
O homem é (ou era, não sei se já morreu) este:
© A. Marques Lopes (2005)
Depois, no dia 8 de Abril, então, seguimos de comboio especial para a gare marítima. Fizemos um belíssimo e aprumadíssimo desfile, com a nossa mascote Morena à frente (vai a fotografia com ela a falar com um macaco; coitada, não vem na lista, mas estava em Sare Banda, aquando do ataque, e foi morta durante ele; morreu em combate também; era uma cadela muito porreira) perante um representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino deram muitos santinhos, calendários e bolachas a todos. O representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército ainda fez uma prelecção aos sargentos e oficiais dentro do navio. Aos soldados não deu trela. E lá embarcámos com as lágrimas dos familiares presentes.
Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.
Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...
© A. Marques Lopes (2005)
Dormimos em Bambadinca, em tendas, ao pé do rio, porque não havia instalações. Foi o primeiro combate com a mosquitada.
A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro [vd. post desta semana, de 26 de Junho de 2005 > Guiné LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67), presente!].
A brincar, a brincar, é o começo da nossa estória.
Marques Lopes
Guiné 63/74 - P86: No oásis de paz de Contuboel (Junho de 1969) (Luís Graça)
Excertos do Diário de um tuga (Luís Graça)
Contuboel. 20/6/69
Algures
No lugar mais frio
Da memória
(Carlos de Oliveira: Micropaisagens, 1968).
... Ou no lugar mais desconfortável da terra!
A paisagem barroca dos trópicos não é menos desoladora do que as ilhas caligráficas do poeta: sob a tela luxuriante da natureza, os homens recortam-se, quais sombras chinesas, numa fundo aridamente linear. Eu diria: pateticamente, de pé, no limiar da História.
Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros.
O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!
Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros...
Luís Graça
© Luís Graça (2005)
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:
Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Monteiro (CART 2479 / CART 11).
Os quadros metropolitanos (menos de 60) da futura CCAÇ 12 tinham chegado a Contuboel a 2 de Junho de 1969 para dar a instrução de especialidade aos seus soldados africanos (menos de 100) (1). A companhia do Monteiro (CART 2479, futura CART 11) já lhes tinha dado a instrução básica, de 12 a 24 de Maio.
Estive em Contuboel até 18 de Julho. Tive tempo para ler, escrever, passear, ir à pontas [hortas] dos caboverdianos comprar bananas e abacaxis, escrever e falar de coisas de que gostava: a poesia, a literatura, a filosofia, a política... Tinha muitas afinidades com o Monteiro e com ele era capaz de ter uma conversa franca sobre a guerra colonial, a política, etc.
Nesse dia do passeio de piroga, em Junho de 1969 (não posso precisar o dia da semana, já que na Guiné vivíamos sem calendário, sem distinção de dias úteis da semana, sábados, domingos ou feriados), apanhei o meu primeiro grande susto por aquelas paragens africanas.
O Monteiro quis refrescar-se e deu um mergulho no Rio Geba, junto à represa, debaixo da ponte de madeira. De repente, apercebi-me que ele nunca mais aparecia à superfície... Quase gelei de terror!... Passou-se uma eternidade até que vi um pedaço de cabeça e uns olhos esbugalhados a emergir à superfície...
Depois de Contuboel, o Monteiro foi para o Gabu (Nova Lamego), segundo creio, e perdi-lhe completamente o rasto.
De facto, nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o co-autor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1998. 307 pp). Foi aí que reconheci a sua fotografia e alguns dados biográficos. Ele esteve na Guiné entre 1968 e 1970, se não me engano. E julgo que vive no Norte, onde foi professor do ensino secundário e esteve ligado ao movimento dos rádios livres. Gostaria, muito sinceramente, de o voltar a ver e abraçar.
_______
(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
Contuboel. 20/6/69
Algures
No lugar mais frio
Da memória
(Carlos de Oliveira: Micropaisagens, 1968).
... Ou no lugar mais desconfortável da terra!
A paisagem barroca dos trópicos não é menos desoladora do que as ilhas caligráficas do poeta: sob a tela luxuriante da natureza, os homens recortam-se, quais sombras chinesas, numa fundo aridamente linear. Eu diria: pateticamente, de pé, no limiar da História.
Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros.
O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!
Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros...
Luís Graça
© Luís Graça (2005)
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:
Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Monteiro (CART 2479 / CART 11).
Os quadros metropolitanos (menos de 60) da futura CCAÇ 12 tinham chegado a Contuboel a 2 de Junho de 1969 para dar a instrução de especialidade aos seus soldados africanos (menos de 100) (1). A companhia do Monteiro (CART 2479, futura CART 11) já lhes tinha dado a instrução básica, de 12 a 24 de Maio.
Estive em Contuboel até 18 de Julho. Tive tempo para ler, escrever, passear, ir à pontas [hortas] dos caboverdianos comprar bananas e abacaxis, escrever e falar de coisas de que gostava: a poesia, a literatura, a filosofia, a política... Tinha muitas afinidades com o Monteiro e com ele era capaz de ter uma conversa franca sobre a guerra colonial, a política, etc.
Nesse dia do passeio de piroga, em Junho de 1969 (não posso precisar o dia da semana, já que na Guiné vivíamos sem calendário, sem distinção de dias úteis da semana, sábados, domingos ou feriados), apanhei o meu primeiro grande susto por aquelas paragens africanas.
O Monteiro quis refrescar-se e deu um mergulho no Rio Geba, junto à represa, debaixo da ponte de madeira. De repente, apercebi-me que ele nunca mais aparecia à superfície... Quase gelei de terror!... Passou-se uma eternidade até que vi um pedaço de cabeça e uns olhos esbugalhados a emergir à superfície...
Depois de Contuboel, o Monteiro foi para o Gabu (Nova Lamego), segundo creio, e perdi-lhe completamente o rasto.
De facto, nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o co-autor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1998. 307 pp). Foi aí que reconheci a sua fotografia e alguns dados biográficos. Ele esteve na Guiné entre 1968 e 1970, se não me engano. E julgo que vive no Norte, onde foi professor do ensino secundário e esteve ligado ao movimento dos rádios livres. Gostaria, muito sinceramente, de o voltar a ver e abraçar.
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(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
segunda-feira, 27 de junho de 2005
Guiné 61/71 - P85: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa, CCS/BCAÇ 1912, de novembro de 1967 a março de 1968 (Padre Mário da Lixa)
Testemunho do Padre Mário da Lixa (1937-2022) sobre a sua experiência como capelão militar na Guiné.
Acabei agora de responder por escrito a um questionário da responsabilidade de uma jovem professora do ensino secundário, natural desta freguesia de Macieira da Lixa, que anda às voltas com a sua tese de mestrado, na Universidade do Porto.
Originalmente publicámos apenas alguns extractos de um questionários, de 32 perguntas, sobre a sua "história de vida", a que o Padre Mário respondeu, e que são da responsabilidade de uma mestranda da Universidade do Porto (Julho de 2004).
Diário Aberto > 2004 Julho 14
Estas respostas foram inseridas pelo próprio no seu Diário Aberto (vd. entrada de 14 de julho de 2004) (http://padremariodemacieira.com.sapo.pt/diario.htm) (não disponível, mas recuperado pelo Arquivo.pt:
https://arquivo.pt/wayback/20041009183135/http://padremariodemacieira.com.sapo.pt:80/diario.htm
Tomo a liberdade de transcrever, na íntegra (para mais que ele agora nos deixpu, em 2022), as perguntas e as respostas, dado o seu grande interesse para se perceber melhor o difícil papel de um capelão militar católico em contexto de guerra, mas também a sua contestação do poder religioso, político e militar em vigor até ao 25 de Abril de 1974. A sua página, alojada no Sapo, foi descontinuada em finis de 2012, se não erramos.
O Padre Mário da Lixa foi capelão militar em Mansoa, de novembro de 1967 a março de 1968, como alferes graduado, CCS/BCAÇ 1912. Poucos tiveram a sua coerência e a sua coragem. Foi expulso em 8/3/1968.
Diário Aberto > 2004 Julho 14
Acabei agora de responder por escrito a um questionário da responsabilidade de uma jovem professora do ensino secundário, natural desta freguesia de Macieira da Lixa, que anda às voltas com a sua tese de mestrado, na Universidade do Porto.
Quando teve que escolher um assunto/tema para a sua tese, Joana, surpreendentemente, escolheu o "caso do Padre Mário de Macieira da Lixa". O orientador terá ficado entusiasmado com a ideia e ela avançou. Para a sua concretização, contactou-me pela primeira vez há mais de um ano, por ocasião de uma das minhas frequentes deslocações a esta freguesia do concelho de Felgueiras, com o objectivo de dar apoio teológico e bíblico à pequenina Comunidade Cristã de Base existente na freguesia, e cujos encontros costumam acontecer na casa que é simultaneamente Casa da Comunidade e casa de Maria Laura, sua presbítera não-ordenada, e dos seus dois filhos ainda solteiros.
Joana pôs-me o problema e eu disse-lhe a única coisa que poderia dizer: se é assim que quer, aqui me tem disponível para a acompanhar nesse trabalho e para responder a todas as questões que entender colocar-me, na minha qualidade de pároco de Macieira, a essa data. Desde então para cá, os contactos não têm sido muitos. Mas há uns tempos atrás, já eu tinha começado de novo a residir nesta freguesia, Joana fez-me chegar, por intermédio da sua mãe e do seu pai, um questionário com 32 perguntas, devidamente formuladas por escrito.
Num rápido olhar em diagonal sobre elas, pareceu-me que algumas das perguntas respiravam um certo ambiente pidesco, o que me surpreendeu desagradavelmente. Cheguei até a pensar não responder ao questionário. Li depois as perguntas com mais atenção e decidi responder. São essas perguntas, da responsabilidade da Joana, e as minhas respostas a cada uma delas que faço questão de partilhar aqui com as leitoras, os leitores deste DIÁRIO ABERTO, precisamente, na véspera da minha partida para um período de 15 dias de férias à beira-mar. Leiam e tirem as vossas conclusões.
Neste momento, desconheço por completo qual irá ser a dimensão do trabalho a que a jovem professora Joana decidiu meter mãos e que é da sua inteira responsabilidade. Da minha parte, ficam estas respostas às perguntas que nos transportam para os tempos em que o fascismo e a sua PIDE, já disfarçada de DGS (Direcção Geral de Segurança), continuavam por aí à solta em todo o país e durante os quais eu, na minha qualidade de pároco de Macieira da Lixa, entre Outubro de 1969 e Fevereiro de 1974, inopinadamente me vi chamado a testemunhar, na minha fraqueza, mas com surpreendente audácia, o Evangelho libertador e salvador de Jesus.
Neste momento, desconheço por completo qual irá ser a dimensão do trabalho a que a jovem professora Joana decidiu meter mãos e que é da sua inteira responsabilidade. Da minha parte, ficam estas respostas às perguntas que nos transportam para os tempos em que o fascismo e a sua PIDE, já disfarçada de DGS (Direcção Geral de Segurança), continuavam por aí à solta em todo o país e durante os quais eu, na minha qualidade de pároco de Macieira da Lixa, entre Outubro de 1969 e Fevereiro de 1974, inopinadamente me vi chamado a testemunhar, na minha fraqueza, mas com surpreendente audácia, o Evangelho libertador e salvador de Jesus.
As perguntas estão numeradas, mas encimadas por uma pergunta geral que parece ficar como título da tese. É a esta pergunta geral de abertura que começo por responder, sucintamente, já se vê. Seguem-se depois todas as outras perguntas e as minhas respostas. Eis.
O que leva o padre Mário a reagir contra a ordem social existente, na qual se encontra integrada a Igreja católica?
R. Na ordem social, sem ser da ordem social. É assim que me vejo como padre/presbítero da Igreja católica. Ao contrário do que nos querem convencer, nenhuma ordem social dominante vem directamente de Deus. Toda e qualquer ordem social é obra humana, como tal, imperfeita e, por isso, susceptível de ser criticada, melhorada ou mesmo substituída. A Igreja está integrada na ordem social? Sempre deverá estar nela, mas sem ser dela. Se se identifica com ela, logo perde a sua capacidade profética. E torna-se como o sal da terra que perde a sua força e para nada mais serve do que para ser lançado fora e ser pisado pelos seres humanos. Quando critico a Igreja (a minha crítica é sempre uma auto-crítica, porque também eu sou igreja!), é ainda por amor que o faço. Para ajudar a Igreja a ser e a manter-se fiel ao Evangelho de Jesus e ao Espírito Santo. De modo que a Igreja esteja na ordem social, mas sem ser da ordem social. Sei que esta postura dialéctica é historicamente difícil, mas não é impossível. Se todas, todos os que somos Igreja ajudarmos, conseguiremos. E a Humanidade no seu conjunto só tem a beneficiar com esta nossa fidelidade. Quando este equilíbrio dialéctico se rompe, a Igreja deixa de ser fecundamente profética e toda a Humanidade fica prejudicada. Esses são os períodos mais inumanos e mais deprimentes da História da Humanidade. Como manifestamente sucedeu em Portugal, no longo reinado do ditador Salazar, a que, para cúmulo, ainda se juntou toda aquela mentira orquestrada da senhora de Fátima e das suas patéticas e estupidificantes “aparições”.
1. Qual a origem social do padre Mário?
R. Como costumo dizer e até cantar, felizmente, nasci do lado dos pobres, precisamente, aquele que eu tenho como o lado certo da vida, pelo menos, enquanto continuar a haver na sociedade dois lados para se nascer, o dos ricos e o dos pobres. O meu pai, ti David, era operário numa fábrica de serração de madeira; a minha mãe, ti Maria do Grilo, era jornaleira nos campos de D. Maria Pinto. Desde cedo, me dei conta desta realidade que condiciona à partida quem vem a este mundo. Mais tarde, quando já adulto, continuei a manter-me do lado dos pobres, mas então por opção pessoal. E é ainda deste lado que continuo a estar, hoje, aos 67 anos de idade. Com manifesta alegria. Daqui, posso continuar a anunciar o Evangelho de Jesus aos pobres, o qual nos quer fazer a todas, todos – pobres e ricos – irmãs, irmãos uns dos outros, onde a riqueza produzida esteja ao serviço das pessoas, segundo as necessidades reais de cada uma.
2. Quando se decidiu pelo sacerdócio, o que teve “peso” nessa sua opção?
R. Já pelos sete/oito anos de idade, a quem me perguntava o que eu queria ser quando fosse grande, respondia sem hesitar que queria ser padre. Tinha um tio padre e o meu irmão mais velho frequentava o seminário. Pelos oito anos, lá estava eu a ajudar à missa (em latim!) todas as manhãs, na igreja paroquial de Lourosa, minha terra natal. Mas o que mais terá “pesado” em mim, à medida que crescia em anos e em entendimento, é que eu queria ser um padre diferente dos poucos que então conhecia. Queria ser padre para as pessoas e com as pessoas, em lugar de um credenciado funcionário eclesiástico que faz aquelas coisas todas na igreja e depois não quer saber das pessoas para nada, nomeadamente, das mais pobres e humilhadas. Mais tarde, vim a perceber que esta minha maneira de encarar as coisas configurava o que em Igreja costumamos chamar “vocação”. E a verdade é que ainda hoje continuo a sentir que a minha “vocação” tem muito de semelhante com a do jovem Samuel bíblico, ao tempo do sacerdote Eli (cf. 1º Livro de Samuel, 3).
3. Que expectativa tinha relativamente à formação que o seminário lhe iria transmitir?
R. Nenhuma em especial. Nunca tinha estado lá, por isso, não imaginava como seria. Quando muito, teria a expectativa de que me preparasse para a missão eclesial de Evangelizar os pobres, missão essa que, para mim, já nessa altura, tinha tudo a ver com a felicidade e a salvação das pessoas de carne e osso, a partir do nosso aqui e agora.
4. Correspondeu às suas expectativas ou foi um “instrumento claustrofóbico”?
R. Em termos globais, a formação que o seminário me proporcionou ficou como os alicerces sobre os quais, ao longo dos anos, pude sucessivamente plantar e desenvolver a nova formação que em cada circunstância me era mais oportuna e necessária. Aliás, devo sublinhar que, até hoje, depois que concluí o curso no seminário, nunca mais deixei de estudar, exactamente, como não deixei de comer e de meditar a Palavra de Deus. A minha vida em missão tem sido uma actualização contínua, de modo que o meu “dizer” e o meu “fazer” possam corresponder às expectativas culturais das pessoas concretas com quem vivo e com quem partilho a minha vida de padre/presbítero. O que houve de clausura no seminário – e houve muita, como então ainda estava no hábito eclesiástico, o que, felizmente, hoje já não acontece – acabou por redundar em mais e mais fome de abertura ao mundo e à Humanidade, depois que, aos 25 anos de idade, aconteceu a ordenação e me vi presbítero da Igreja e na Igreja, mas para melhor servir libertadoramente a Humanidade.
5. O comportamento que o padre Mário teve no seminário foi de subserviência?
R. De modo nenhum! Foi de correspondência ao muito que faziam por mim. Os anos de seminário foram anos de intenso trabalho, de intensa alegria, de crescente espiritualidade, de crescente maturidade, de grande companheirismo e de entre-ajuda. Pratiquei entusiasticamente quase todos os desportos que havia para praticar, com destaque para o voleibol, o futebol, o ping-pong, o hóquei em patins. E, que me lembre, nunca falhei uma aula de educação física, das duas que tínhamos por semana. Foram, por isso, doze anos cheiinhos como um ovo que ficaram como base do padre/presbítero feliz e realizado que tenho sido, nas circunstâncias concretas, as mais inesperadas e desafiadoras, em que a vida me tem colocado.
6. Essa postura foi uma estratégia sua ou considera-a como uma castração?
R. Quem pode falar em castração na minha vida, a começar pelos 12 anos de seminário? Sem os doze anos de seminário, nunca eu me teria desenvolvido em todas as dimensões, física, cultural, educacional, espiritual, ética, afectiva. São eles que estão na base do adulto e do padre criador e responsável que tenho conseguido ser desde então para cá na Igreja católica, tanto dentro das estruturas paroquiais, quando as tive, como fora delas, nos fecundos e libertadores ambientes das pequenas Comunidades Cristãs de Base, nos quais me mantenho há muitos anos.
7. Em que consistiam as críticas que o padre Mário fazia, na carta que escreveu ao Bispo, quando terminou o curso de capelão militar?
R. Eram tudo coisas muito simples, mas também muito concretas. Lamentava que, durante as cinco semanas que durou o curso de capelães militares, não nos tivesse sido dada mais regularmente a palavra (e éramos 50 padres, oriundos das diferentes dioceses do país, Açores e Madeira incluídos); que, concretamente, nas aulas de deontologia militar, dadas pelo próprio Bispo castrense, o ambiente fosse tão autoritário, tão de cima para baixo, sem hipótese para debate aberto e franco. E levantava sérias dúvidas sobre a moralidade da guerra colonial em que me via incorporado à força como capelão militar.
Recordo, ainda hoje, que, depois dessa carta, cheguei a pensar – se calhar, ingenuamente – que o Bispo castrense ainda seria capaz de me dispensar do serviço de capelão na Guiné-Bissau. Tal não aconteceu, evidentemente. Mas nunca esquecerei que, no dia do embarque, quando os vários capelães que rumávamos para aquela “província ultramarina” nos fomos despedir dele, o Bispo castrense teve o cuidado de se me dirigir pessoalmente, entre todos os outros, para confirmar se eu é que era o padre Mário. Sinal inequívoco de que a minha carta o tinha marcado.
8. Que serviços se faziam na Guiné-Bissau, por interesse e egoísmo, tendo em vista louvores e promoções? A quem se referia concretamente?
R. Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.
Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados “rasos” que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos.
9. A sua participação, forçada, como capelão militar na Guiné-Bissau, mudou a sua forma de pensar relativamente à política colonial seguida pelo Estado Novo?
R. Posso dizer que acabou por me abrir muito mais os olhos do corpo e, consequentemente, também da consciência. Em Mansoa, nos quatro meses em que fui capelão militar, pude aperceber-me de toda a iniquidade – “pecado organizado”, chamava-lhe então Sophia de Mello Breyner Andresen – que era a Guerra Colonial.
Experimentei na própria carne o que era estar integrado num corpo militar organizado de um Estado europeu que ocupava brutalmente a mátria/pátria de um povo africano, como se fosse a nossa própria mátria/pátria. Nunca mais esquecerei aqueles olhares das mulheres guineenses que viviam do outro lado do arame farpado que protegia as instalações do nosso Batalhão. Eram olhares que, no seu gritante silêncio, me/nos expulsavam do seu país ocupado. Nunca mais esquecerei as condições inumanas das prisões improvisadas em que o Batalhão mantinha enjaulados, durante dias, semanas, meses, num reduzidíssimo espaço e o mesmo para todos, dezenas de membros da população civil – mulheres e homens de todas as idades – a pretexto de que eram colaboradores dos “turras”. Eram condições muito abaixo de cão!
Nunca esquecerei as torturas infligidas aos apanhados em combate, para os fazer falar e trair os seus companheiros de luta de libertação. E tudo em nome da defesa da Pátria, de Deus, da Civilização Cristã Ocidental!...
Desde logo me demarquei de toda aquela ignomínia e injustiça. E de toda aquela mentira orquestrada que pretendia convencer-nos de que estávamos ali a defender “as nossas províncias ultramarinas”. Como padre, era naquele Batalhão o rosto mais visível da Igreja e, com pedagogia e crescente desassombro, passei a questionar as consciências dos soldados. As minhas homilias, na missa dominical, eram feitas de muitas perguntas, dirigidas especialmente à consciência dos militares que se assumiam como católicos, a começar pelo meu comandante do Batalhão. Levei, deste modo não-violento, a paz à guerra. E a guerra não me suportou por muito tempo. Quando percebeu que eu não era padre/presbítero do género de se deixar amedrontar com as suas ameaças, avançou rapidamente para a decisão mais extrema: expulsou-me de capelão militar, sem qualquer processo no Tribunal Militar!
O comandante, assumidamente católico, preferiu assim ficar sem capelão no Batalhão até ao final da comissão, a deixar-se interpelar mais profundamente pelo Evangelho da Paz que eu, na minha fraqueza, qual David contra Golias, me vi ali desassombradamente a anunciar. Nesse dia em que me expulsaram – 8 de Março de 1968 – não tive mais dúvidas que aquela Guerra era intrinsecamente perversa e imoral, como tal, uma causa completamente perdida para o Regime que estupidamente a desencadeou.
10. O que é que o padre Mário sentiu quando o seu chefe religioso lhe disse para não pregar a doutrina social da Igreja em Bissau?
R. Olhei-o de alto abaixo, estupefacto. Nem queria acreditar no que os meus ouvidos ouviam. Apesar de ser o meu chefe militar – eu era um simples alferes capelão compulsivamente recrutado para aquela comissão de serviço e ele um tenente-coronel que fazia parte dos quadros do Serviço de Capelães militares portugueses – resisti-lhe com firmeza e alegria em nome do Evangelho. Fiz tudo para o evangelizar naquele momento. Mas em vão. Ele estava demasiado identificado com os interesses ideológicos do Regime que fazia a guerra e parecia nem sequer entender as minhas palavras. O Evangelho da Paz que eu tinha anunciado ao Batalhão e que defendia agora ali diante dele, deveria soar-lhe a “loucura” e a “escândalo”. Nem toda a força da minha amizade presbiteral e da minha ternura fraterna o demoveram da sua posição ideológica.
E a verdade é que dos seus lábios ouvi de imediato a sentença: “Ai é assim que continuas a pensar? Então vais receber uma guia de marcha para Lisboa e lá vamos ver o que te havemos de fazer!” E assim foi. Poucos dias depois, chegou, via rádio, a guia de marcha, com viagem marcada para o avião da TAP, com a ordem expressa de eu trajar à civil, tal como os demais militares que viajavam no mesmo avião, para não dar a perceber, à chegada ao aeroporto de Lisboa, que o nosso país estava em guerra!
11. Como via a posição da sua Igreja relativamente à questão colonial?
R. Depois do que me aconteceu, como capelão militar, devo confessar que fiquei evangelicamente escandalizado. Ninguém da hierarquia militar da Capelania, a começar no capitão capelão, chefe da Capelania no Quartel General em Bissau e a acabar no Bispo castrense, em Lisboa, alguma vez me disse que o Evangelho da Paz que eu havia anunciado e por causa do qual acabei expulso do Exército, estava errado. Felizmente, nenhum deles foi tão longe. Todos reconheciam que eu estava certo, que o Evangelho de Jesus é por aí que avança. Mas discordavam da oportunidade de o anunciar naquelas circunstâncias. E recusaram-me toda e qualquer solidariedade, tanto pessoal, como institucional. Em vez disso, todos meteram o rabo entre as pernas e pactuaram com o Regime.
Esta sua postura – não esquecer que eram todos chefes da Capelania, a cujos quadros pertenciam – só foi possível porque reproduzia a postura de toda a hierarquia católica, salvo uma ou outra excepção que nunca se terá tornado visível até então. Era, por isso, uma posição evangelicamente indefensável, criminosa, contra a Paz e contra a Humanidade. Foi o que tentei dizer, na altura, tanto ao Bispo castrense, como ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, a cujo território regressei, depois de, em Lisboa, me terem passado à disponibilidade. Infelizmente, não me quiseram ouvir. Pelo contrário, o Bispo castrense ainda foi capaz de me classificar, em carta que escreveu ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, como “padre irrecuperável”.
12. Considerava a Igreja conivente com o regime de opressão imposto ao país? Na sua opinião qual a atitude que a Igreja deveria ter tomado?
R. Acho que o que me aconteceu na Guiné-Bissau foi a “minha Estrada de Damasco”. A partir daí, tornei-me no padre/presbítero que ainda hoje sou. Digamos que perdi a ingenuidade. Podia ter perdido a Fé. Podia ter batido com a porta e saído da Igreja. Mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, vi-me até a crescer na Fé, cada vez mais centrada, desde então, na pessoa de Jesus, simultaneamente, histórico e Ressuscitado.
E experimentei um amor ainda maior à Igreja, mas agora, um amor vivido de forma adulta, fecundamente lúcido e crítico, numa liberdade de filho de Deus que nunca mais se deixou amarrar por quaisquer interesses ideológicos e corporativos/eclesiásticos, venham eles de onde vierem. Assim transformado, é claro que não podia deixar de considerar a Igreja hierárquica da altura não só conivente com o Regime, mas unha e carne com ele. Sofri com esta postura e carreguei também com esta “cruz”, uma vez que nunca saí da Igreja. Demarquei-me, isso sim, dessa postura institucional. E, com isso, mostrei ao país e ao mundo outra forma histórica, bem mais humana e solidária, de se ser Igreja.
Felizmente, nunca estive sozinho nesta postura. Havia então – e há – uma Igreja outra, no interior da mesma Igreja católica mais tradicional, que vivia humildemente atenta aos sinais dos tempos e se deixava guiar pelo Espírito Santo que soprava forte dessas bandas; que era fraternalmente solidária com as inúmeras vítimas do Regime, nomeadamente, com os presos políticos e suas famílias; que promovia a Paz contra a guerra colonial; que denunciava no estrangeiro os crimes do Regime, para assim apressar o seu fim; e que apostava tudo no esclarecimento e na consciencialização das populações, tanto no espaço do território nacional, como entre os milhões de emigrantes em França, Alemanha e outros países da Europa e do resto do mundo. Com estas irmãs, estes irmãos de Fé, sentia-me e sinto-me sempre em casa!
As restantes perguntas e resppostas (inseridas na revisão do poste em 19 de maio de 2023) (LG)
13. Como reage a Igreja quando o padre Mário diz que ela é infiel à sua missão, entrando no jogo de interesses dos ricos, quando fala na riqueza em que os Bispos vivem à custa da exploração do povo?
R. Comigo, concretamente, a hierarquia da Igreja não tem qualquer reacção especial. Creio que prefere dar publicamente a impressão de que eu nem sequer existo. Mas eu sei que ela continua muito atenta ao que eu digo e ao que eu faço, e deixa-se interpelar pelas minhas palavras e pelos meus actos. Claro que não o apregoa aos quatro ventos. Nem mo diz ao ouvido. Mas tem tido muito em conta o que eu digo nas televisões, e o que eu escrevo, quer no Jornal Fraternizar, quer nos livros que ultimamente tenho publicado.
22. Quando o padre Mário, no 3.º Encontro que organizou em Macieira da Lixa, disse “… quem se deixar ficar parado sem reagir contra esta situação degradante é como um capacho em que os ricos limpam os pés.”, não achava que estas palavras podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta?
R. Não sei onde foram buscar essa citação que aqui me atribuem. Se foi a alguma crónica de Amadeu C. de Vasconcelos, ou a alguma acusação que a PIDE me fez, é preciso desconfiar do seu teor, porque pode ter sido distorcida, com o objectivo de, já naquela altura, colocarem as pessoas contra mim. Com esta ressalva inicial, respondo então à pergunta, e faço-o com os mesmos termos com que sempre respondi a perguntas quase iguais (mas que triste coincidência!) que a PIDE me fez, durante os sucessivos interrogatórios a que me sujeitou, quer antes de me prender pela primeira vez (ao todo, cinco interrogatórios!), quer já depois de me ter à sua inteira disposição na Cadeia, durante o período que precedia a entrega do processo ao Tribunal para o respectivo despacho de pronúncia. Eis o que respondo: Estas palavras que me atribuem, se tiverem sido ditas tal e qual por mim – o que sinceramente duvido – de modo algum “podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta”, porque ódio é um sentimento que eu nunca cultivei, não cultivo, nem jamais cultivarei, e que desconheço por completo na minha prática de vida. Já então era notório que eu amava todas as pessoas, inclusive aquelas que faziam gala de se perfilarem como meus inimigos e que, sem quaisquer escrúpulos, me caluniavam e perseguiam. Ora, estas e quaisquer outras palavras que eu, enquanto pároco, tenha dito, sempre teriam que ser confrontadas – e eram – com a minha prática individual e pastoral. Então, como se pode pensar em ódio, ao ler estas palavras, quando toda a minha prática, como pároco, era de manifesto amor fraternal universal e de solidariedade incondicional com todas as pessoas? Tais palavras e outras semelhantes só podiam despertar no povo em geral e em cada pessoa concreta, em especial, que as escutassem, o sentimento de dignidade humana, de modo a abandonarmos a tradicional postura de resignação e de conformismo que o Regime e os seus mentores promoviam por todos os meios – até por meio de certas catequeses eclesiásticas – a fim de passarmos corajosamente a assumir posturas humanas de dignidade, bem mais conformes à nossa condição de filhas, filhos de Deus.
O que leva o padre Mário a reagir contra a ordem social existente, na qual se encontra integrada a Igreja católica?
R. Na ordem social, sem ser da ordem social. É assim que me vejo como padre/presbítero da Igreja católica. Ao contrário do que nos querem convencer, nenhuma ordem social dominante vem directamente de Deus. Toda e qualquer ordem social é obra humana, como tal, imperfeita e, por isso, susceptível de ser criticada, melhorada ou mesmo substituída. A Igreja está integrada na ordem social? Sempre deverá estar nela, mas sem ser dela. Se se identifica com ela, logo perde a sua capacidade profética. E torna-se como o sal da terra que perde a sua força e para nada mais serve do que para ser lançado fora e ser pisado pelos seres humanos. Quando critico a Igreja (a minha crítica é sempre uma auto-crítica, porque também eu sou igreja!), é ainda por amor que o faço. Para ajudar a Igreja a ser e a manter-se fiel ao Evangelho de Jesus e ao Espírito Santo. De modo que a Igreja esteja na ordem social, mas sem ser da ordem social. Sei que esta postura dialéctica é historicamente difícil, mas não é impossível. Se todas, todos os que somos Igreja ajudarmos, conseguiremos. E a Humanidade no seu conjunto só tem a beneficiar com esta nossa fidelidade. Quando este equilíbrio dialéctico se rompe, a Igreja deixa de ser fecundamente profética e toda a Humanidade fica prejudicada. Esses são os períodos mais inumanos e mais deprimentes da História da Humanidade. Como manifestamente sucedeu em Portugal, no longo reinado do ditador Salazar, a que, para cúmulo, ainda se juntou toda aquela mentira orquestrada da senhora de Fátima e das suas patéticas e estupidificantes “aparições”.
1. Qual a origem social do padre Mário?
R. Como costumo dizer e até cantar, felizmente, nasci do lado dos pobres, precisamente, aquele que eu tenho como o lado certo da vida, pelo menos, enquanto continuar a haver na sociedade dois lados para se nascer, o dos ricos e o dos pobres. O meu pai, ti David, era operário numa fábrica de serração de madeira; a minha mãe, ti Maria do Grilo, era jornaleira nos campos de D. Maria Pinto. Desde cedo, me dei conta desta realidade que condiciona à partida quem vem a este mundo. Mais tarde, quando já adulto, continuei a manter-me do lado dos pobres, mas então por opção pessoal. E é ainda deste lado que continuo a estar, hoje, aos 67 anos de idade. Com manifesta alegria. Daqui, posso continuar a anunciar o Evangelho de Jesus aos pobres, o qual nos quer fazer a todas, todos – pobres e ricos – irmãs, irmãos uns dos outros, onde a riqueza produzida esteja ao serviço das pessoas, segundo as necessidades reais de cada uma.
2. Quando se decidiu pelo sacerdócio, o que teve “peso” nessa sua opção?
R. Já pelos sete/oito anos de idade, a quem me perguntava o que eu queria ser quando fosse grande, respondia sem hesitar que queria ser padre. Tinha um tio padre e o meu irmão mais velho frequentava o seminário. Pelos oito anos, lá estava eu a ajudar à missa (em latim!) todas as manhãs, na igreja paroquial de Lourosa, minha terra natal. Mas o que mais terá “pesado” em mim, à medida que crescia em anos e em entendimento, é que eu queria ser um padre diferente dos poucos que então conhecia. Queria ser padre para as pessoas e com as pessoas, em lugar de um credenciado funcionário eclesiástico que faz aquelas coisas todas na igreja e depois não quer saber das pessoas para nada, nomeadamente, das mais pobres e humilhadas. Mais tarde, vim a perceber que esta minha maneira de encarar as coisas configurava o que em Igreja costumamos chamar “vocação”. E a verdade é que ainda hoje continuo a sentir que a minha “vocação” tem muito de semelhante com a do jovem Samuel bíblico, ao tempo do sacerdote Eli (cf. 1º Livro de Samuel, 3).
3. Que expectativa tinha relativamente à formação que o seminário lhe iria transmitir?
R. Nenhuma em especial. Nunca tinha estado lá, por isso, não imaginava como seria. Quando muito, teria a expectativa de que me preparasse para a missão eclesial de Evangelizar os pobres, missão essa que, para mim, já nessa altura, tinha tudo a ver com a felicidade e a salvação das pessoas de carne e osso, a partir do nosso aqui e agora.
4. Correspondeu às suas expectativas ou foi um “instrumento claustrofóbico”?
R. Em termos globais, a formação que o seminário me proporcionou ficou como os alicerces sobre os quais, ao longo dos anos, pude sucessivamente plantar e desenvolver a nova formação que em cada circunstância me era mais oportuna e necessária. Aliás, devo sublinhar que, até hoje, depois que concluí o curso no seminário, nunca mais deixei de estudar, exactamente, como não deixei de comer e de meditar a Palavra de Deus. A minha vida em missão tem sido uma actualização contínua, de modo que o meu “dizer” e o meu “fazer” possam corresponder às expectativas culturais das pessoas concretas com quem vivo e com quem partilho a minha vida de padre/presbítero. O que houve de clausura no seminário – e houve muita, como então ainda estava no hábito eclesiástico, o que, felizmente, hoje já não acontece – acabou por redundar em mais e mais fome de abertura ao mundo e à Humanidade, depois que, aos 25 anos de idade, aconteceu a ordenação e me vi presbítero da Igreja e na Igreja, mas para melhor servir libertadoramente a Humanidade.
5. O comportamento que o padre Mário teve no seminário foi de subserviência?
R. De modo nenhum! Foi de correspondência ao muito que faziam por mim. Os anos de seminário foram anos de intenso trabalho, de intensa alegria, de crescente espiritualidade, de crescente maturidade, de grande companheirismo e de entre-ajuda. Pratiquei entusiasticamente quase todos os desportos que havia para praticar, com destaque para o voleibol, o futebol, o ping-pong, o hóquei em patins. E, que me lembre, nunca falhei uma aula de educação física, das duas que tínhamos por semana. Foram, por isso, doze anos cheiinhos como um ovo que ficaram como base do padre/presbítero feliz e realizado que tenho sido, nas circunstâncias concretas, as mais inesperadas e desafiadoras, em que a vida me tem colocado.
6. Essa postura foi uma estratégia sua ou considera-a como uma castração?
R. Quem pode falar em castração na minha vida, a começar pelos 12 anos de seminário? Sem os doze anos de seminário, nunca eu me teria desenvolvido em todas as dimensões, física, cultural, educacional, espiritual, ética, afectiva. São eles que estão na base do adulto e do padre criador e responsável que tenho conseguido ser desde então para cá na Igreja católica, tanto dentro das estruturas paroquiais, quando as tive, como fora delas, nos fecundos e libertadores ambientes das pequenas Comunidades Cristãs de Base, nos quais me mantenho há muitos anos.
7. Em que consistiam as críticas que o padre Mário fazia, na carta que escreveu ao Bispo, quando terminou o curso de capelão militar?
R. Eram tudo coisas muito simples, mas também muito concretas. Lamentava que, durante as cinco semanas que durou o curso de capelães militares, não nos tivesse sido dada mais regularmente a palavra (e éramos 50 padres, oriundos das diferentes dioceses do país, Açores e Madeira incluídos); que, concretamente, nas aulas de deontologia militar, dadas pelo próprio Bispo castrense, o ambiente fosse tão autoritário, tão de cima para baixo, sem hipótese para debate aberto e franco. E levantava sérias dúvidas sobre a moralidade da guerra colonial em que me via incorporado à força como capelão militar.
Recordo, ainda hoje, que, depois dessa carta, cheguei a pensar – se calhar, ingenuamente – que o Bispo castrense ainda seria capaz de me dispensar do serviço de capelão na Guiné-Bissau. Tal não aconteceu, evidentemente. Mas nunca esquecerei que, no dia do embarque, quando os vários capelães que rumávamos para aquela “província ultramarina” nos fomos despedir dele, o Bispo castrense teve o cuidado de se me dirigir pessoalmente, entre todos os outros, para confirmar se eu é que era o padre Mário. Sinal inequívoco de que a minha carta o tinha marcado.
8. Que serviços se faziam na Guiné-Bissau, por interesse e egoísmo, tendo em vista louvores e promoções? A quem se referia concretamente?
R. Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.
Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados “rasos” que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos.
9. A sua participação, forçada, como capelão militar na Guiné-Bissau, mudou a sua forma de pensar relativamente à política colonial seguida pelo Estado Novo?
R. Posso dizer que acabou por me abrir muito mais os olhos do corpo e, consequentemente, também da consciência. Em Mansoa, nos quatro meses em que fui capelão militar, pude aperceber-me de toda a iniquidade – “pecado organizado”, chamava-lhe então Sophia de Mello Breyner Andresen – que era a Guerra Colonial.
Experimentei na própria carne o que era estar integrado num corpo militar organizado de um Estado europeu que ocupava brutalmente a mátria/pátria de um povo africano, como se fosse a nossa própria mátria/pátria. Nunca mais esquecerei aqueles olhares das mulheres guineenses que viviam do outro lado do arame farpado que protegia as instalações do nosso Batalhão. Eram olhares que, no seu gritante silêncio, me/nos expulsavam do seu país ocupado. Nunca mais esquecerei as condições inumanas das prisões improvisadas em que o Batalhão mantinha enjaulados, durante dias, semanas, meses, num reduzidíssimo espaço e o mesmo para todos, dezenas de membros da população civil – mulheres e homens de todas as idades – a pretexto de que eram colaboradores dos “turras”. Eram condições muito abaixo de cão!
Nunca esquecerei as torturas infligidas aos apanhados em combate, para os fazer falar e trair os seus companheiros de luta de libertação. E tudo em nome da defesa da Pátria, de Deus, da Civilização Cristã Ocidental!...
Desde logo me demarquei de toda aquela ignomínia e injustiça. E de toda aquela mentira orquestrada que pretendia convencer-nos de que estávamos ali a defender “as nossas províncias ultramarinas”. Como padre, era naquele Batalhão o rosto mais visível da Igreja e, com pedagogia e crescente desassombro, passei a questionar as consciências dos soldados. As minhas homilias, na missa dominical, eram feitas de muitas perguntas, dirigidas especialmente à consciência dos militares que se assumiam como católicos, a começar pelo meu comandante do Batalhão. Levei, deste modo não-violento, a paz à guerra. E a guerra não me suportou por muito tempo. Quando percebeu que eu não era padre/presbítero do género de se deixar amedrontar com as suas ameaças, avançou rapidamente para a decisão mais extrema: expulsou-me de capelão militar, sem qualquer processo no Tribunal Militar!
O comandante, assumidamente católico, preferiu assim ficar sem capelão no Batalhão até ao final da comissão, a deixar-se interpelar mais profundamente pelo Evangelho da Paz que eu, na minha fraqueza, qual David contra Golias, me vi ali desassombradamente a anunciar. Nesse dia em que me expulsaram – 8 de Março de 1968 – não tive mais dúvidas que aquela Guerra era intrinsecamente perversa e imoral, como tal, uma causa completamente perdida para o Regime que estupidamente a desencadeou.
10. O que é que o padre Mário sentiu quando o seu chefe religioso lhe disse para não pregar a doutrina social da Igreja em Bissau?
R. Olhei-o de alto abaixo, estupefacto. Nem queria acreditar no que os meus ouvidos ouviam. Apesar de ser o meu chefe militar – eu era um simples alferes capelão compulsivamente recrutado para aquela comissão de serviço e ele um tenente-coronel que fazia parte dos quadros do Serviço de Capelães militares portugueses – resisti-lhe com firmeza e alegria em nome do Evangelho. Fiz tudo para o evangelizar naquele momento. Mas em vão. Ele estava demasiado identificado com os interesses ideológicos do Regime que fazia a guerra e parecia nem sequer entender as minhas palavras. O Evangelho da Paz que eu tinha anunciado ao Batalhão e que defendia agora ali diante dele, deveria soar-lhe a “loucura” e a “escândalo”. Nem toda a força da minha amizade presbiteral e da minha ternura fraterna o demoveram da sua posição ideológica.
E a verdade é que dos seus lábios ouvi de imediato a sentença: “Ai é assim que continuas a pensar? Então vais receber uma guia de marcha para Lisboa e lá vamos ver o que te havemos de fazer!” E assim foi. Poucos dias depois, chegou, via rádio, a guia de marcha, com viagem marcada para o avião da TAP, com a ordem expressa de eu trajar à civil, tal como os demais militares que viajavam no mesmo avião, para não dar a perceber, à chegada ao aeroporto de Lisboa, que o nosso país estava em guerra!
11. Como via a posição da sua Igreja relativamente à questão colonial?
R. Depois do que me aconteceu, como capelão militar, devo confessar que fiquei evangelicamente escandalizado. Ninguém da hierarquia militar da Capelania, a começar no capitão capelão, chefe da Capelania no Quartel General em Bissau e a acabar no Bispo castrense, em Lisboa, alguma vez me disse que o Evangelho da Paz que eu havia anunciado e por causa do qual acabei expulso do Exército, estava errado. Felizmente, nenhum deles foi tão longe. Todos reconheciam que eu estava certo, que o Evangelho de Jesus é por aí que avança. Mas discordavam da oportunidade de o anunciar naquelas circunstâncias. E recusaram-me toda e qualquer solidariedade, tanto pessoal, como institucional. Em vez disso, todos meteram o rabo entre as pernas e pactuaram com o Regime.
Esta sua postura – não esquecer que eram todos chefes da Capelania, a cujos quadros pertenciam – só foi possível porque reproduzia a postura de toda a hierarquia católica, salvo uma ou outra excepção que nunca se terá tornado visível até então. Era, por isso, uma posição evangelicamente indefensável, criminosa, contra a Paz e contra a Humanidade. Foi o que tentei dizer, na altura, tanto ao Bispo castrense, como ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, a cujo território regressei, depois de, em Lisboa, me terem passado à disponibilidade. Infelizmente, não me quiseram ouvir. Pelo contrário, o Bispo castrense ainda foi capaz de me classificar, em carta que escreveu ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, como “padre irrecuperável”.
12. Considerava a Igreja conivente com o regime de opressão imposto ao país? Na sua opinião qual a atitude que a Igreja deveria ter tomado?
R. Acho que o que me aconteceu na Guiné-Bissau foi a “minha Estrada de Damasco”. A partir daí, tornei-me no padre/presbítero que ainda hoje sou. Digamos que perdi a ingenuidade. Podia ter perdido a Fé. Podia ter batido com a porta e saído da Igreja. Mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, vi-me até a crescer na Fé, cada vez mais centrada, desde então, na pessoa de Jesus, simultaneamente, histórico e Ressuscitado.
E experimentei um amor ainda maior à Igreja, mas agora, um amor vivido de forma adulta, fecundamente lúcido e crítico, numa liberdade de filho de Deus que nunca mais se deixou amarrar por quaisquer interesses ideológicos e corporativos/eclesiásticos, venham eles de onde vierem. Assim transformado, é claro que não podia deixar de considerar a Igreja hierárquica da altura não só conivente com o Regime, mas unha e carne com ele. Sofri com esta postura e carreguei também com esta “cruz”, uma vez que nunca saí da Igreja. Demarquei-me, isso sim, dessa postura institucional. E, com isso, mostrei ao país e ao mundo outra forma histórica, bem mais humana e solidária, de se ser Igreja.
Felizmente, nunca estive sozinho nesta postura. Havia então – e há – uma Igreja outra, no interior da mesma Igreja católica mais tradicional, que vivia humildemente atenta aos sinais dos tempos e se deixava guiar pelo Espírito Santo que soprava forte dessas bandas; que era fraternalmente solidária com as inúmeras vítimas do Regime, nomeadamente, com os presos políticos e suas famílias; que promovia a Paz contra a guerra colonial; que denunciava no estrangeiro os crimes do Regime, para assim apressar o seu fim; e que apostava tudo no esclarecimento e na consciencialização das populações, tanto no espaço do território nacional, como entre os milhões de emigrantes em França, Alemanha e outros países da Europa e do resto do mundo. Com estas irmãs, estes irmãos de Fé, sentia-me e sinto-me sempre em casa!
13. Como reage a Igreja quando o padre Mário diz que ela é infiel à sua missão, entrando no jogo de interesses dos ricos, quando fala na riqueza em que os Bispos vivem à custa da exploração do povo?
R. Comigo, concretamente, a hierarquia da Igreja não tem qualquer reacção especial. Creio que prefere dar publicamente a impressão de que eu nem sequer existo. Mas eu sei que ela continua muito atenta ao que eu digo e ao que eu faço, e deixa-se interpelar pelas minhas palavras e pelos meus actos. Claro que não o apregoa aos quatro ventos. Nem mo diz ao ouvido. Mas tem tido muito em conta o que eu digo nas televisões, e o que eu escrevo, quer no Jornal Fraternizar, quer nos livros que ultimamente tenho publicado.
Hoje, felizmente, os bispos já não são como eram no anterior Regime. O 25 de Abril obrigou a sociedade portuguesa a mudar radicalmente. E os bispos da nossa Igreja católica vivem e respiram neste novo tempo. Tem-lhes custado os olhos da cara adaptar-se a estes novos tempos que não sacralizam lugares nem pessoas, e exigem mais proximidade nas relações entre todas as pessoas, sem aquelas distâncias hierárquicas que o anterior Regime impunha. Mas não há dúvidas de que hoje os nossos bispos são-no de maneira muito diferente do que eram antigamente. São bispos muito mais despojados da riqueza, muito mais sem-cerimónias, muito mais próximos das outras pessoas, conduzem o seu próprio carro, atendem pessoalmente o telemóvel, enviam os seus e-mails, viajam na Internet, numa palavra, são mais como as outras pessoas.
Precisam ainda duma coisa: perder aquele ar de quem tem a última palavra na Igreja. E, se quiserem ter a última palavra, então que seja para dizer ao resto da Igreja por que pessoas e acontecimentos é que o Espírito Santo está a passar, de modo que toda ela, a começar por eles, corra a abrir-se a Ele e se deixe conduzir por Ele. Precisamos, como de pão para a boca, de Bispos profetas que obedeçam ao Espírito Santo de Deus; dispensamos os Bispos-empresários que presidem às respectivas Igrejas locais, como se cada uma delas fosse a sucursal duma multinacional de religião, cuja sede está em Roma. Tomem estas minhas palavras como uma salutar caricatura. Mas não deixem de reflectir nelas. São ditas com muito amor.
14. Como reage o poder político aos ataques veementes que o padre Mário lhe faz?
R. Provavelmente, faz orelhas moucas. Pelo menos, a mim, pessoalmente, nunca me chega qualquer reacção da parte do poder político às minhas salutares críticas. De resto, eu não represento para os políticos do poder qualquer perigo, dado que não sou nem quero ser concorrente aos lugares que eles ocupam e que não querem perder de modo nenhum. Sou um simples padre/presbítero da Igreja católica que recusa todo o poder, a começar pelo poder eclesiástico.
14. Como reage o poder político aos ataques veementes que o padre Mário lhe faz?
R. Provavelmente, faz orelhas moucas. Pelo menos, a mim, pessoalmente, nunca me chega qualquer reacção da parte do poder político às minhas salutares críticas. De resto, eu não represento para os políticos do poder qualquer perigo, dado que não sou nem quero ser concorrente aos lugares que eles ocupam e que não querem perder de modo nenhum. Sou um simples padre/presbítero da Igreja católica que recusa todo o poder, a começar pelo poder eclesiástico.
Felizmente, vivo sem paróquia – sabem que ser pároco é poder?! – e não tenho nenhum dos privilégios que a Concordata católico-fascista agora reciclada reconhece aos clérigos párocos. A minha força é apenas a da palavra e da palavra tecida de verdade, por isso, sempre politicamente incorrecta. Mas nos tempos que correm, e dentro da presente Ordem mundial que retém a verdade cativa na injustiça, a minha força acaba por ser muito pouca ou nenhuma. Não represento um perigo real para ninguém. Sou assim como um menino, cuja alegria maior é poder partilhar a mesa com quem é desprezado pelo mundo, e que o que eu mais quero é acabar com a pobreza no mundo. Mas tudo isto sem armas. Sem violência. Apenas com a força da palavra. E o testemunho da própria vida.
15. Quando foi preso era importante para si que o Bispo não se remetesse ao silêncio? Porquê?
R. Era importante, antes de mais, pelo próprio Bispo. E pela Igreja que nele tem maior visibilidade. Se era o anúncio do Evangelho de Jesus que estava em causa com a minha prisão política – e era, como ficou provado no Tribunal – teria sido um contra-testemunho e um contra-sinal muito grande, se o Bispo se tivesse remetido ao silêncio. Já os profetas bíblicos criticavam sem contemplações os pastores (entenda-se, os sacerdotes e outros dirigentes) do seu tempo que se comportavam como “cães mudos” diante dos crimes cometidos contra o povo. A expressão “cães mudos” é forte, mas é dos profetas bíblicos! Felizmente, o Bispo D. António não se remeteu ao silêncio, pelo menos, por ocasião da primeira prisão que sofri.
15. Quando foi preso era importante para si que o Bispo não se remetesse ao silêncio? Porquê?
R. Era importante, antes de mais, pelo próprio Bispo. E pela Igreja que nele tem maior visibilidade. Se era o anúncio do Evangelho de Jesus que estava em causa com a minha prisão política – e era, como ficou provado no Tribunal – teria sido um contra-testemunho e um contra-sinal muito grande, se o Bispo se tivesse remetido ao silêncio. Já os profetas bíblicos criticavam sem contemplações os pastores (entenda-se, os sacerdotes e outros dirigentes) do seu tempo que se comportavam como “cães mudos” diante dos crimes cometidos contra o povo. A expressão “cães mudos” é forte, mas é dos profetas bíblicos! Felizmente, o Bispo D. António não se remeteu ao silêncio, pelo menos, por ocasião da primeira prisão que sofri.
Tenho que reconhecer que, nessa altura, o Bispo D. António foi fraternalmente exemplar. Inclusive, aceitou ir ao Tribunal Plenário do Porto testemunhar em meu favor e em favor da missão eclesial por causa da qual eu havia sido preso e estava a ser julgado. O Tribunal absolveu-me. Mesmo assim, os cerca de sete meses de prisão política preventiva que sofri ninguém mos tirou! Aquando da 2.ª prisão política, o Bispo D. António manteve-se afastado de tudo. Nem sequer me visitou na prisão. Outros da Igreja do Porto o fizeram, inclusive, o Bispo auxiliar da Diocese, D. Domingos de Pinho Brandão, por mais de uma vez. Entre a primeira e a segunda prisão, o Bispo D. António demarcou-se de mim e da forma como eu conduzia a pastoral na paróquia. Aliás, depois do primeiro julgamento, ele chegou a sugerir-me que renunciasse à paróquia e fosse fazer um doutoramento lá fora por conta da Diocese. Eu é que não aceitei. Disse-lhe que só iria se ele me garantisse que esse doutoramento era do interesse da Igreja do Porto. Vai daí, quando voltei a ser preso, já não pude contar com a solidariedade do Bispo D. António. O que é difícil de compreender, já que a acusação era praticamente a mesma da primeira vez. Mas o Bispo entendeu manter-se distante de tudo. “Non bis in idem”, diz um provérbio latino. Duas vezes na mesma coisa, não. Era demais para o Bispo do Porto. A Igreja e o Regime regiam-se – e ainda se regem! – por uma Concordata. E o meu comportamento como pároco ameaçava pôr em causa a própria Concordata. Tive então que ser sacrificado, para que a Concordata pudesse manter-se. Foi o que na altura me deram a entender por meias palavras. Tentei compreender e suportar.
Afinal, outros antes de mim já tinham sido também sacrificados, ainda que noutras circunstâncias. Mas, é claro que não concordei com essa maneira da Igreja hierárquica fazer as coisas. E disse-o, firme e fraternalmente, ao Bispo. De nada valeu. O facto importante a reter em tudo isto é que o Tribunal Plenário, depois de trinta e três audiências e de onze meses de prisão política preventiva, voltou a dar-me razão, como da primeira vez. Mesmo assim, não pude regressar à paróquia de Macieira da Lixa, por imposição do Bispo D. António. E, desde então, nunca mais me foi atribuída qualquer responsabilidade pastoral oficial, por parte da Diocese do Porto. Também aqui, mais vale que um padre fique marginalizado o resto da vida, do que pôr em perigo a Concordata entre a Santa Sé e o Estado português. Tudo suportei e suporto. Sempre na esperança de, com esta minha atitude, dar visibilidade, na minha própria carne, à via do Evangelho de Jesus contra a via do poder e dos privilégios que o poder costuma garantir a quem com ele faz aliança. Pena é que a hierarquia maior da Igreja continue a experimentar tanta dificuldade em avançar também por esta via do Evangelho de Jesus. Ao não fazê-lo, ganha em privilégios o que perde em profecia. E quem sai gravemente prejudicada é a Humanidade. E a própria Igreja, evidentemente.
16. O que pretendia o padre Mário dizer ao Bispo quando recebesse autorização para lhe escrever?
R. Pretendia saudá-lo, desde a Cadeia de Caxias, com todo o meu afecto fraternal e eclesial. E testemunhar-lhe que me sentia interiormente animado, apesar das prisões. Pretendia também dizer-lhe que confiava nele e que contava com a sua solidariedade e a solidariedade de toda a Igreja do Porto. E ainda convidá-lo à alegria no Espírito Santo, porque a causa do Evangelho de Jesus haveria de sair fortalecida com as minhas prisões, como aconteceu no início, com as prisões de S. Paulo. E que não se afligisse, porque, com as minhas prisões por causa do Evangelho, o nome de Deus era muito mais glorificado no país e no mundo.
17. Teve de ter autorização do Director Geral de Segurança para escrever as cartas, e sabendo que estas eram sujeitas à censura, disse sempre aquilo que pretendia?
R. É verdade. Tive que pedir por escrito autorização para escrever. Todas as cartas que escrevesse tinham que ser entregues abertas, para passarem pelos serviços de censura da Cadeia política. Mesmo assim, não deixei nunca de me comportar como um homem interiormente livre. Sempre escrevi o que tinha em mente escrever. Sem auto-censura. Apenas cuidava em utilizar um estilo que “despistasse” o censor. Nunca me assustei. A sensação que já então tinha era que, ali, os verdadeiros prisioneiros eram os meus carrascos e que homens livres éramos eu e as centenas de outros companheiros que eles prepotentemente retinham atrás das grades.
18. Foram muitas as cartas que não passaram na censura?
R. Não foram muitas. Mas tive várias cartas que não chegaram nunca aos destinatários. E que não me foram devolvidas. Tenho uma explicação para este facto: as cartas que eu escrevia eram cartas com muita reflexão teológica e análise pastoral. O censor deveria ter dificuldade em entender esses conteúdos e não tinha outro remédio senão deixar passar. Deveria pensar lá para ele que a reflexão teológica nunca seria subversão nem estaria na origem de qualquer revolução. E nisso se enganou. Porque a teologia que eu já então reflectia era a teologia da libertação. E não há nada politicamente mais subversivo e revolucionário do que essa teologia!
19. As suas ideias eram consideradas subversivas pelo poder político e por muitos elementos da Igreja católica, como por exemplo Amadeu C. Vasconcelos. Concorda?
R. É verdade. E havia algum mal nisso? A subversão não é o pão que alimenta a vida dos povos? Pode haver saúde social sem subversão? O Evangelho de Jesus e a Palavra de Deus em geral não são fecunda subversão? O poder político então vigente não gostava? Era um problema dele. Eu é que, como padre/presbítero da Igreja católica, não podia nem posso deixar de anunciar o Evangelho de Jesus. E o Evangelho será sempre subversivo. Aliás, foi o que eu disse ao meu comandante de Batalhão, antes de ter sido expulso de capelão militar, em Mansoa: Se o Evangelho da Paz que eu aqui anuncio vai contra a letra da Constituição Portuguesa, mudem a Constituição, que eu não posso mudar o Evangelho! E a verdade é que, poucos anos depois, mudaram a Constituição! Muitos elementos da Igreja católica da altura também consideravam subversivas as minhas ideias? E admiram-se com isso? Então não sabemos que muitos dos nossos católicos, das nossas católicas são-no apenas por herança, por terem nascido num país de tradição católica? Ou porque os pais e as mães também o foram? Quantas, quantos é que o são, por lhes ter sido anunciado Jesus, o Cristo, e elas, eles lhe terem dado a sua adesão pessoal? E não é também verdade que há muitas católicas, muitos católicos que não chegam nunca a ser cristãs, cristãos como Jesus de Nazaré o foi? Então por que havemos de achar estranho que haja comportamentos e reacções como os que se referem na pergunta, mesmo por parte de “muitos católicos”? Ou será crime na Igreja sermos cristãos ao jeito de Jesus de Nazaré?
16. O que pretendia o padre Mário dizer ao Bispo quando recebesse autorização para lhe escrever?
R. Pretendia saudá-lo, desde a Cadeia de Caxias, com todo o meu afecto fraternal e eclesial. E testemunhar-lhe que me sentia interiormente animado, apesar das prisões. Pretendia também dizer-lhe que confiava nele e que contava com a sua solidariedade e a solidariedade de toda a Igreja do Porto. E ainda convidá-lo à alegria no Espírito Santo, porque a causa do Evangelho de Jesus haveria de sair fortalecida com as minhas prisões, como aconteceu no início, com as prisões de S. Paulo. E que não se afligisse, porque, com as minhas prisões por causa do Evangelho, o nome de Deus era muito mais glorificado no país e no mundo.
17. Teve de ter autorização do Director Geral de Segurança para escrever as cartas, e sabendo que estas eram sujeitas à censura, disse sempre aquilo que pretendia?
R. É verdade. Tive que pedir por escrito autorização para escrever. Todas as cartas que escrevesse tinham que ser entregues abertas, para passarem pelos serviços de censura da Cadeia política. Mesmo assim, não deixei nunca de me comportar como um homem interiormente livre. Sempre escrevi o que tinha em mente escrever. Sem auto-censura. Apenas cuidava em utilizar um estilo que “despistasse” o censor. Nunca me assustei. A sensação que já então tinha era que, ali, os verdadeiros prisioneiros eram os meus carrascos e que homens livres éramos eu e as centenas de outros companheiros que eles prepotentemente retinham atrás das grades.
18. Foram muitas as cartas que não passaram na censura?
R. Não foram muitas. Mas tive várias cartas que não chegaram nunca aos destinatários. E que não me foram devolvidas. Tenho uma explicação para este facto: as cartas que eu escrevia eram cartas com muita reflexão teológica e análise pastoral. O censor deveria ter dificuldade em entender esses conteúdos e não tinha outro remédio senão deixar passar. Deveria pensar lá para ele que a reflexão teológica nunca seria subversão nem estaria na origem de qualquer revolução. E nisso se enganou. Porque a teologia que eu já então reflectia era a teologia da libertação. E não há nada politicamente mais subversivo e revolucionário do que essa teologia!
19. As suas ideias eram consideradas subversivas pelo poder político e por muitos elementos da Igreja católica, como por exemplo Amadeu C. Vasconcelos. Concorda?
R. É verdade. E havia algum mal nisso? A subversão não é o pão que alimenta a vida dos povos? Pode haver saúde social sem subversão? O Evangelho de Jesus e a Palavra de Deus em geral não são fecunda subversão? O poder político então vigente não gostava? Era um problema dele. Eu é que, como padre/presbítero da Igreja católica, não podia nem posso deixar de anunciar o Evangelho de Jesus. E o Evangelho será sempre subversivo. Aliás, foi o que eu disse ao meu comandante de Batalhão, antes de ter sido expulso de capelão militar, em Mansoa: Se o Evangelho da Paz que eu aqui anuncio vai contra a letra da Constituição Portuguesa, mudem a Constituição, que eu não posso mudar o Evangelho! E a verdade é que, poucos anos depois, mudaram a Constituição! Muitos elementos da Igreja católica da altura também consideravam subversivas as minhas ideias? E admiram-se com isso? Então não sabemos que muitos dos nossos católicos, das nossas católicas são-no apenas por herança, por terem nascido num país de tradição católica? Ou porque os pais e as mães também o foram? Quantas, quantos é que o são, por lhes ter sido anunciado Jesus, o Cristo, e elas, eles lhe terem dado a sua adesão pessoal? E não é também verdade que há muitas católicas, muitos católicos que não chegam nunca a ser cristãs, cristãos como Jesus de Nazaré o foi? Então por que havemos de achar estranho que haja comportamentos e reacções como os que se referem na pergunta, mesmo por parte de “muitos católicos”? Ou será crime na Igreja sermos cristãos ao jeito de Jesus de Nazaré?
É claro que aquilo que a pergunta refere como “as minhas ideias” era muito mais que isso: era, é, o meu jeito de ser cristão, de ser padre/presbítero da Igreja católica, em coerência com o Evangelho de Jesus. Felizmente, já então eu procurava ser discípulo de Jesus, o Cristo, e não do senhor Amadeu C. de Vasconcelos, que ia propositadamente do Porto a Macieira da Lixa espiar a minha liberdade de filho de Deus (nunca teve coragem de se encontrar comigo cara a cara!), para depois escrever cobras e lagartos contra mim num semanário católico que lhe dava guarida e não sei se também lhe pagava para isso.
20. Que comentário faz quando Vasconcelos diz que as suas pregações são “doutrina de autodestruição”?
R. O essencial do que então preguei está publicado em vários livros, nomeadamente, “Evangelizar os pobres”, “Chicote no Templo”, “Encontro”, “Maria de Nazaré”. Ainda hoje, o conteúdo dessas pregações pode ser analisado por teólogos e outros peritos. Aliás, o livro “Maria de Nazaré” foi violentamente acusado pelo senhor Amadeu C. de Vasconcelos e seus companheiros católicos tradicionalistas como um livro cheio de heresias, contra o qual pediram a condenação formal do Bispo D. António. A pressão foi tanta e tão violenta, que o Bispo D. António houve por bem nomear uma comissão de peritos em várias áreas, com o encargo de analisarem o referido livro e emitirem o seu parecer oficial. Assim se fez. E, no final, a comissão de peritos não só não encontrou nenhuma heresia no livro, como até realçou que encontrou nele conteúdos teológicos inovadores e apresentados numa linguagem também ela inovadora. Mesmo assim, pensam que o senhor Amadeu C. de Vasconcelos e o seu grupo deram a mão à palmatória e passaram a ter respeito por mim? Ficaram ainda mais assanhados! Com irmãos na fé deste jaez, que se pode fazer, para lá de sofrermos com paciência e com tolerância os seus ataques e perdoarmos-lhes incondicionalmente, apesar de termos a certeza que eles sabem bem o que fazem e dizem?
21. Acusam-no de utilizar “uma táctica de sabor marxista”, de “pregar um amor e despertar o ódio, uma fraternidade que é divisão, uma paz que é indisciplina e revolta”.Comente estas acusações.
R. Não estranho. Ao tempo do anterior Regime, todas as vozes que não dissessem “ámen” com ele, só podiam ser comunistas! Até o Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes foi acusado de “Bispo vermelho”! E o que não disseram/escreveram contra o Papa Paulo VI, por ele ter recebido os três líderes dos Movimentos de Guerrilha que lutavam pela autonomia e independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau? E o Bispo D. Manuel Martins, mesmo depois do 25 de Abril 74, não foi sucessivamente acusado de ser também “Bispo vermelho”? O mesmo sucedeu com o Bispo de Olinda e Recife, no Brasil, D. Hélder Câmara que chegou a defender-se assim das graves acusações que lhe faziam: “Se eu der muitas esmolas aos pobres, dizem que eu sou um santo; mas se eu perguntar por que há pobres, chamam-me comunista”. Portanto, se também a mim me acusam de coisas idênticas, então só posso concluir que sempre tenho andado em boas companhias!
20. Que comentário faz quando Vasconcelos diz que as suas pregações são “doutrina de autodestruição”?
R. O essencial do que então preguei está publicado em vários livros, nomeadamente, “Evangelizar os pobres”, “Chicote no Templo”, “Encontro”, “Maria de Nazaré”. Ainda hoje, o conteúdo dessas pregações pode ser analisado por teólogos e outros peritos. Aliás, o livro “Maria de Nazaré” foi violentamente acusado pelo senhor Amadeu C. de Vasconcelos e seus companheiros católicos tradicionalistas como um livro cheio de heresias, contra o qual pediram a condenação formal do Bispo D. António. A pressão foi tanta e tão violenta, que o Bispo D. António houve por bem nomear uma comissão de peritos em várias áreas, com o encargo de analisarem o referido livro e emitirem o seu parecer oficial. Assim se fez. E, no final, a comissão de peritos não só não encontrou nenhuma heresia no livro, como até realçou que encontrou nele conteúdos teológicos inovadores e apresentados numa linguagem também ela inovadora. Mesmo assim, pensam que o senhor Amadeu C. de Vasconcelos e o seu grupo deram a mão à palmatória e passaram a ter respeito por mim? Ficaram ainda mais assanhados! Com irmãos na fé deste jaez, que se pode fazer, para lá de sofrermos com paciência e com tolerância os seus ataques e perdoarmos-lhes incondicionalmente, apesar de termos a certeza que eles sabem bem o que fazem e dizem?
21. Acusam-no de utilizar “uma táctica de sabor marxista”, de “pregar um amor e despertar o ódio, uma fraternidade que é divisão, uma paz que é indisciplina e revolta”.Comente estas acusações.
R. Não estranho. Ao tempo do anterior Regime, todas as vozes que não dissessem “ámen” com ele, só podiam ser comunistas! Até o Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes foi acusado de “Bispo vermelho”! E o que não disseram/escreveram contra o Papa Paulo VI, por ele ter recebido os três líderes dos Movimentos de Guerrilha que lutavam pela autonomia e independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau? E o Bispo D. Manuel Martins, mesmo depois do 25 de Abril 74, não foi sucessivamente acusado de ser também “Bispo vermelho”? O mesmo sucedeu com o Bispo de Olinda e Recife, no Brasil, D. Hélder Câmara que chegou a defender-se assim das graves acusações que lhe faziam: “Se eu der muitas esmolas aos pobres, dizem que eu sou um santo; mas se eu perguntar por que há pobres, chamam-me comunista”. Portanto, se também a mim me acusam de coisas idênticas, então só posso concluir que sempre tenho andado em boas companhias!
Mas, a este propósito, faço aqui uma revelação pessoal: Até ter sido preso pela primeira vez pela PIDE em finais de Julho de 1970, nunca tinha lido uma única obra de Karl Marx, nem de Lenine! Conhecia algumas frases de um e de outro, mas por as ter lido em livros de Teologia da Libertação. E, mesmo estes, só comecei a estudá-los verdadeiramente, depois de ter sido preso na Cadeia política de Caxias. Por mais estranho que pareça, os livros de teólogos da libertação entraram em Caxias, sem nenhum obstáculo dos censores da PIDE. Eles eram tão analfabetos em teologia, que não se aperceberam do que estavam a deixar passar para mim. Faço ainda uma outra revelação: Durante as prisões, os primeiros a surpreenderem-se comigo e com as minhas ideias foram os outros presos políticos, todos marxistas assumidos, com quem tive o privilégio e a graça de partilhar as mesmas celas. Surpreendiam-se por eu nunca ter lido nenhuma obra de Marx, nem de Lenine e, no entanto, participar em pé de igualdade com eles nos acalorados debates políticos que promovíamos com muita frequência no interior das respectivas celas. Como é que isso era possível? Respondo como lhes respondi a eles: A minha formação não era, nem é marxista, mas bíblica, com destaque para os livros dos grandes profetas bíblicos, dos Salmos, do Êxodo e dos Evangelhos, precisamente, onde Karl Marx, judeu e profundo conhecedor da Bíblia, também tinha ido beber a sua inspiração. A dialéctica e a luta pela justiça; a luta contra a exploração e o amor libertador aos pobres estão presentes praticamente em cada versículo destes livros da Bíblia que eu nunca deixei de ler/estudar/escutar/meditar. Infelizmente, os nossos católicos tradicionalistas, entre os quais se incluem esses que me acusaram e acusam de “marxista”/”comunista”, podem perceber muito de devoções a santas e a santos, a senhoras de Fátima e quejandas, mas percebem muito pouco ou nada de Bíblia e de Teologia da Libertação. São também capazes de estar sempre com o nome de Deus na boca, mas nunca aceitaram fazer-se discípulos de Jesus crucificado/ressuscitado. Só isso explica este tipo de calúnias que me levantam e que difundem contra mim.
22. Quando o padre Mário, no 3.º Encontro que organizou em Macieira da Lixa, disse “… quem se deixar ficar parado sem reagir contra esta situação degradante é como um capacho em que os ricos limpam os pés.”, não achava que estas palavras podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta?
R. Não sei onde foram buscar essa citação que aqui me atribuem. Se foi a alguma crónica de Amadeu C. de Vasconcelos, ou a alguma acusação que a PIDE me fez, é preciso desconfiar do seu teor, porque pode ter sido distorcida, com o objectivo de, já naquela altura, colocarem as pessoas contra mim. Com esta ressalva inicial, respondo então à pergunta, e faço-o com os mesmos termos com que sempre respondi a perguntas quase iguais (mas que triste coincidência!) que a PIDE me fez, durante os sucessivos interrogatórios a que me sujeitou, quer antes de me prender pela primeira vez (ao todo, cinco interrogatórios!), quer já depois de me ter à sua inteira disposição na Cadeia, durante o período que precedia a entrega do processo ao Tribunal para o respectivo despacho de pronúncia. Eis o que respondo: Estas palavras que me atribuem, se tiverem sido ditas tal e qual por mim – o que sinceramente duvido – de modo algum “podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta”, porque ódio é um sentimento que eu nunca cultivei, não cultivo, nem jamais cultivarei, e que desconheço por completo na minha prática de vida. Já então era notório que eu amava todas as pessoas, inclusive aquelas que faziam gala de se perfilarem como meus inimigos e que, sem quaisquer escrúpulos, me caluniavam e perseguiam. Ora, estas e quaisquer outras palavras que eu, enquanto pároco, tenha dito, sempre teriam que ser confrontadas – e eram – com a minha prática individual e pastoral. Então, como se pode pensar em ódio, ao ler estas palavras, quando toda a minha prática, como pároco, era de manifesto amor fraternal universal e de solidariedade incondicional com todas as pessoas? Tais palavras e outras semelhantes só podiam despertar no povo em geral e em cada pessoa concreta, em especial, que as escutassem, o sentimento de dignidade humana, de modo a abandonarmos a tradicional postura de resignação e de conformismo que o Regime e os seus mentores promoviam por todos os meios – até por meio de certas catequeses eclesiásticas – a fim de passarmos corajosamente a assumir posturas humanas de dignidade, bem mais conformes à nossa condição de filhas, filhos de Deus.
Aliás, se há alguém que, em qualquer tempo e lugar, pode fomentar o ódio e incitar o povo à revolta é precisamente quem, na sua crueldade e inumanidade, é capaz de explorar sem dó nem piedade indivíduos e povos, e reduzi-los à condição de capacho. Infelizmente, assim tem acontecido ao longo da História. Mas, por favor, respeitem muito as vítimas de todos os fascismos, de todas as ditaduras, de todas as tiranias, de todos os impérios. E não queiram nunca cometer a injustiça de acusar os que trabalham pela sua libertação e dignificação, de serem fomentadores de ódio e de incitadores à revolta. Seria o crime dos crimes, a mentira das mentiras. Algo que o Evangelho de Jesus classifica como pecado sem perdão, ou “pecado contra o Espírito Santo”!
23. Tinha consciência de que essas palavras poderiam ser consideradas propaganda subversiva e que poderia ser preso?
R. Tinha consciência de que todas as palavras vigorosas e lúcidas que então proferi, sempre em contextos de celebração litúrgica ou paralitúrgica, embora fossem uma oportuna actualização, para as circunstâncias que eram então as nossas no país e no mundo, das vigorosas e lúcidas palavras genuinamente evangélicas – até o Tribunal Plenário deu isto como provado e elogiou o meu trabalho! – poderiam, mesmo assim, ser mal interpretadas, mas apenas por parte de quem, já então, estivesse mal intencionado, ao ouvi-las. Como veio a suceder, de forma notoriamente escandalosa, por exemplo, com o Prof. Torquato de Sousa Soares, de Vila Meã, que, no último domingo antes de eu ter sido preso pela segunda vez, veio propositadamente à Missa a Macieira da Lixa, com a expressa missão de ouvir a homilia desse domingo, e depois escrever uma carta pessoal à PIDE, com cópia para o então Presidente do Conselho, Prof. Marcelo Caetano, a atribuir-me afirmações politicamente subversivas que eu não proferi e intenções criminosamente políticas que eu de modo algum tinha. Infelizmente, tudo veio a acontecer como o previsto, conforme vim depois a ser sabedor, quando, mais tarde, o meu advogado teve acesso ao processo e aquele mesmo Professor amarantino da Universidade de Coimbra, já jubilado, veio também a confirmar perante o Tribunal Plenário do Porto, aonde foi chamado a depor pelo meu advogado, Dr. José da Silva.
23. Tinha consciência de que essas palavras poderiam ser consideradas propaganda subversiva e que poderia ser preso?
R. Tinha consciência de que todas as palavras vigorosas e lúcidas que então proferi, sempre em contextos de celebração litúrgica ou paralitúrgica, embora fossem uma oportuna actualização, para as circunstâncias que eram então as nossas no país e no mundo, das vigorosas e lúcidas palavras genuinamente evangélicas – até o Tribunal Plenário deu isto como provado e elogiou o meu trabalho! – poderiam, mesmo assim, ser mal interpretadas, mas apenas por parte de quem, já então, estivesse mal intencionado, ao ouvi-las. Como veio a suceder, de forma notoriamente escandalosa, por exemplo, com o Prof. Torquato de Sousa Soares, de Vila Meã, que, no último domingo antes de eu ter sido preso pela segunda vez, veio propositadamente à Missa a Macieira da Lixa, com a expressa missão de ouvir a homilia desse domingo, e depois escrever uma carta pessoal à PIDE, com cópia para o então Presidente do Conselho, Prof. Marcelo Caetano, a atribuir-me afirmações politicamente subversivas que eu não proferi e intenções criminosamente políticas que eu de modo algum tinha. Infelizmente, tudo veio a acontecer como o previsto, conforme vim depois a ser sabedor, quando, mais tarde, o meu advogado teve acesso ao processo e aquele mesmo Professor amarantino da Universidade de Coimbra, já jubilado, veio também a confirmar perante o Tribunal Plenário do Porto, aonde foi chamado a depor pelo meu advogado, Dr. José da Silva.
O pior é que, nessa mesma semana e em relação directa com essa caluniosa denúncia, lá voltei a ser preso pela PIDE e levado de imediato para Caxias, onde permaneci longos onze meses, sem qualquer caução, até que o Tribunal Plenário do Porto, no termo do julgamento, me restituiu à liberdade, em Fevereiro de 1974. E hoje – ironia das ironias! – todos estes anos depois, ainda tenho que estar aqui a responder a perguntas deste teor, por parte de quem – desculpem que o diga – parece interessado em branquear o Regime fascista de Salazar-Caetano, nem que para isso tenha que incriminar as suas vítimas. Haja modos e dignidade, senhoras, senhores!
24. Que comentário faz a esta afirmação? “O que se passa em Portugal é uma imitação de conhecidos agitadores de desmandos no estrangeiro a que se acrescentam outros problemas nacionais muito sérios”.
R. Mas que hei-de comentar? A afirmação não é minha. Tão pouco sei de quem é. Acho que não tem nada a ver com o que pessoalmente vivi nesse período tão densamente evangélico que tive a graça de protagonizar em Macieira da Lixa, na minha condição de pároco da Igreja católica que está no Porto. A única coisa que posso acrescentar é que é uma afirmação que fica com quem a proferiu. No que a mim diz respeito e ao meu ministério pastoral, é uma afirmação completamente despropositada!
25. Actualmente não considera que as acusações que fez ao poder político e religioso foram muito fortes?
R. Não fiz acusações ao poder político. Fiz denúncias proféticas objectivas, oportunas, verdadeiras, num estilo por vezes contundente, como é próprio do estilo profético (se dúvidas houver, basta confrontar com o estilo utilizado pelos grandes profetas da Bíblia e actualizar para o Aqui e Agora da década de setenta em Portugal). O mais curioso é que o próprio Tribunal Plenário que poderia ter-me condenado, foi o primeiro a reconhecer, nos dois julgamentos a que fui sujeito, que todas essas afirmações se enquadravam no âmbito da minha missão eclesial de pároco de Macieira da Lixa. Foram fortes? Direi que foram fecundamente apropriadas à situação de sofrimento e de opressão generalizada que as populações do nosso país então padeciam. E essa situação era, humana e evangelicamente, intolerável. Não a denunciar com vigor e lucidez, teria sido traição ao meu ministério presbiteral e perfaria uma cumplicidade, de que hoje só teria de me envergonhar!
26. E no que diz respeito ao povo não receava, dado a maioria da população ser analfabeta ou ter uma baixa escolaridade, ser mal interpretado e ferir susceptibilidades?
R. De modo algum. Eu, como pároco, não vivia numa redoma, longe do povo. Pelo contrário, vivia fraternalmente com o povo. Era seu companheiro de todas as horas. O povo podia ser analfabeto – contra o seu analfabetismo escolar, eu próprio ministrei na casa paroquial sessões regulares de alfabetização, segundo a metodologia de Paulo Freire – mas não era inculto! Sabia muito bem distinguir o que era opressão e o que era liberdade. E depressa começou a perceber que o Evangelho de Jesus que eu lhe anunciava é sempre para a liberdade que nos liberta! (cf. Carta aos Gálatas 5, 1). Houve alturas em que o povo se escandalizou, mas não comigo nem com as minhas pregações. Escandalizou-se com alguns párocos das redondezas, meus irmãos na Fé e no presbiterado, que chegaram a orquestrar campanhas de difamação contra mim junto dele e junto do Bispo da Diocese. Escandalizou-se com a PIDE e com os seus comportamentos de espionagem. Escandalizou-se com uma manifestação pró-nacionalista e pró-Guerra Colonial que um grupo de católicos fundamentalistas do Porto veio organizar, sem qualquer aviso prévio e sem qualquer licença da paróquia, num domingo, no final da Missa das 11 horas, em pleno adro da igreja paroquial. Com as minhas palavras, com as minhas homilias, não se escandalizou. Ainda hoje – estou de novo a morar com ele como um deles, por isso sem qualquer poder sobre ele – oiço muitos sobreviventes de então a testemunhar com alegria: Tudo quanto então nos anunciou veio depois a acontecer! E, se alguma coisa lamentam é não terem aproveitado mais aquele kairós ou Momento de Graça que foi a minha Passagem como pároco no meio deles.
27. Numa missa de domingo, 31 de Maio de 1970, disse que não tínhamos o direito de dominar Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, devendo ser entregues aos seus donos e, diz ainda, que o povo é que deveria mandar no Governo e exigir que a guerra acabasse. O padre Mário ao tocar num assunto tão melindroso como era o das colónias, para o Estado Novo, tinha consciência de que isso poderia desencadear uma acção repressiva contra si?
R. Já respondi a uma pergunta semelhante a esta. Pelo teor da pergunta, até parece que se pretende justificar o injustificável que era a manutenção da Guerra Colonial em três frentes de África! A Guerra Colonial foi um crime, um hediondo crime, senhoras, senhores! Ou não sabem disso? Portanto, o que está mal é a sua manutenção. Não é a denúncia que eu fiz dela, não de forma obcecada, mas sempre que as leituras bíblicas da Eucaristia dominical mo exigiam, a menos que fizesse orelhas moucas ao Espírito Santo que nos fala e interpela a partir dos sinais dos tempos. E que maior sinal dos tempos, então, no nosso país, que a Guerra Colonial? É claro que eu intuía que se o Regime então vigente fosse contumaz no seu ódio à liberdade e à independência dos povos africanos, não me perdoaria por eu trabalhar evangelicamente a favor duma e doutra. Mas isso era um problema dele. Não era um problema meu. A mim, só pertencia continuar a ser, lúcida e corajosamente, fiel ao anúncio do Evangelho, sem qualquer espécie de medo do Regime. E foi o que procurei fazer. Será que, todos estes anos depois, me querem agora convencer que procedi mal e que o Regime que me prendeu e julgou por duas vezes é que fez bem?
28. No seu julgamento a acusação disse que o padre Mário “exaltava o espírito da Guerra Civil” através das suas palavras. Era essa a sua pretensão?
R. A pergunta diz muito bem: “A acusação disse que o padre Mário «exaltava o espírito da Guerra Civil» através das suas palavras”. Não fui quem disse. Foi a Acusação, isto, é o representante do Regime deposto no 25 de Abril 74. Entretanto, o próprio Tribunal Plenário, que foi criado pelo Regime para julgar os seus opositores políticos, reais ou supostos, considerou improcedente essa acusação. O que pretendem ao voltar aqui à carga com este assunto? Será que continuam insatisfeitos com a minha não-condenação por parte dos Juízes do Tribunal Plenário do Porto e querem julgar-me e condenar-me, todos estes anos depois? Vamos a isso. Formulem a acusação, constituam um tribunal e eu cá estou para voltar a fazer a minha defesa e a defesa do Evangelho de Jesus.
29. As suas pregações reflectiam alguma tendência política?
R. Não. As minhas pregações reflectiam o Evangelho de Jesus, aplicado às circunstâncias concretas que eram então as nossas em Portugal e no mundo. Apenas.
30. O ritual da missa rege-se por um conjunto de normas estabelecidas pela Igreja. Transgrediu essas normas?
R. Como diz Jesus no Evangelho, até a norma mais sagrada de todas, como era então o mandamento do descanso em dia de sábado, é para o ser humano, não o ser humano para a norma, ou mandamento. Foi e é dentro desta liberdade de filhas, filhos de Deus, que sempre me orientei e oriento. Não somos escravos das normas, muito menos, das normas litúrgicas. O culto da norma é idolatria. E um pecado contra o Espírito Santo. Tenham paciência, mas aqui sou como S. Paulo, não cedo nem um milímetro. Por amor ao Evangelho de Jesus. Nunca transgredi, nem transgrido normas estabelecidas pela Igreja. Mas também nunca fui nem sou escravo delas. Sempre agi e ajo responsavelmente. Desde que me tornei cristão adulto e Igreja viva no estado de maioridade individual, percebi, para sempre, o que S. Paulo também percebeu no seu tempo: a letra (da norma) mata e o espírito é que dá vida. Não há melhor maneira de respeitar as normas da Igreja do que mantermo-nos fiéis ao espírito que as informa. E isso sempre fiz quando fui pároco de Macieira da Lixa. E é o que continuo a fazer hoje. E farei amanhã. E não admito que novos “fariseus” venham tentar pôr em risco esta liberdade para a qual Jesus, o Cristo, nos libertou!
31. Debatiam-se livremente dentro da igreja e durante o período de missa, assuntos relacionados com a vida política portuguesa e respectivas consequências sociais?
R. Apenas nas últimas semanas em que fui pároco de Macieira da Lixa, foi possível ensaiar homilias em forma de diálogo na assembleia. A experiência estava ainda a dar os primeiros passos, quando a PIDE me levou de novo preso. E nunca mais regressei a Macieira da Lixa como pároco. Mas mesmo nesse curto período de tempo, o diálogo quando aconteceu na assembleia litúrgica era sempre em redor da Palavra de Deus acabada de ser proclamada. A vida social, familiar, política das pessoas e do país estava sempre presente, evidentemente, porque a Palavra de Deus é mesmo assim. Mas não havia debate. Apenas contribuições daqui e dali. Normalmente, as minhas homilias continham muitas perguntas que remetiam cada pessoa participante para a sua própria consciência. Todas, todos éramos estimulados à reflexão interior. Aliás, eu próprio, era o primeiro ouvinte da Palavra, aquele que mais era directamente interpelado por ela. Começava a ser ouvinte, cerca duma semana antes, quando iniciava a preparação da homilia do domingo seguinte. E nunca avançava para a celebração, sem antes escrever a homilia que havia de proferir. Nem que para tanto tivesse que me fechar, de véspera, durante horas, na igreja paroquial, sem ninguém saber onde eu estava. E, quando nem assim conseguia escutar a palavra que havia de anunciar às pessoas – havia semanas em que a aridez espiritual era muita – tinha que me levantar na madrugada de domingo, horas antes da 1.ª Missa, para me sentar no cartório paroquial à escuta. Ninguém imagina o gozo espiritual que eu sentia, à medida que escutava o que o Espírito Santo queria que eu disse à Igreja que se reunia em Macieira da Lixa. E ainda hoje continuo a proceder assim. Sempre fui muito sério com o Espírito Santo. Talvez por isso é que a minha alegria é enorme. E as incompreensões, mesmo por parte de quem detém o poder na Igreja, também acabem por ser mais que muitas.
32. Fumava-se dentro da sua igreja?
R. Não! Jamais. Essa foi outra calúnia do senhor Amadeu C. de Vasconcelos, em mais uma das suas crónicas envenenadas contra mim, publicadas no semanário católico A ORDEM, que se editava no Porto e que então veiculava os pontos de vista dos nossos irmãos católicos mais tradicionalistas. Não suportavam a liberdade que eu tinha em Jesus, o Cristo. Como tão pouco suportavam que tivesse acontecido na Igreja católica o Concílio Vaticano II. São assim as coisas…
24. Que comentário faz a esta afirmação? “O que se passa em Portugal é uma imitação de conhecidos agitadores de desmandos no estrangeiro a que se acrescentam outros problemas nacionais muito sérios”.
R. Mas que hei-de comentar? A afirmação não é minha. Tão pouco sei de quem é. Acho que não tem nada a ver com o que pessoalmente vivi nesse período tão densamente evangélico que tive a graça de protagonizar em Macieira da Lixa, na minha condição de pároco da Igreja católica que está no Porto. A única coisa que posso acrescentar é que é uma afirmação que fica com quem a proferiu. No que a mim diz respeito e ao meu ministério pastoral, é uma afirmação completamente despropositada!
25. Actualmente não considera que as acusações que fez ao poder político e religioso foram muito fortes?
R. Não fiz acusações ao poder político. Fiz denúncias proféticas objectivas, oportunas, verdadeiras, num estilo por vezes contundente, como é próprio do estilo profético (se dúvidas houver, basta confrontar com o estilo utilizado pelos grandes profetas da Bíblia e actualizar para o Aqui e Agora da década de setenta em Portugal). O mais curioso é que o próprio Tribunal Plenário que poderia ter-me condenado, foi o primeiro a reconhecer, nos dois julgamentos a que fui sujeito, que todas essas afirmações se enquadravam no âmbito da minha missão eclesial de pároco de Macieira da Lixa. Foram fortes? Direi que foram fecundamente apropriadas à situação de sofrimento e de opressão generalizada que as populações do nosso país então padeciam. E essa situação era, humana e evangelicamente, intolerável. Não a denunciar com vigor e lucidez, teria sido traição ao meu ministério presbiteral e perfaria uma cumplicidade, de que hoje só teria de me envergonhar!
26. E no que diz respeito ao povo não receava, dado a maioria da população ser analfabeta ou ter uma baixa escolaridade, ser mal interpretado e ferir susceptibilidades?
R. De modo algum. Eu, como pároco, não vivia numa redoma, longe do povo. Pelo contrário, vivia fraternalmente com o povo. Era seu companheiro de todas as horas. O povo podia ser analfabeto – contra o seu analfabetismo escolar, eu próprio ministrei na casa paroquial sessões regulares de alfabetização, segundo a metodologia de Paulo Freire – mas não era inculto! Sabia muito bem distinguir o que era opressão e o que era liberdade. E depressa começou a perceber que o Evangelho de Jesus que eu lhe anunciava é sempre para a liberdade que nos liberta! (cf. Carta aos Gálatas 5, 1). Houve alturas em que o povo se escandalizou, mas não comigo nem com as minhas pregações. Escandalizou-se com alguns párocos das redondezas, meus irmãos na Fé e no presbiterado, que chegaram a orquestrar campanhas de difamação contra mim junto dele e junto do Bispo da Diocese. Escandalizou-se com a PIDE e com os seus comportamentos de espionagem. Escandalizou-se com uma manifestação pró-nacionalista e pró-Guerra Colonial que um grupo de católicos fundamentalistas do Porto veio organizar, sem qualquer aviso prévio e sem qualquer licença da paróquia, num domingo, no final da Missa das 11 horas, em pleno adro da igreja paroquial. Com as minhas palavras, com as minhas homilias, não se escandalizou. Ainda hoje – estou de novo a morar com ele como um deles, por isso sem qualquer poder sobre ele – oiço muitos sobreviventes de então a testemunhar com alegria: Tudo quanto então nos anunciou veio depois a acontecer! E, se alguma coisa lamentam é não terem aproveitado mais aquele kairós ou Momento de Graça que foi a minha Passagem como pároco no meio deles.
27. Numa missa de domingo, 31 de Maio de 1970, disse que não tínhamos o direito de dominar Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, devendo ser entregues aos seus donos e, diz ainda, que o povo é que deveria mandar no Governo e exigir que a guerra acabasse. O padre Mário ao tocar num assunto tão melindroso como era o das colónias, para o Estado Novo, tinha consciência de que isso poderia desencadear uma acção repressiva contra si?
R. Já respondi a uma pergunta semelhante a esta. Pelo teor da pergunta, até parece que se pretende justificar o injustificável que era a manutenção da Guerra Colonial em três frentes de África! A Guerra Colonial foi um crime, um hediondo crime, senhoras, senhores! Ou não sabem disso? Portanto, o que está mal é a sua manutenção. Não é a denúncia que eu fiz dela, não de forma obcecada, mas sempre que as leituras bíblicas da Eucaristia dominical mo exigiam, a menos que fizesse orelhas moucas ao Espírito Santo que nos fala e interpela a partir dos sinais dos tempos. E que maior sinal dos tempos, então, no nosso país, que a Guerra Colonial? É claro que eu intuía que se o Regime então vigente fosse contumaz no seu ódio à liberdade e à independência dos povos africanos, não me perdoaria por eu trabalhar evangelicamente a favor duma e doutra. Mas isso era um problema dele. Não era um problema meu. A mim, só pertencia continuar a ser, lúcida e corajosamente, fiel ao anúncio do Evangelho, sem qualquer espécie de medo do Regime. E foi o que procurei fazer. Será que, todos estes anos depois, me querem agora convencer que procedi mal e que o Regime que me prendeu e julgou por duas vezes é que fez bem?
28. No seu julgamento a acusação disse que o padre Mário “exaltava o espírito da Guerra Civil” através das suas palavras. Era essa a sua pretensão?
R. A pergunta diz muito bem: “A acusação disse que o padre Mário «exaltava o espírito da Guerra Civil» através das suas palavras”. Não fui quem disse. Foi a Acusação, isto, é o representante do Regime deposto no 25 de Abril 74. Entretanto, o próprio Tribunal Plenário, que foi criado pelo Regime para julgar os seus opositores políticos, reais ou supostos, considerou improcedente essa acusação. O que pretendem ao voltar aqui à carga com este assunto? Será que continuam insatisfeitos com a minha não-condenação por parte dos Juízes do Tribunal Plenário do Porto e querem julgar-me e condenar-me, todos estes anos depois? Vamos a isso. Formulem a acusação, constituam um tribunal e eu cá estou para voltar a fazer a minha defesa e a defesa do Evangelho de Jesus.
29. As suas pregações reflectiam alguma tendência política?
R. Não. As minhas pregações reflectiam o Evangelho de Jesus, aplicado às circunstâncias concretas que eram então as nossas em Portugal e no mundo. Apenas.
30. O ritual da missa rege-se por um conjunto de normas estabelecidas pela Igreja. Transgrediu essas normas?
R. Como diz Jesus no Evangelho, até a norma mais sagrada de todas, como era então o mandamento do descanso em dia de sábado, é para o ser humano, não o ser humano para a norma, ou mandamento. Foi e é dentro desta liberdade de filhas, filhos de Deus, que sempre me orientei e oriento. Não somos escravos das normas, muito menos, das normas litúrgicas. O culto da norma é idolatria. E um pecado contra o Espírito Santo. Tenham paciência, mas aqui sou como S. Paulo, não cedo nem um milímetro. Por amor ao Evangelho de Jesus. Nunca transgredi, nem transgrido normas estabelecidas pela Igreja. Mas também nunca fui nem sou escravo delas. Sempre agi e ajo responsavelmente. Desde que me tornei cristão adulto e Igreja viva no estado de maioridade individual, percebi, para sempre, o que S. Paulo também percebeu no seu tempo: a letra (da norma) mata e o espírito é que dá vida. Não há melhor maneira de respeitar as normas da Igreja do que mantermo-nos fiéis ao espírito que as informa. E isso sempre fiz quando fui pároco de Macieira da Lixa. E é o que continuo a fazer hoje. E farei amanhã. E não admito que novos “fariseus” venham tentar pôr em risco esta liberdade para a qual Jesus, o Cristo, nos libertou!
31. Debatiam-se livremente dentro da igreja e durante o período de missa, assuntos relacionados com a vida política portuguesa e respectivas consequências sociais?
R. Apenas nas últimas semanas em que fui pároco de Macieira da Lixa, foi possível ensaiar homilias em forma de diálogo na assembleia. A experiência estava ainda a dar os primeiros passos, quando a PIDE me levou de novo preso. E nunca mais regressei a Macieira da Lixa como pároco. Mas mesmo nesse curto período de tempo, o diálogo quando aconteceu na assembleia litúrgica era sempre em redor da Palavra de Deus acabada de ser proclamada. A vida social, familiar, política das pessoas e do país estava sempre presente, evidentemente, porque a Palavra de Deus é mesmo assim. Mas não havia debate. Apenas contribuições daqui e dali. Normalmente, as minhas homilias continham muitas perguntas que remetiam cada pessoa participante para a sua própria consciência. Todas, todos éramos estimulados à reflexão interior. Aliás, eu próprio, era o primeiro ouvinte da Palavra, aquele que mais era directamente interpelado por ela. Começava a ser ouvinte, cerca duma semana antes, quando iniciava a preparação da homilia do domingo seguinte. E nunca avançava para a celebração, sem antes escrever a homilia que havia de proferir. Nem que para tanto tivesse que me fechar, de véspera, durante horas, na igreja paroquial, sem ninguém saber onde eu estava. E, quando nem assim conseguia escutar a palavra que havia de anunciar às pessoas – havia semanas em que a aridez espiritual era muita – tinha que me levantar na madrugada de domingo, horas antes da 1.ª Missa, para me sentar no cartório paroquial à escuta. Ninguém imagina o gozo espiritual que eu sentia, à medida que escutava o que o Espírito Santo queria que eu disse à Igreja que se reunia em Macieira da Lixa. E ainda hoje continuo a proceder assim. Sempre fui muito sério com o Espírito Santo. Talvez por isso é que a minha alegria é enorme. E as incompreensões, mesmo por parte de quem detém o poder na Igreja, também acabem por ser mais que muitas.
32. Fumava-se dentro da sua igreja?
R. Não! Jamais. Essa foi outra calúnia do senhor Amadeu C. de Vasconcelos, em mais uma das suas crónicas envenenadas contra mim, publicadas no semanário católico A ORDEM, que se editava no Porto e que então veiculava os pontos de vista dos nossos irmãos católicos mais tradicionalistas. Não suportavam a liberdade que eu tinha em Jesus, o Cristo. Como tão pouco suportavam que tivesse acontecido na Igreja católica o Concílio Vaticano II. São assim as coisas…
(Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição deste poste: LG)
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Guiné 63/74 - P84: A igrejinha de Geba (Marques Lopes)
© Marques Lopes (2005)
1. Perguntei à malta da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné se alguém tinha uma foto da igrejinha de Geba. O Reis, há dias, tinha-me mandado uma mas era a de Bambadinca... onde espantosamente nunca cheguei a entrar (hei-de pubicá-la um dia destes). Minto: fui lá uma vez, para participar no velório de um furriel dos comandos africanos, cortado ao meio, ao pisar uma mina antipessoal e ao rebentarem, por simpatia, as granadas ofensivas que levava à cintura...
Confesso que, na época, eu não era crente (nem hoje o sou) mas sentia que as poucas igrejas e capelas espalhadas pelo interior da Guiné serviam de consolo, de refúgio e de esperança para muitos dos nossos camaradas... Num caso ou noutro serviram também para agitar as consciências e até contestar a guerra colonial.
Alguns católicos, alguns padres e até alguns capelães do Exército, como o Padre Mário da Lixa ou o Padre Poím, utilizaram também as igrejas e as capelas para tomar posições públicas contra a guerra colonial. O caso mais conhecido e mediático foi talvez, na Metrópole, o do grupo de católicos que fez uma vigília e greve de fome, de 30 para 31 de Dezembro de 1972, na Capela do Rato, em Lisboa.
Mais difícil era a resistência na frente de combate, como foi o caso do Padre Mário da Lixa. Segundo a resenha biográfica disponível na sua página pessoal, ele esteve na Guiné apenas uns escassos meses, entre Novembro de 1967 e Março de 1968: desembarcou como alferes capelão do Exército português, integrado no Batalhão 1912, na região de Mansoa, para logo a seguir (Abril de 1968) ser "expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência".
Regressado à sua Diocese, no Porto, foi rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável. Foi nessa altura que começou a paroquiar a freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses), por nomeação do Administrador Apostólico da Diocese do Porto, D. Florentino de Andrade e Silva (como se recordam, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, estava ainda no exílio, por ordem de Salazar...).
Em Julho 1970, o Padre Mário (entretanto, colocado em Outubro de 1969, pelo seu bispo, regressado do exílio, na Freguesia de Macieira da Lixa, Felgueiras, como pároco) foi preso pela PIDE/DGS. Em Março de 1971 saiu da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto (Daqui, deste ponto do ciberespaço, envio-lhe um abraço).
Em Bambadinca lembro-me do Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, pertecente ao BART 2917 (1970/72) (vd. respectiva foto com o furriel miliciano Guimarães da CART 2716, na nossa página dedicada ao Xitole).
Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como o Padre Mário da Lixa. Não sei muito bem o resto da história, que me foi (re)contada pelo Guimarães. Confesso que nunca ouvi nenhuma das suas homilias, uma vez que não ía à missa. Mas conheci-o pessoalmente em Bambadinca e lembro-me do seu ar frágil e sofrido.
Vem tudo isto a (des)propósito de igrejas e capelas da Guiné. Sensibilizou-me o episódio evocado pelo Fernando Carvalho que se recolhia à igrejinha de Geba para imaginar que estava na sua terra natal, no seu verde Minho...
2. O meu apelo, entretanto, não caiu em saco roto: o Marques Lopes mandou-nos de imediato duas fotos da igreja de Geba. Com a seguinte nota: "Foi no tempo da CART 1690 que a igreja foi construída. Apesar daquilo tudo [a guerra...], ainda deu para isso... O Fernando Carvalho há-de lembrar-se dela".
Já agradeci ao Marques Lopes: de facto, o baú dele é mesmo um caixinha de surpresas. Mas são estas pequenas peças, fotos, documentos, depoimentos, estórias, etc., que nos ajudam a reconstituir o puzzle (desconjuntado) da nossa memória da Guiné e dos seus lugares...
© Marques Lopes (2005)
1. Perguntei à malta da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné se alguém tinha uma foto da igrejinha de Geba. O Reis, há dias, tinha-me mandado uma mas era a de Bambadinca... onde espantosamente nunca cheguei a entrar (hei-de pubicá-la um dia destes). Minto: fui lá uma vez, para participar no velório de um furriel dos comandos africanos, cortado ao meio, ao pisar uma mina antipessoal e ao rebentarem, por simpatia, as granadas ofensivas que levava à cintura...
Confesso que, na época, eu não era crente (nem hoje o sou) mas sentia que as poucas igrejas e capelas espalhadas pelo interior da Guiné serviam de consolo, de refúgio e de esperança para muitos dos nossos camaradas... Num caso ou noutro serviram também para agitar as consciências e até contestar a guerra colonial.
Alguns católicos, alguns padres e até alguns capelães do Exército, como o Padre Mário da Lixa ou o Padre Poím, utilizaram também as igrejas e as capelas para tomar posições públicas contra a guerra colonial. O caso mais conhecido e mediático foi talvez, na Metrópole, o do grupo de católicos que fez uma vigília e greve de fome, de 30 para 31 de Dezembro de 1972, na Capela do Rato, em Lisboa.
Mais difícil era a resistência na frente de combate, como foi o caso do Padre Mário da Lixa. Segundo a resenha biográfica disponível na sua página pessoal, ele esteve na Guiné apenas uns escassos meses, entre Novembro de 1967 e Março de 1968: desembarcou como alferes capelão do Exército português, integrado no Batalhão 1912, na região de Mansoa, para logo a seguir (Abril de 1968) ser "expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência".
Regressado à sua Diocese, no Porto, foi rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável. Foi nessa altura que começou a paroquiar a freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses), por nomeação do Administrador Apostólico da Diocese do Porto, D. Florentino de Andrade e Silva (como se recordam, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, estava ainda no exílio, por ordem de Salazar...).
Em Julho 1970, o Padre Mário (entretanto, colocado em Outubro de 1969, pelo seu bispo, regressado do exílio, na Freguesia de Macieira da Lixa, Felgueiras, como pároco) foi preso pela PIDE/DGS. Em Março de 1971 saiu da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto (Daqui, deste ponto do ciberespaço, envio-lhe um abraço).
Em Bambadinca lembro-me do Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, pertecente ao BART 2917 (1970/72) (vd. respectiva foto com o furriel miliciano Guimarães da CART 2716, na nossa página dedicada ao Xitole).
Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como o Padre Mário da Lixa. Não sei muito bem o resto da história, que me foi (re)contada pelo Guimarães. Confesso que nunca ouvi nenhuma das suas homilias, uma vez que não ía à missa. Mas conheci-o pessoalmente em Bambadinca e lembro-me do seu ar frágil e sofrido.
Vem tudo isto a (des)propósito de igrejas e capelas da Guiné. Sensibilizou-me o episódio evocado pelo Fernando Carvalho que se recolhia à igrejinha de Geba para imaginar que estava na sua terra natal, no seu verde Minho...
2. O meu apelo, entretanto, não caiu em saco roto: o Marques Lopes mandou-nos de imediato duas fotos da igreja de Geba. Com a seguinte nota: "Foi no tempo da CART 1690 que a igreja foi construída. Apesar daquilo tudo [a guerra...], ainda deu para isso... O Fernando Carvalho há-de lembrar-se dela".
Já agradeci ao Marques Lopes: de facto, o baú dele é mesmo um caixinha de surpresas. Mas são estas pequenas peças, fotos, documentos, depoimentos, estórias, etc., que nos ajudam a reconstituir o puzzle (desconjuntado) da nossa memória da Guiné e dos seus lugares...
© Marques Lopes (2005)
Guiné 63/74 - P83: (Tabanca Grande): Terras que também calquei (Fernando Gomes de Carvalho, um ex-combatente da CCAÇ 2401, 1968/70)
1. Vou apresentar-me, mas não receber ordens. (Em 1968 apresentava-me e recebia ordens). Sou o ex-Furriel Miliciano Carvalho da CCAÇ 2401, 1º pelotão.
Ao recordar terras que pisei na minha juventude, através da Net, vim encontrar aqueles, como eu, que por lá passaram.
Norte e Leste da Guiné tocaram-me nos bons e maus momentos dos anos de 1968 a 1970. Não tive sítio certo desde Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego (Gabu), Pirada, Geba e seus destacamentos (Sarabanda, Cantacunda e Banjara), Piche, Buruntuma, etc.
Quantas vezes recordo a igreja de Geba, junto ao Rio Geba! Ali podia esquecer África e, por alguns momentos, pensar que estava na Metrópole, passando os olhos sob a torre e o telhado da igreja e fixando, ao fundo, o horizonte. Era o meu cantinho no Minho!
Ver as vossas fotos fez-me recordar vivamente os momentos duros que todos nós, ex- combatentes da Guiné, passámos na juventude... Essas batatas fritas com bife e cerveja preta em Bafatá? Mas era só quando havia!...
Dou os parabéns a todos vós por esta página na Net, só assim podemos transmitir aos jovens de hoje o que os jovens da década de 60 e 70 passaram.
Já agora lançava um apelo a todos os ex-combatentes que tenham espólio de qualquer tipo relacionado com a guerra, e que queiram doar ou emprestar para o MUSEU DA GUERRA COLONIAL (uma história para contar...), situado em Vila Nova de Famalicão, do qual sou sócio-fundador. Deixo também aqui um convite para o visitarem.
Para todos os Periquitos, Maçaricos ou Velhinhos, um abraço. Adeus, até ao meu regresso!
Fernando Gomes de Carvalho
Av. Dr. Carlos Bacelar, 311
4760-480 ESMERIZ
Telemóvel: 968583045
2. Comentário do Marques Lopes (que recebeu e reenviou esta mensagem para a maralha da tertúlia) (lista a actualizar...):
Caro camarada ex-combatente [Carvalho]:
É com muita satisfação que recebo, dois dias seguidos, mensagens de dois ex-combatentes que passaram por Geba. Ontem foi um,[o Belmiro Vaqueiro], que lá esteve antes de mim, e hoje é o Fernando Carvalho, que esteve depois.
É bom encontrarmos pessoas para recordarmos terras que pisámos na nossa juventude, como diz. Não lhe vou dar ordens, vou apenas convidá-lo a incluir-se num grupo de amigos que passaram pela Guiné durante a guerra e que vão contando coisas dessa passagem neste blogue-fora-nada que o nosso camarada ex-combatente Luís Graça vai gerindo com muita sabedoria. Venha participar, pois terá muito que contar com toda a certeza.
Um abraço.
Marques Lopes
Ao recordar terras que pisei na minha juventude, através da Net, vim encontrar aqueles, como eu, que por lá passaram.
Norte e Leste da Guiné tocaram-me nos bons e maus momentos dos anos de 1968 a 1970. Não tive sítio certo desde Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego (Gabu), Pirada, Geba e seus destacamentos (Sarabanda, Cantacunda e Banjara), Piche, Buruntuma, etc.
Quantas vezes recordo a igreja de Geba, junto ao Rio Geba! Ali podia esquecer África e, por alguns momentos, pensar que estava na Metrópole, passando os olhos sob a torre e o telhado da igreja e fixando, ao fundo, o horizonte. Era o meu cantinho no Minho!
Ver as vossas fotos fez-me recordar vivamente os momentos duros que todos nós, ex- combatentes da Guiné, passámos na juventude... Essas batatas fritas com bife e cerveja preta em Bafatá? Mas era só quando havia!...
Dou os parabéns a todos vós por esta página na Net, só assim podemos transmitir aos jovens de hoje o que os jovens da década de 60 e 70 passaram.
Já agora lançava um apelo a todos os ex-combatentes que tenham espólio de qualquer tipo relacionado com a guerra, e que queiram doar ou emprestar para o MUSEU DA GUERRA COLONIAL (uma história para contar...), situado em Vila Nova de Famalicão, do qual sou sócio-fundador. Deixo também aqui um convite para o visitarem.
Para todos os Periquitos, Maçaricos ou Velhinhos, um abraço. Adeus, até ao meu regresso!
Fernando Gomes de Carvalho
Av. Dr. Carlos Bacelar, 311
4760-480 ESMERIZ
Telemóvel: 968583045
2. Comentário do Marques Lopes (que recebeu e reenviou esta mensagem para a maralha da tertúlia) (lista a actualizar...):
Caro camarada ex-combatente [Carvalho]:
É com muita satisfação que recebo, dois dias seguidos, mensagens de dois ex-combatentes que passaram por Geba. Ontem foi um,[o Belmiro Vaqueiro], que lá esteve antes de mim, e hoje é o Fernando Carvalho, que esteve depois.
É bom encontrarmos pessoas para recordarmos terras que pisámos na nossa juventude, como diz. Não lhe vou dar ordens, vou apenas convidá-lo a incluir-se num grupo de amigos que passaram pela Guiné durante a guerra e que vão contando coisas dessa passagem neste blogue-fora-nada que o nosso camarada ex-combatente Luís Graça vai gerindo com muita sabedoria. Venha participar, pois terá muito que contar com toda a certeza.
Um abraço.
Marques Lopes
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domingo, 26 de junho de 2005
Guiné 63/74 - P82: Tabanca Grande: Belmiro Vaqueiro (CCAÇ 1426, Geba, 1965/67) Presente!!!
Guiné > CART 1690 > Destacamento de Banjara (sub-sector de Geba, Zona Leste) > 1967 > Militares com um troféu de caça... Nesse dia houve rancho melhorado... A montagem de armadilhas para caçar porcos do mato já era uma prática corrente no tempo da CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67), "quando a fome apertava"... © A. Marques Lopes (2005)
1. Mensagem do ex-combatente Belmiro Vaqueiro (CCAÇ 1426, Geba, 1965/67).
Título: Em memória dos bravos da CART 1690
Foi com muita emoção que vi o excelente trabalho publicado na Net acerca dos bravos da CART 1690. Curvo-me perante a memória dos caídos em combate cujo historial desconhecia.
É que eu percorri todos esses locais e ainda tenho bem presente os momentos vividos em Cantacunda e Banjara. Fiz parte da Companhia de Caçadores n.º 1426 com sede em Geba (1965 a 1967), companhia que que pelos vistos foi rendida pela CART 1690 nos primeiros dias de Maio de 1967.
Em Banjara, à noite, havia uns tantos voluntários que também colocavam armadilhas na bolanha para apanhar os porcos. Só o fazíamos quando a fome apertava.
Apresento oe meus respeitosos cumprimentos.
O ex-combatente Belmiro Vaqueiro.
2. Resposta do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967):
Caro camarada ex-combatente:
É óptimo encontrar alguém que tenha passado pelos mesmos locais que eu. Sim, foi a CART 1690 que chegou a Geba em 17 de Abril de 1967. Após alguns dias de sobreposição de comandos, substituiu-se de facto a CCAÇ 1426.
Convido-o a integrar este grupo de ex-combatentes da Guiné e escrever para o excelente blogue-fora-nada, da autoria do amigo Luís Graça. Com certaeza terá muitas coisas a contar-nos também.
3. Comentário de Luis Graça:
Quando em 23 de Abril de 2004 lancei o primeiro post sobre este tema [ Guiné 69/71 - I: Querida(s) madrinha(s) de guerra] estava longe de imaginar que hoje poderíamos estar aqui a falar da nossa (minha e de outros camaradas) experiência como ex-combatentes na Zona Leste da Guiné, no período em que fiz parte da CCAÇ 12 (1969/71). No fundo, tinha uma vaga esperança de (re)encontrar gente do meu tempo e que tivesse andado pelos mesmos sítios (Contuboel,Geba, Bafatá, Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Enxalé, Mississirá, Fá...).
Primeiro apareceu o Castro, mais novo (Xime e Mansambo, 1972/74) e depois o Guimarães (Xitole, 1970/72). A seguir veio o Lopes, mais antigo que todos nós (esteve na Zona Leste, em Geba, em 1967, onde foi ferido, na CART 1690; e depois na Zona do Cacheu, em Barro, com a CCAÇ 3, em 1968). Bom, e por aí fora: um a um, ou em grupo, começam apareceu os velhos tugas, não só da minha época (1969/71) como mais e mais novos, e que andaram pelas mais desvairadas terras da Guiné, do Cacheu ao Gabu...
Tudo isto para dizer que o Belmiro Vaqueiro (Geba, 1965/67) é bem vindo e será recebido de braços abertos na nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné, no caso de ele manifestar interesse em partilhar connosco não só o seu endereço de e-mail como as suas memórias.
4. Já em data posterior (3 de Julho de 2005), o Belmiro mandou-me os seguintes esclarecimentos:
"No seguimento da mensagem enviada ao A. Marques Lopes, como já tive oportunidade de referir, pertenci à CCAÇ 1426. Embarcámos com destino à Guiné, a bordo do Niassa, em meados de 1965 e regressámos à Metrópole nos primeiros dias do mês de Maio de 1967, a bordo do Uíge.
Fonte: Navios Mercantes Portugueses > Uíge (2000)
"Sou um ex-furriel miliciano e o tempo de tropa repartiu-se por Geba,Camamudo, Cantacunda e Banjara. No sector de Banjara era onde a traça mais atacava (os camufulados não eram anti-traça).
"Foi a minha companhia quem primeiro ocupou as novas instalações sitas no morro sobranceiro a Geba. Também foi a minha companhia, enquadrada por forças, ao que julgo, de sapadores e blindadas, adstritas ao Batalhão 7 de Espadas com sede em Bafatá, quem primeiro se instalou na bela instância de Banjara, onde se manteve até ao final da comissão.
"Actualmente vivo na cidade de Bragança na situação de reformado".
1. Mensagem do ex-combatente Belmiro Vaqueiro (CCAÇ 1426, Geba, 1965/67).
Título: Em memória dos bravos da CART 1690
Foi com muita emoção que vi o excelente trabalho publicado na Net acerca dos bravos da CART 1690. Curvo-me perante a memória dos caídos em combate cujo historial desconhecia.
É que eu percorri todos esses locais e ainda tenho bem presente os momentos vividos em Cantacunda e Banjara. Fiz parte da Companhia de Caçadores n.º 1426 com sede em Geba (1965 a 1967), companhia que que pelos vistos foi rendida pela CART 1690 nos primeiros dias de Maio de 1967.
Em Banjara, à noite, havia uns tantos voluntários que também colocavam armadilhas na bolanha para apanhar os porcos. Só o fazíamos quando a fome apertava.
Apresento oe meus respeitosos cumprimentos.
O ex-combatente Belmiro Vaqueiro.
2. Resposta do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967):
Caro camarada ex-combatente:
É óptimo encontrar alguém que tenha passado pelos mesmos locais que eu. Sim, foi a CART 1690 que chegou a Geba em 17 de Abril de 1967. Após alguns dias de sobreposição de comandos, substituiu-se de facto a CCAÇ 1426.
Convido-o a integrar este grupo de ex-combatentes da Guiné e escrever para o excelente blogue-fora-nada, da autoria do amigo Luís Graça. Com certaeza terá muitas coisas a contar-nos também.
3. Comentário de Luis Graça:
Quando em 23 de Abril de 2004 lancei o primeiro post sobre este tema [ Guiné 69/71 - I: Querida(s) madrinha(s) de guerra] estava longe de imaginar que hoje poderíamos estar aqui a falar da nossa (minha e de outros camaradas) experiência como ex-combatentes na Zona Leste da Guiné, no período em que fiz parte da CCAÇ 12 (1969/71). No fundo, tinha uma vaga esperança de (re)encontrar gente do meu tempo e que tivesse andado pelos mesmos sítios (Contuboel,Geba, Bafatá, Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Enxalé, Mississirá, Fá...).
Primeiro apareceu o Castro, mais novo (Xime e Mansambo, 1972/74) e depois o Guimarães (Xitole, 1970/72). A seguir veio o Lopes, mais antigo que todos nós (esteve na Zona Leste, em Geba, em 1967, onde foi ferido, na CART 1690; e depois na Zona do Cacheu, em Barro, com a CCAÇ 3, em 1968). Bom, e por aí fora: um a um, ou em grupo, começam apareceu os velhos tugas, não só da minha época (1969/71) como mais e mais novos, e que andaram pelas mais desvairadas terras da Guiné, do Cacheu ao Gabu...
Tudo isto para dizer que o Belmiro Vaqueiro (Geba, 1965/67) é bem vindo e será recebido de braços abertos na nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné, no caso de ele manifestar interesse em partilhar connosco não só o seu endereço de e-mail como as suas memórias.
4. Já em data posterior (3 de Julho de 2005), o Belmiro mandou-me os seguintes esclarecimentos:
"No seguimento da mensagem enviada ao A. Marques Lopes, como já tive oportunidade de referir, pertenci à CCAÇ 1426. Embarcámos com destino à Guiné, a bordo do Niassa, em meados de 1965 e regressámos à Metrópole nos primeiros dias do mês de Maio de 1967, a bordo do Uíge.
Fonte: Navios Mercantes Portugueses > Uíge (2000)
"Sou um ex-furriel miliciano e o tempo de tropa repartiu-se por Geba,Camamudo, Cantacunda e Banjara. No sector de Banjara era onde a traça mais atacava (os camufulados não eram anti-traça).
"Foi a minha companhia quem primeiro ocupou as novas instalações sitas no morro sobranceiro a Geba. Também foi a minha companhia, enquadrada por forças, ao que julgo, de sapadores e blindadas, adstritas ao Batalhão 7 de Espadas com sede em Bafatá, quem primeiro se instalou na bela instância de Banjara, onde se manteve até ao final da comissão.
"Actualmente vivo na cidade de Bragança na situação de reformado".
sábado, 25 de junho de 2005
Guiné 63/74 - P81: Cartazes de propaganda dirigidos aos homens do mato (Marques Lopes)
© A. Marques Lopes
1. O Marques Lopes mandou-nos, sob a forma de imagens em format.jpg, uma colecção de sete cartazes, a cores.
Eram os nossos conhecidos cartazes de propaganda que deixávamos no mato, nas clareiras, nos trilhos, nas bolanhas, nas regiões fora do nosso controlo, na esperança de que os guerrileiros do PAIGC, as suas milícias e a sua população se entregassem em massa às nossas autoridades, administrativas e militares...
Nunca cheguei a observar os efeitos práticos e objectivos deste tipo de propaganda. Os "homens do mato" que conheci foram os que fizemos prisioneiros; a população do mato (mulheres, velhos e crianças) que recuperámos foi a que arrancámos, à força, das zonas controladas pela guerrilha.
Achei, no entanto, esse material muito interessante,se bem que revele alguma ingenuidade e uma estética de duvidosa eficácia. E pedi-lhe, ao Marques Lopes, para ver se descobria a origem e o ano ("Quem os produzia, quando, para usar onde"...).
O Marques Lopes respondeu-me que "esses folhetos que enviei tínhamo-los quer em Geba quer em Barro, portanto em 1967 e 1968, para espalhar pelas matas. Nenhum deles tem indicação de autor ou de origem, mas é certo que apareciam em pacotes vindos do Comando Chefe de Bissau". Uma coisa é certa: eram cartazes destinados especificamente ao teatro de operações da Guiné.
O que eu acho interessante é que ele tenha tido a preocupação de os guardar. Julgo que também me passaram pelas mãos alguns desses cartazes, mas não fiquei com nenhum. Na altura o que eu queria mesmo era esquecer a Guiné... para sempre. Esses materiais são hoje valiosos pelo seu interesse iconográfico e historiográfico. Não os encontro, por exemplo, no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril nem em qualquer outra parte da Net.
Essas imagens e outras fotos (que eventualmente não venham publicadas, neste blogue nem na página Luís Graça e Camaradas > Subsídios para a História da Guerra colonial > Guiné (1963/74) passam a figurar no meu álbum do Portal Care2.com: Guerra Colonial > Guine-Bissau (1963/74) / Colonial War > Guiena-Bissau (1983/74). Este portal tem a vantagem de permitir a inserção de um número teoricamente ilimitado de fotos.
As imagens originalmente enviadas pelo A. Marques Lopes eram muito pesadas (2 a 3 MB cada uma). O seu tamanho teve que ser reduzido. É natural que percam qualidade.
A colecção (no fundo, é uma sequência de banda desenhada) começa com uma imagem do mapa da Guiné ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") (Cartaz nº 1).
© A. Marques Lopes
A numeração é da minha única responsabilidade: tem a ver a lógica da sua sequência para efeitos de leitura. É claro que o Cartaz nº 1 ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") também podia vir no fim.
O segundo cartaz mostra um grupo de guerrilheiros, no mato, feridos e/ou desmoralizados (vd. i,magem no toppo deste post). Os combatentes do PAIGC nunca são tratados como tal, mas simplesmente como "homens do mato" (leia-se: bandidos, indivíduos que estão fora da lei e da ordem). Aliás, no nosso tempo, "ir no mato" era, no falar das gentes da Guiné, juntar-se à guerrilha, fugir das zonas sob administração portuguesa. Portugal, de resto, nunca reconheceu o PAIGC como inimigo, nem a luta contra o terrorismo como uma situação de guerra, face à Convenção de Genebra.
O título do cartaz é:
- No mato, há doença, fome e morte...
A legenda, por sua vez, diz o seguinte:
- O Chefe do Grupo do mato julga que vai morrer. Foi gravemente ferido.
No Cartaz nº 3 vemos o mesmo grupo de "homens do mato" a entregar-se às autoridades militares portuguesas da zona. Depois do Chefe do mato ter ido falar com o "homem grande da tabanca" (que veste à maneira fula, o que está longe de ser inocente, já que os fulas eram os nossos grandes aliados)...Legenda:
- O Homem Grande diz à tropa que estes homens foram enganados, estão arrependidos e fartos da guerra.
No Cartaz nº 4 vemos os "homens do mato, arrependidos" serem bem tratados pelas autoridades portuguesas: (i) são tratados pelos enfermeiros da tropa, (ii) bebem cerveja com soldados africanos...
No Cartaz nº 5 vemos uma tabanca, sob a bandeira portugesa (e, parece-me, ao canto superior direito, descortinar uma inverosímil antena de televisão!). Legenda: "a gente do mato que estava enganada e não vivia na tabanca há muito tempo" abraça a família e os amigos...
© A. Marques Lopes
Por fim, a tropa e os civis ajudam aqueles que se apresentam a reconstruir a sua tabanca (clara referência aos famosos "reordenamentos" ou "aldeias estratégicas" que, no tempo do Spínola, tiveram um grande incremento)(Cartaz nº 6).
O último cartaz (nº 7) tem uma lógica implacável: "Apresenta-te à tropa, levanta os braços"... Mostra dois "homens do mato", de braços levantados, segurando a sua espingarda semi-automática (Simonov ?) por cima da cabeça...
2. Veja-se o que diz o Centro de Documentação 25 de Abril sobre a propaganda, usada durante a guerra colonial, por um lado e outro:
"A acção psicológica destina-se a influenciar as atitudes e o comportamento dos indivíduos. Na guerra subversiva é utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspectos diferentes, embora intimamente relacionados: acção psicológica, acção social, acção de presença.
"Quer as forças portuguesas, quer os movimentos de libertação, usaram intensamente a acção psicológica como arma, integrando-a na panóplia de meios disponíveis para a conquista dos seus objectivos, dentro da ideia que as palavras são os canhões do séc. XX e que, como se ensinava aos futuros chefes da guerrilha na escola de estado-maior da China, na guerra revolucionária deve atacar-se com 70 por cento de propaganda e 30 por cento de esforço militar.
"A acção psicológica exercida sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com as finalidades de cada uma destas áreas: a primeira, pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda, tendo como finalidade neutralizar a propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.
"Quanto às populações, procurou-se criar esse ambiente propício com a acção social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, conquistando-lhes os corações e originando condições mais receptivas à acção psicológica. Esta acção foi desenvolvida sob a forma de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica.
"Relativamente ao adversário, a acção psicológica das forças portuguesas era isolar os guerrilheiros das populações, desmoralizá-los e conduzi-los ao descrédito quer na acção, quer na dos seus chefes. Para o efeito utilizaram-se panfletos e cartazes lançados de aviões ou colocados nos trilhos de acesso e nas povoações, emissões de rádio, propaganda sonora directamente a partir de meios aéreos, apelando à sua rendição e entrega às forças militares ou administrativas, garantindo-lhes e explicando-lhes que a participação na guerrilha constituía um logro".
Nota de correcção:
Posteriormente à inserção deste post, recebi em 26 de Junho de 2005 a seguinte mensagem do Marques Lopes: "Peço-te que faças uma correcção a propósito dos cartazes que enviei. Quem tinha esses cartazes em seu poder era o meu amigo alferes Reis, da CART1690, que mos cedeu. Embora eu os conhecesse, como disse, quer em Geba quer em Barro, não tinha nenhum destes em meu poder. Tenho outro, não igual, mas ando ainda à procura dele... deve estar no meio de outros papéis. Quando o encontrar enviá-lo-ei".
Aqui fica a correcção: o seu a seu dono. A autoria das imagens é do Marques Lopes, já que foi ele quem teve o trabalho de as digitalizar e enviar para a nossa tertúlia.
1. O Marques Lopes mandou-nos, sob a forma de imagens em format.jpg, uma colecção de sete cartazes, a cores.
Eram os nossos conhecidos cartazes de propaganda que deixávamos no mato, nas clareiras, nos trilhos, nas bolanhas, nas regiões fora do nosso controlo, na esperança de que os guerrileiros do PAIGC, as suas milícias e a sua população se entregassem em massa às nossas autoridades, administrativas e militares...
Nunca cheguei a observar os efeitos práticos e objectivos deste tipo de propaganda. Os "homens do mato" que conheci foram os que fizemos prisioneiros; a população do mato (mulheres, velhos e crianças) que recuperámos foi a que arrancámos, à força, das zonas controladas pela guerrilha.
Achei, no entanto, esse material muito interessante,se bem que revele alguma ingenuidade e uma estética de duvidosa eficácia. E pedi-lhe, ao Marques Lopes, para ver se descobria a origem e o ano ("Quem os produzia, quando, para usar onde"...).
O Marques Lopes respondeu-me que "esses folhetos que enviei tínhamo-los quer em Geba quer em Barro, portanto em 1967 e 1968, para espalhar pelas matas. Nenhum deles tem indicação de autor ou de origem, mas é certo que apareciam em pacotes vindos do Comando Chefe de Bissau". Uma coisa é certa: eram cartazes destinados especificamente ao teatro de operações da Guiné.
O que eu acho interessante é que ele tenha tido a preocupação de os guardar. Julgo que também me passaram pelas mãos alguns desses cartazes, mas não fiquei com nenhum. Na altura o que eu queria mesmo era esquecer a Guiné... para sempre. Esses materiais são hoje valiosos pelo seu interesse iconográfico e historiográfico. Não os encontro, por exemplo, no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril nem em qualquer outra parte da Net.
Essas imagens e outras fotos (que eventualmente não venham publicadas, neste blogue nem na página Luís Graça e Camaradas > Subsídios para a História da Guerra colonial > Guiné (1963/74) passam a figurar no meu álbum do Portal Care2.com: Guerra Colonial > Guine-Bissau (1963/74) / Colonial War > Guiena-Bissau (1983/74). Este portal tem a vantagem de permitir a inserção de um número teoricamente ilimitado de fotos.
As imagens originalmente enviadas pelo A. Marques Lopes eram muito pesadas (2 a 3 MB cada uma). O seu tamanho teve que ser reduzido. É natural que percam qualidade.
A colecção (no fundo, é uma sequência de banda desenhada) começa com uma imagem do mapa da Guiné ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") (Cartaz nº 1).
© A. Marques Lopes
A numeração é da minha única responsabilidade: tem a ver a lógica da sua sequência para efeitos de leitura. É claro que o Cartaz nº 1 ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") também podia vir no fim.
O segundo cartaz mostra um grupo de guerrilheiros, no mato, feridos e/ou desmoralizados (vd. i,magem no toppo deste post). Os combatentes do PAIGC nunca são tratados como tal, mas simplesmente como "homens do mato" (leia-se: bandidos, indivíduos que estão fora da lei e da ordem). Aliás, no nosso tempo, "ir no mato" era, no falar das gentes da Guiné, juntar-se à guerrilha, fugir das zonas sob administração portuguesa. Portugal, de resto, nunca reconheceu o PAIGC como inimigo, nem a luta contra o terrorismo como uma situação de guerra, face à Convenção de Genebra.
O título do cartaz é:
- No mato, há doença, fome e morte...
A legenda, por sua vez, diz o seguinte:
- O Chefe do Grupo do mato julga que vai morrer. Foi gravemente ferido.
No Cartaz nº 3 vemos o mesmo grupo de "homens do mato" a entregar-se às autoridades militares portuguesas da zona. Depois do Chefe do mato ter ido falar com o "homem grande da tabanca" (que veste à maneira fula, o que está longe de ser inocente, já que os fulas eram os nossos grandes aliados)...Legenda:
- O Homem Grande diz à tropa que estes homens foram enganados, estão arrependidos e fartos da guerra.
No Cartaz nº 4 vemos os "homens do mato, arrependidos" serem bem tratados pelas autoridades portuguesas: (i) são tratados pelos enfermeiros da tropa, (ii) bebem cerveja com soldados africanos...
No Cartaz nº 5 vemos uma tabanca, sob a bandeira portugesa (e, parece-me, ao canto superior direito, descortinar uma inverosímil antena de televisão!). Legenda: "a gente do mato que estava enganada e não vivia na tabanca há muito tempo" abraça a família e os amigos...
© A. Marques Lopes
Por fim, a tropa e os civis ajudam aqueles que se apresentam a reconstruir a sua tabanca (clara referência aos famosos "reordenamentos" ou "aldeias estratégicas" que, no tempo do Spínola, tiveram um grande incremento)(Cartaz nº 6).
O último cartaz (nº 7) tem uma lógica implacável: "Apresenta-te à tropa, levanta os braços"... Mostra dois "homens do mato", de braços levantados, segurando a sua espingarda semi-automática (Simonov ?) por cima da cabeça...
2. Veja-se o que diz o Centro de Documentação 25 de Abril sobre a propaganda, usada durante a guerra colonial, por um lado e outro:
"A acção psicológica destina-se a influenciar as atitudes e o comportamento dos indivíduos. Na guerra subversiva é utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspectos diferentes, embora intimamente relacionados: acção psicológica, acção social, acção de presença.
"Quer as forças portuguesas, quer os movimentos de libertação, usaram intensamente a acção psicológica como arma, integrando-a na panóplia de meios disponíveis para a conquista dos seus objectivos, dentro da ideia que as palavras são os canhões do séc. XX e que, como se ensinava aos futuros chefes da guerrilha na escola de estado-maior da China, na guerra revolucionária deve atacar-se com 70 por cento de propaganda e 30 por cento de esforço militar.
"A acção psicológica exercida sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com as finalidades de cada uma destas áreas: a primeira, pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda, tendo como finalidade neutralizar a propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.
"Quanto às populações, procurou-se criar esse ambiente propício com a acção social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, conquistando-lhes os corações e originando condições mais receptivas à acção psicológica. Esta acção foi desenvolvida sob a forma de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica.
"Relativamente ao adversário, a acção psicológica das forças portuguesas era isolar os guerrilheiros das populações, desmoralizá-los e conduzi-los ao descrédito quer na acção, quer na dos seus chefes. Para o efeito utilizaram-se panfletos e cartazes lançados de aviões ou colocados nos trilhos de acesso e nas povoações, emissões de rádio, propaganda sonora directamente a partir de meios aéreos, apelando à sua rendição e entrega às forças militares ou administrativas, garantindo-lhes e explicando-lhes que a participação na guerrilha constituía um logro".
Nota de correcção:
Posteriormente à inserção deste post, recebi em 26 de Junho de 2005 a seguinte mensagem do Marques Lopes: "Peço-te que faças uma correcção a propósito dos cartazes que enviei. Quem tinha esses cartazes em seu poder era o meu amigo alferes Reis, da CART1690, que mos cedeu. Embora eu os conhecesse, como disse, quer em Geba quer em Barro, não tinha nenhum destes em meu poder. Tenho outro, não igual, mas ando ainda à procura dele... deve estar no meio de outros papéis. Quando o encontrar enviá-lo-ei".
Aqui fica a correcção: o seu a seu dono. A autoria das imagens é do Marques Lopes, já que foi ele quem teve o trabalho de as digitalizar e enviar para a nossa tertúlia.
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