Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), traz-nos a segunda parte do Ciclo do Pão.
Brunhoso há 50 anos
9 - O Ciclo do Pão (2)
Depois das ceifas ou em parte em simultâneo, era
necessário fazer o transporte dos molhos de trigo que os ceifeiros
tinham juntado em "rilheiros" nas terras já despidas de cereal e
cobertas de restolho áspero. Começava a “acarreja” assim se chamava
essa grande operação do transporte dos molhos de trigo e centeio para
as eiras do Prado e outras eiras particulares, para serem trilhados
ou malhados.
Os lavradores normalmente iam dormir às terras, com o gado, para a
primeira carrada estar nas eiras ainda antes do nascer do sol,
aproveitando o calor das noites e a luminosidade dessas alvoradas de
Verão. Por esse ou por outros motivos cheguei a dormir muitas vezes
no campo nessas noites quentes de verão, tendo por luz somente o céu
estrelado que cobria a terra com um manto de estrelas que brilhavam
como se o Universo tivesse renascido.
Os carros eram carregados, como diziam os lavradores, com "pousadas",
conjunto de quatro molhos, e havia muito rivalidade nessas cargas,
quer pela melhor aplicação da técnica utilizada, quer por carregarem
mais, sinal de animais possantes e bem treinados.
Devido a esse peso, os carros "chiavam”, assim se dizia e, para que
isso não acontecesse, primeiro porque o eixo aquecia muito e podia
arder com a fricção, e também porque se andassem nas estradas, mesmo
municipais, poderiam ser multados, untava-se o eixo e as
"estreitouras" com sabão caseiro ou com borras de azeite.
Logo ao inicio do alvorecer, dessas manhãs claras de Verão, com
o sol ainda escondido atrás dos montes, os lavradores, os filhos ou
os criados de lavoura regressavam numa primeira viagem com os carros
carregados de trigo ou centeio, numa marcha lenta que enchia os ares
dessa música continua e arrastada, produzida pela fricção das rodas,
que parecia um lamento transformado em sinfonia, que desagradava às
autoridades policiais, mas não desagradava às gentes da aldeia. À
medida que os dias iam passando, as medas nas eiras iam crescendo em
largura e altura, algumas imponentes como grandes pirâmides, e
outras mais ou menos modestas de acordo com a riqueza em terras de
cultivo de cada um. Eu, como de resto os meus irmãos, na
adolescência, só começávamos a ir à acarreja, quando o meu pai
achava que já tínhamos músculos nos braços para poder atirar, com
uma espalhadoura, os molhos para os carros, onde o irmão mais velho
ou alguém os acomodava. Na década de cinquenta esse trabalho seria
feito por um criado de lavoura, que se "justava" anualmente no dia de
S. Pedro, e por um trabalhador que era chamado à jeira. Eu e os meus
irmãos, à medida que íamos crescendo, como no geral os filhos dos
lavradores menos abastados, íamos fazendo todos ou quase todos os
trabalhos agrícolas. Depois das ceifas, o trabalho mais duro das
colheitas, de que o nosso pai nos poupava com trabalhos menores, como
distribuir água aos ceifeiros ou levar-lhes as refeições nos alforges
em cima da burra, voltávamos a ser novamente trabalhadores activos
no primeiro plano das actividades agrícolas. A acarreja seria uma
tarefa de quinze dias, mais ou menos, em que animais e homens
andavam num rebuliço constante que começava logo nesses
alvoreceres de verão, suspendia-se durante as horas de maior calor,
para recomeçar outra vez à tarde. As eiras do Prado eram um grande
espaço de relva próximo da aldeia, propriedade da Igreja (Fábrica da
Igreja, como se denominava), onde todos os que não tivessem uma boa
área de terreno, uma cortinha ou um prado, próximo da aldeia,
podiam trilhar ou malhar os cereais. Fora da época das colheitas era
um terreno de pasto, destinado a burros e outros animais de carga,
aproveitado sobretudo pelos mais pobres que não tinham “lameiros” (o
mesmo que prados) onde os pudessem levar a pastar. Todos os grandes
lavradores, cinco ou seis, tinham eiras próprias para fazer as
debulhas.
Nos primeiros anos da década de cinquenta os cereais ainda eram
debulhados, tal como acontecia com as ceifas, pelo processo
tradicional e histórico, igual aos dos antigos povos de lavradores
da bacia mediterrânica, com recurso ao trilho e à trilha.
O trilho, aparelho para debulha do cereal, é uma espécie de estrado
de madeira, compacto e com algum peso, com lâminas de ferro em forma
de faca fixados na parte inferior. Puxado pelo gado na eira, com o
condutor em cima do trilho, para maior pressão sobre o cereal tirado
das medas, e previamente espalhado, depois de cortados os ”vincelhos” dos molhos. Os vincelhos, com que os ceifeiros atavam os
molhos de cereal na ceifa, faziam-se atando o próprio cereal pelas
espigas de forma a não se soltarem. Havia sempre um garoto que ia no
trilho com uma cortiça em concha, para aparar as fezes dos animais.
Trilho
As lâminas de ferro separavam o grão da espiga e cortavam a palha.
A Trilha, em tudo igual aos trilhos, mas em vez de metal, tinham
seixos cravados na madeira e usavam-se, sobretudo nas lentilhas e
tremoços.
Depois da malha o trigo (ou centeio) era junto em parvas,
compridos montículos com pouca altura, para fazer a separação da palha
e do grão, com a ajuda do vento, utilizando pás próprias para esse
efeito. Depois de separado o cereal da palha, era metido com as
rasas ou rasões nos sacos de linho grosso com a capacidade de cerca
de cinquenta quilos cada um. No fim do dia os sacos seriam carregados
nos carros de bois e transportados para as despensas dos lavradores,
muitas vezes despejados em tulhas a aguardar o transporte para o
celeiro, situado à beira da estação dos caminhos de ferro de
Mogadouro. A palha era também carregada nos carros que eram providos
de grandes cancelas para puderem transportar mais quantidade, e levada
para os palheiros e curraladas. As curraladas eram recintos grandes
que alguns lavradores tinham, onde guardavam as alfaias agrícolas, a
palha, o feno e nalguns casos também os animais de trabalho.
Os mais pobres ainda utilizavam os malhos ou, "manguais", para todo o
tipo de cereal, primeiro porque a colheita era pequena, segundo
porque os trilhos eram caros para as suas posses.
Malhar o centeio
Parte do centeio era sempre malhado pela força dos homens com
os malhos, preservando o caule inteiro, chamado colmo, muito útil
para fazer albardas, belfas, encher os xaragões (colchões de colmo,
já que outros não havia) e para chamuscar o pelo dos porcos nas
matanças, durante o inverno. Nesse tempo havia uma aldeia no concelho
de Freixo de Espada-à-Cinta, chamada Fornos, a cerca de 30 kms de
Brunhoso, onde os telhados da maioria das casas eram cobertos de
colmo. Outras iguais havia nas zonas serranas e mais afastadas, tanto
nas Beiras como em Trás-Os-Montes.
A debulha era o epílogo do longo ciclo do pão, o culminar de
uma grande jornada onde todos estavam presentes: os homens, as
mulheres, os pais, as mães, os filhos, os patrões, os trabalhadores,
os novos, os velhos. A gente de Brunhoso saía toda de casa para
ajudar nas malhas, o final das colheitas do cereal. Em casa só ficavam
as mulheres dos lavradores e algumas ajudantes a fazer comida, pois
era necessário alimentar todo esse exército de trabalhadores que
estavam nas eiras a tratar do grão e da palha. A comida era abundante
tal como tinha sido a dos segadores nas ceifas. Havia uma algazarra
própria dos grandes acontecimentos, com todo esse povo de homens e
mulheres, sujos do pó do cereal e da palha, a trabalhar debaixo
desse sol tórrido de Agosto, ou sentados em longas mesas
improvisadas com trigo ou centeio a comer as melhores comidas que as
patroas sabiam fazer e a beber o vinho “precioso” da colheita do
patrão ou comprado para os lados de Miranda do Douro. Eram dias de
grande convívio, trabalhava-se muito, mas falava-se, gracejava-se,
comia-se bem, bebia-se bastante. O que recebiam desses dias de
trabalho além do vinho e da boa comida, do prazer dessa convivência
alargada, era um agradecimento dos lavradores que se confundia com a
caridade cristã, de alguns alqueires de trigo ou centeio, ou pães já
cozidos que em tempos posteriores de mais necessidade lhes dariam
para eles e para os filhos e alguns sacos de palha, para alimento
dos burros. Era pouco mas esse pagamento ancestral dessa ajuda por
comida e por alguns benefícios futuros certos ou incertos, era muito
antiga, tão antiga que os mais velhos já não sabiam se tinha sido
instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, na Galileia, que era terra
de trigo. Tinha uma vizinha, mãe de muitos filhos, boa mulher, muito
faladora e sociável que não perdia um dia de colheitas.
Nos primeiros anos da década de cinquenta, do século passado, era eu
garoto, e recordo-me ainda das debulhas serem feitas da forma que
descrevi atrás, somente por homens e animais. Talvez ainda antes de
meados dessa década surge a malhadeira uma grande máquina que por
processo mecânico, movida inicialmente por um motor a gasóleo e
posteriormente por um tractor, separa a palha do grão, saindo a palha
já moída por uma abertura larga e o grão por outras aberturas mais
estreitas onde havia sacos de linho a encher, vigiados por
trabalhadores.
Malhadeira
O primeiro tractor agrícola surge em Brunhoso, disso recordo-me ainda
bem, a meio dessa década e quando foi levado ao lavrador que o
comprou para demonstração, com arados e outros acessórios provocou
grande sensação e juntou muita gente, pequena e grande sobretudo do
género masculino.
Nunca me esqueci era um David Brown, grande e azul .
Tractor David Brown 900 de 1957
Passados alguns anos, já na década de sessenta, irão entrar na aldeia
as ceifeiras debulhadoras, máquinas agrícolas, uma espécie de
grandes tractores, que se deslocam às searas e fazem toda a ceifa e a
debulha à medida que cortam o cereal, que irão alterar radicalmente as
formas ancestrais de ceifar e transformar as searas em grão e em
palha. As primeiras ceifeiras da região, eram do chamado GRÉMIO DA
LAVOURA, instituto do estado que fomentava o cultivo dos cereais,
quando vieram para esta região já eram usadas, vinham do Alentejo,
onde já eram consideradas pequenas e obsoletas. Com a introdução das
ceifeiras-debulhadoras, os antigos ceifeiros passam a ser meros
espectadores desse progresso tecnológico onde não havia lugar para
eles. Provavelmente será uma das causas, associada a outras, da
debandada em massa, a salto, desses trabalhadores para França e
para essa Europa das nossas ilusões, depois das Índias, das Américas
e das Áfricas. Os homens querem jeiras, querem trabalho e ele cada
vez escasseia mais.
A agricultura sujeita a variações de produção provocadas pela seca, a
chuva excessiva, as trovoadas o granizo e outras causas naturais pelo
que os povos de agricultores procuraram sempre a protecção de
entidades sobrenaturais para se protegerem de todas essas
calamidades.
A palavra cereal vem de Ceres, a deusa romana da agricultura da
colheita e dos grãos.
Ceres, generosa na essência e na forma, é
bela sem sofisticação, serena e natural como uma flor silvestre.
Tem
outras representações de acordo com os gostos e a sensibilidade dos
seus adoradores ou artistas. Eu imagino-a tal como a descrevi.
Ceres é também um símbolo da fertilidade e da vida tal como a sua irmã
da mitologia grega a deusa Deméter.
Quando o Império Romano declara o cristianismo como sua religião
oficial, no século IV dC, através o imperador Teodósio, as
competências de muitos deuses e deusas da antiga religião politeísta
são atribuídas pela Igreja a santos e santas.
S. Isidoro, um santo
espanhol, é o protector dos lavradores, quase desconhecido no
Nordeste Transmontano onde no geral se pedia auxílio a Santa Bárbara,
virgem e mártir, protectora das trovoadas e doutros males associados
como aguaceiros fortes e o granizo.
A festa à Santa Bárbara, nesse
tempo antigo, ainda antes da "fuga" dos trabalhadores para a Europa,
era celebrada no segundo domingo de Setembro, quando as colheitas já
estavam feitas com o cereal e a palha recolhidos. Era um tempo em que
se podiam lançar os foguetes sem o perigo de incendiar as searas ou as
medas de trigo e era a ocasião de agradecer à Santa os resultados das
colheitas do ano.
Francisco Baptista
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Nota do editor
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