Nuno Tristão
1. Em mensagem datada de 13 de Setembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:
Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis
Por Manuel Luís Lomba
A minha memória da Guerra da Guiné anda associada à lembrança das suas “mentiras revolucionárias” e das duas utopias, responsáveis directas e indirectas, da imolação dos seus milhares de vítimas - homens, mulheres e crianças: a de que a Guiné continuaria a ser dos portugueses, de um lado; e a de que os guineenses empreendiam a sua libertação, do outro. Um chamamento do além, à evocação se “valeu a pena?” ou ao piedoso respeito pelos que derramaram o seu sangue por ela?
A Guerra da Libertação da Guiné foi o meu (nosso) passado de mocidade, o nosso futuro próximo é estarmos todos mortos e, neste mês de Setembro, efeméride da Declaração unilateral da independência e do seu reconhecimento por Portugal, seja-me permitido evocar alguns dos seus acontecimentos e evidências.
Nuno Tristão chegado à Guiné, diz o cronista que na missão da “busca certa de informação e sabedoria daquelas partes” e foi morto pelos Mandingas pré-cabralinos, em Setembro; o reconhecimento da posse exclusiva da Guiné, pelos Reis Católicos da Espanha e pelo Papa de Roma, foi em Setembro; Amílcar Cabral nasceu em Setembro; o PAIGC foi fundado em Setembro; Amílcar Cabral fez a parceria do PAIGC com a União Soviética, em Setembro; as acções de sabotagem pelo PAIGC, adventícias da guerra da Guiné, tiveram início em Setembro; a declaração unilateral da sua independência, “nas colinas do Boé”, foi em Setembro; a demissão do general Spínola, que levantou e reforçou o moral combativo ao PAIGC, foi em Setembro; a fundação do MFA, a substância activa do PAIGC replicada nas Forças Armadas Portuguesas, foi na Guiné e em Setembro; a formação da Comissão Coordenadora do MFA, o mais eficiente “comité libertador” da Guiné, foi em Setembro; e o reconhecimento da independência da Guiné por Portugal, foi em Setembro; etc.
O apoio da Oposição sistemática ao regime do Estado Novo, o fenómeno eleitoral Humberto Delgado - a Guiné votou-o a PR - e aquele “massacre” no cais do Pidjiquiti, estereótipo das consequências das greves musculadas, foram o lastro para Amílcar Cabral começar a Guerra da Guiné. Mal começara o aliciamento de combatentes e já os apoios morais e materiais de todo o mundo lhe abundavam. Grande era o efeito multiplicador das adesões, com a sua eficiência subversiva, no desempenho de alto funcionário do governo colonial e pelo poder da mensagem que dirigia aos contactados, de que transformaria a Guiné, de pobre e atrasada colónia portuguesa, na Suíça da África; e, a seu exemplo, o seu núcleo duro de combatentes foi formado por soldados e graduados da guarnição militar da Guiné, no activo e na disponibilidade.
Levou com ele os primeiros 30 a tirocinar na China, devolvidos com os cérebros lavados e como operacionais preparados para a guerra de guerrilhas. E foi essa malta, iniciada na arte militar nos quartéis da guarnição da Guiné que, ao longo de 11 anos, saberá comer as papas na cabeça (falta-me expressão mais erudita) aos militares formada nos quartéis, nas Escolas Práticas, nas Academias e nos Altos Estudos Militares das FA de Portugal!
Para desconforto dos tabus do lado deles e das más-línguas do nosso lado, segundo as quais a longevidade da Guerra da Guiné aconteceu por interesses carreiristas e pelos estipêndios da quase generalidade dos militares profissionais, não me permito a omitir que os principais comandantes do PAIGC não só eram bem pagos (em escudos, dólares ou coroas suecas?) e bem prendados, relógios de ouro Rolex inclusive, mas também, sem qualquer preparação, se alcandoraram aos altos cargos do novel Estado da Guiné-Bissau!
Isso pela unidade e luta ou a génese da corrupção, responsável pelo falhanço da Guiné-Bissau como Estado?
A partir de 1961, os dirigentes de Lisboa viraram-se para Angola “é nossa” e o PAIGC foi-se instituindo e instalando no arquipélago do Como, formado por três ilhas, separadas entre si apenas na maré alta, onde foi crescendo, em subversão, orgânica e como base de guerra, posto em sossego, pela cumplicidade da autoridade colonial de Catió, desempenhada por um militante. De feudo do colono Manuel Pinho Brandão e por bravata de Nino Vieira, aquele arquipélago passou a República Independente do Como, com a capital na tabanca de Cachil, a rádio Brazzaville deu a notícia e a PIDE de Angola alertou as autoridades de Bissau e Lisboa. Naquele tempo, o efectivo paigcista naquele arquipélago seria inferior a 400 combatentes e o efectivo da guarnição militar da Guiné era de cerca de 1800 homens, metropolitanos e naturais, distribuídos pelos três ramos das Forças Armadas.
Tendo partido da base-mãe de Koundara (para não contrariar Skou Touré), 30 km além fronteira, em Janeiro de 1963, um grupo de guerreiros, comandado por um puto guineense de 20 anos, que atendia pelo nome de Arafan Mané, veio fazer o baptismo de fogo, dele e do PAIGC, numa tentativa falhada de assalto ao quartel militar de Tite. O Estado-Maior de Bissau convenceu-se de que as três ilhas eram a mãe dessa guerra, a aviação de Bissalanca passou a bombardear regularmente as copas das suas árvores e um bombardeiro T6, abalroado pela sua parelha, fez uma aterragem de emergência.
A Guerra da Guiné entrava nos seus primórdios e já Amílcar Cabral se antecipava ao seu evoluir e desfecho, a percorrer as arenas internacionais e as chancelarias de Estados, numa diplomacia de propaganda e triunfalista, exibindo o mapa com 2/3 da Guiné libertada, a autoridade colonial circunscrita a Bissau e Safim, provas de aviões abatidos e um piloto de combate aprisionado.
Arvorado em líder dum Partido-armado e de uma guerra política, de efeito dirigido à Comunidade internacional, era mister a Amílcar Cabral formalizá-lo em assembleia constitucional; e, em finais de Dezembro de 1963, marcou o I Congresso do PAIGC para a tabanca de Cassacá, implantada numa densa mata, cercada de bolanhas, quais fossos naturais de fortaleza inacessível, na “área libertada" da ilha do Como, que o seu caudilho dava por inexpugnável.
Nessa mesma altura e dispondo do reforço de meios, vindos da Metrópole e de Angola, o Comandante-Chefe das FA da Guiné, por ordem directa de Salazar, emitiu a directiva da organização e da manobra de uma operação de grande envergadura sobre aquele arquipélago, com a missão de liquidar a situação e a sua causa. Por ironia do destino, os dois eventos decorrerão paralelamente e em proximidade, que só a realidade geográfica da Guiné poderia permitir, primeiro por casualidade e, depois, pela tradicional resiliência cabralina.
Eis dois comandantes-chefes e a sua circunstância – ambos antagónicos ao ditador, ambos favoráveis à negociação e não à guerra: o eng.º agrónomo Amílcar Cabral, ex-alferes miliciano do Exército Português, que havia deixado o emprego para se tirocinar na guerra subversiva na Academia Militar de Pequim, arvorado em líder da guerra independentista da sua terra natal, sustentado pelo ordenado da sua mulher, a eng.ª flaviense Maria Helena Ataíde; e o brigadeiro Louro de Sousa, oficial-general do Exército Português e Comandante-Chefe das FA da Guiné.
Então, em princípios de Janeiro de 1964, o arquipélago do Como foi o objectivo de uma invasão anfíbia, de metodologia semelhança à invasão da Normandia, com o código de “Operação Tridente”, envolvendo o efectivo de cerca de 1200 homens e a panóplia do armamento dos três ramos das FA – Exército, Marinha e Força Aérea. Com os seus escrúpulos de poupar as populações a sobreporem-se ao efeito da surpresa, o Comandante-Chefe mandou que a invasão fosse precedida de dois aviões Dornier de reconhecimento a lançar panfletos sobre o arquipélago, a avisar a metralha que lhes viria da terra, mar e ar.
Assim prevenidos, os cerca de 400 guerreiros nacionalistas do arquipélago do Como, encabeçados por três comandantes, de que apenas sobreviverá Agostinho de Sá, supervisionados pelo felino Nino Viera, estavam para as suas populações “como o peixe para a água”, prepararam-se para festa da recepção. Acontecerá uma metralhada infernal, combates renhidos, sem quartel, e dois aviões de combates derrubados por antiaéreas de grande calibre. Muita bravura e muitos sacrifícios humanos - a bravura mais da parte dos guerrilheiros, os muitos sacrifícios mais da parte da tropa, por maioria de razão.
Na sua consciência de que a fortaleza do Como não passava de quimera revolucionária, a tropa ocupara Cachil e circulava por Cassacá, Amílcar Cabral protelou o congresso, em data a indicar apenas na antevéspera. Atravessou a Guiné com o aludido Arafan Mané, ora seu guarda-costas e manteve a face, confirmando o congresso em Cassacá, não a do Como, mas a do Cubisseco, na península do Cantanhês e mandou Nino Vieira desmobilizar a resistência no Como; e, durante 4 dias, de 13 a 17 de Fevereiro, numa reunião, mais de quadros político-militares que assembleia de massas, estabeleceu orgânicas, ditou directivas e lavrou sentenças de morte. E o PAIGC não deixará de cumprir uma dessas directivas – a execução sumaríssima dos guineenses com ligações à tropa, caídos nas suas garras, assim como dos oposicionistas ou dos que desalinhassem do PAIGC.
Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960) > Escala 1/50.000 > Posição relativa de Cassacá, a 15 km a sul de Cacine, região também como conhecida como Quitafine.
A resistência do Como feneceu, os guerrilheiros sobrevivos esconderam o armamento pesado e dispersaram-se pelo Cantanhês e Cufar, coisa que a guerrilha sabia fazer e a tropa não (veja-se o acontecido em Tancos…) e, ao fim de 71 dias, as forças invasoras retiraram para Bissau. De tão grandiosa, a “Operação Tridente” não passará de solução de continuidade: a Guerra da Guiné continuou em crescimento, em efectivos, armamento e intensidade.
Passados 10 anos, o então Major Otelo Saraiva de Carvalho e o então Capitão Vasco Lourenço, “rapazes” do General Spínola na Guerra da Guiné, descobriram a sua vocação libertadora, naquela madrugada em que se entreajudavam a mudar uma roda do carro em que regressavam de Santarém, qual sua “estrada de Damasco”, de um churrasco desabafo-conspirativo na casa do Capitão Salgueiro Maia, outro “rapaz” da mesma guerra, que aquele general havia injustamente sacrificado e à sua companhia, na batalha de Guidaje, no auge da crise dos “3 G´s” - o contexto gerador da formação do MFA. O Major Otelo receberá a unção dos seus pares, para planear e desencadear a “Operação Mudança de Regime”; e o seu sucesso culminante foi a conclusão da “Operação Tridente”, pela resolução da problemática da Guiné.
Foi no dia 25 de Abril de 1974, o Terreiro do Paço, as suas acessibilidades e o Largo Carmo foram os seus palcos principais; parecerá heresia, mas o seu desfecho vitorioso poderá ser creditado ao discernimento e à coragem moral do Coronel Romeiras Júnior, que fora o 2.º Comandante Operacional da “Operação Tridente”, então comandante do RC 7, posicionado no campo contrário. Qual teria sido o desfecho da “Operação Mudança de Regime” se ele, desobedecendo abertamente ao Brigadeiro Junqueira, não tivesse usado os seus galões para impedir que os poderosos canhões dos seus tanques M44 Paton, vindos da Calçada da Ajuda, dizimassem os conjurados Tenente Assunção, Major Jaime Neves, Capitão Salgueiro Maia, os seus subordinados e as suas Chaimite ocupantes do Terreiro do Paço, desprovidas de armamento para se bater com eles.
Em Setembro de 1974, após o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné, consumando a sua proclamação pelo PAIGC, no inóspito lugarejo de Lugajole, deu-se a emergência da substância paigcista do MFA – a sua deriva para um PREC (Processo Revolucionário em Curso), réplica do terceiro-mundismo ou de república das bananas, tentativa para que o “Fim do Regime” fizesse um caminho no sentido único de outra dinastia ditatorial, um delírio indigno e que indignou o país: além da sua honrosa história, os portugueses eram de maior idade desde 1128 e Portugal era o segundo país mais antigo da Europa e o terceiro mais antigo do Mundo!
No contexto desse paigcismo, os subsistentes da “Operação Tridente”, actores do dia 25 de Abril e do seu dia seguinte – Brigadeiro Louro de Sousa, Comodoro Paulo Costa Santos, Coronel Fernando Cavaleiro, etc. foram metidos na cadeia; e outros, como os Comandantes Alpoim Calvão, Benjamim Abreu, etc. passaram a foragidos.
Não será politicamente correcto; mas eles foram uns heróis, improváveis, da independência da Guiné.
E assim começou o futuro da República da Guiné-Bissau.
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Nota do editor
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