Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 15 de setembro de 2017
Guiné 61/74 - P17768: Notas de leitura (995): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2017:
Queridos amigos,
Desconheço que exista descrição tão minuciosa como a que Gustavo Pimenta faz do período de 1968 até à retirada de Madina de Boé, no início de Fevereiro do ano seguinte. Quando chegam, ao fim da primeira semana, até duvidavam do que lhes tinham dito sobre aquele tão temível local.
Iremos viver uma escalada de flagelações, haverá compassos de espera, até tudo deflagrar em fogo em qualquer hora, o comandante de companhia ainda irá tentar uma série de expedientes para fazer regressar à normalidade a existência daqueles homens permanentemente acossados. Spínola decide ainda em 1968 a retirada de Béli e em Fevereiro retira-se de Madina de Boé.
Iremos seguidamente falar de uma tragédia que marcou indelevelmente quem a ela sobreviveu.
Um abraço do
Mário
Um impressionante relato sobre a retirada de Béli e Madina de Boé (2)
Beja Santos
Em “a sorte de ter medo”, romance de Gustavo Pimenta, Palimage, 2017, temos a rara oportunidade de conhecer o sofrimento de quem combateu no Boé, o autor lá viveu no ano 1968, estará de férias em Fevereiro de 1969, quando ocorrerá o desastre da jangada em direção a Ché-Ché, no rio Corubal, que vitimou 47 militares.
Acompanhámos os antecedentes de um percurso que começa no alto Minho até imprevistamente chegar ao mais temível dos locais, Madina do Boé.
Três grupos de combate vão para Madina, um outro seguirá para Béli. De Ché-Ché faz-se a cambança para a outra margem, sobrevoam os bombardeiros T6, a transferência de toda a coluna demora o dia inteiro, pica-se pormenorizadamente o terreno, a proteção aérea é constante, nas bermas há carcaças de viaturas destroçadas em operações anteriores, ao fim da tarde, sem incidentes, chega-se ao local, no dia seguinte a coluna volta para Nova Lamego, começa a adaptação de Gustavo Pimenta e seus camaradas. Apresenta-nos Madina: “Está num vale, entre pequenas elevações montanhosas, únicas na Guiné. A população é maioritariamente Fula, distribui-se por uma meia centena de habitações tradicionais. No início da atividade de guerrilha fora para lá deslocada uma secção de tropa. Com o evoluir da guerra, passa a ser defendida por um grupo de combate e por um grupo de milícia local. À medida que a situação piora, o efetivo passa para uma companhia, que vem a ficar instalada em abrigos semi-subterrâneos, construído ao redor de todo o perímetro da aldeia. No interior são construídos abrigos idênticos para refúgio da população durante os ataques, população que cultiva pequenas porções de terreno em volta das suas habitações. Com o decorrer do tempo, acaba por se formar um aquartelamento fortificado no vale, em forma de tosco quadrado com cerca de 400 metros de largo, sem nenhuma defensa nas elevações em volta”.
É cuidadoso no detalhe, na apresentação do quartel. Nos primeiros dias, tudo decorre com serenidade, fazem patrulhamentos, não há a menor novidade nem sinais do inimigo. Passada uma semana, ao anoitecer há três disparos de armas pesadas, o PAIGC apresenta-se, mas tudo parece que irá decorrer normalmente, chega-se mesmo a pôr em dúvida a apregoada perigosidade do local. Os sonhos esmorecem rapidamente, começam os ataques a qualquer hora do dia, os guerrilheiros estão nos montes, gozam de muita impunidade. A tensão vai crescendo, durante 12 dias o inimigo não dá sinal de si, o pessoal já joga à malha e sai descontraído dos abrigos. Depois recomeçam os ataques. Novo período de calma, durante mais de um mês e meio não há flagelações com armas pesadas, passam-se 15 dias sem se estabelecer com qualquer contacto. A 13 de Março, recomeçam as flagelações com canhão sem recuo, não há baixas nem ferimentos. Béli parece viver em amena tranquilidade mas subitamente a situação muda, os ataques sucedem-se às horas mais desencontradas e inesperadas. O mês de Abril de 1968 introduz uma novidade: um ataque a Béli ao nascer do dia e a Madina ao anoitecer, será um mês de enlouquecer, qualquer coluna de reabastecimento é uma terrível operação. A alimentação é diretamente proporcional ao isolamento: massa, arroz e conservas, quando chega Spínola à Guiné, Madina irá receber de vez em quando frutas e legumes. “Seguindo a determinação do capitão, quando acontece a vinda de frescos, é feito o rateio: primeiro para os soldados, depois para os sargentos e só no fim, se der, para os oficiais. Assim se come meia maçã ou um pouco de grelos cozidos”.
Deixou de haver equívocos: Madina, tal como Béli em menor escala, está transformada numa carreia de tiro, as flagelações com armas pesadas passam a ser diárias, menos quando se sai nas proximidades para recolher lenha, o inimigo não dá tréguas. Em Junho, Spínola começa a tomar decisões para o abandono de Béli, que decorre sob a proteção de dois T6 que acompanham um longo comboio de viaturas, um dos aviões acidenta-se, estala o pandemónio, depois de uma áspera discussão a coluna retoma a sua missão e chega a Béli ao cair da noite, sendo recebida pelo fogo inimigo de armas ligeiras. O regresso faz-se sem novidades, com a chegada do grupo de combate e da milícia acantonados em Béli, reorganiza-se a distribuição do efetivo.
Não há descanso em Madina, o pessoal que circula pelo aquartelamento é alvo de tiros isolados e de roquetadas. Chega um grupo de paraquedistas sob o comando de um tenente e com a missão específica de tentar neutralizar os atiradores de armas ligeiras que tornam infernal o quotidiano no quartel. Os Páras travam combate, o tenente é ferido com uma rajada nas coxas. As flagelações com armas pesadas não abrandam, os Páras vão-se embora. Tudo vai perdendo normalidade, o comandante de companhia procura animar as suas tropas, fazem fotografias de todo o pessoal, executam postais de boas festas, a energia elétrica é levada a todos os cantos do quartel, o correio não falta, o aniversário de cada militar é sempre ensejo para festejo. O ano de 1969 anuncia-se com a retirada de Madina de Boé, a retirada acontecerá num só dia, até lá é necessário manter as condições de defesa e a operacionalidade da companhia, o narrador está de férias, tudo quanto irá descrever é contado por outros. Quem comanda a operação é o comandante de agrupamento de Bafatá, a 4 de Fevereiro, uma enorme coluna sai de Nova Lamego enquadrada por duas companhias e assim se chega ao Ché-Ché, faz-se a travessia, há uma nova jangada sustentada em barcaças de engenharia militar. Em 5 de Fevereiro os militares abandonam Madina, a estrada é cuidadosamente picada, chega-se à margem do rio Corubal a meio da tarde. Em cada viagem é levada uma ou duas viaturas, começou-se pela população civil. Na margem do destino, em Ché-Ché, são montados os morteiros 81 retirados de Madina, ficam apontados para as imediações da concentração das tropas e viaturas na outra margem. Com morosidade, a travessia concretiza-se, de vez em quando é necessário despejar a água que com o peso do movimento da jangada se vai acumulando nas barcaças de suporte. Cai a noite, a operação continua. Ao amanhecer são poucas as viaturas e tropa que ainda falta transportar.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17756: Notas de leitura (994): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
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