1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2017:
Queridos amigos,
Temos finalmente um tratado científico sobre o pano de fundo dos 15 anos que precedem o início da guerra colonial.
O historiador Valentim Alexandre dá-nos uma moldura impressiva da mística imperial já num quadro de ameaças que despontavam com as latentes independências asiáticas e a crescente preocupação da chegada dos países africanos ao Palácio de Vidro, em Nova Iorque, Salazar sabe que só pode contar os Estados Unidos por causa da Guerra Fria, assiste à desarticulação dos velhos impérios, substituiu fórmulas, ensaiou colonatos, a industrialização. Mas o trabalho de Valentim Alexandre ocupa-se meticulosamente da crise de Goa e de tudo quanto se passa à volta de Macau e Timor.
Proponho a todos vós a leitura imediata deste soberbo documento.
Um abraço do
Mário
Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (1)
Beja Santos
“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017.
O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira. Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande vaga da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colunatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.
Na introdução, Valentim Alexandre apresenta a configuração do império a partir da independência do Brasil, o projeto imperial centrado em África, a importância da legislação de Sá da Bandeira, a disputa por garantir a presença em territórios entre Angola e Moçambique, a ferida no orgulho nacional com o Ultimato, a conferência de Berlim e o imperativo da ocupação dos territórios, tarefa que irá prolongar-se por cerca de três dezenas de anos. O comentário do autor é pertinente:
“No seu conjunto, este processo consolidou o império, permitindo a extensão da soberania lusa e a ação do respetivo aparelho colonial a zonas até então não tocadas e reduzindo o perigo de intromissão a de outras potências. No entanto, tal como finalmente se constituiu, o sistema colonial português sofria de um pecado original – a sua dependência de uma metrópole débil, economicamente atrasada, de fracos recursos financeiros, sem dúvida o elo mais vulnerável de entre as potências imperiais europeias”.
Chegados ao século XX, Portugal é alvo de acusações contra a “política indígena”, designadamente na questão do trabalho forçado: Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, sobretudo, eram o centro das atenções. Ciente das ameaças de partilha dos territórios africanos, cobiçados pela Alemanha, Portugal entra na primeira guerra. Na Conferência de Paz de 1919, assegura-se o império. Segue-se um período marcado pelo fracasso de planos de desenvolvimento rápidos do Ultramar. Com a queda da primeira república e com a ascensão do impulso nacionalista chega-se ao Ato Colonial, assim caraterizado pelo autor:
“Tratava-se de reafirmar de forma solene a soberania portuguesa no Ultramar, em documento com valor constitucional, dando-lhe um caráter permanente, numa altura em que se agudizavam as tensões com a Sociedade das Nações sobre a questão do trabalho indígena”.
E chama igualmente à atenção para a substância do artigo segundo:
“É da essência orgânica da nação portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendem”.
O regime de Salazar vai estar atento a novas investidas, a Alemanha de Hitler sonha retornar a África o autor comenta:
“Para finais de 1937, o governo britânico tinha por certo que a melhoria das relações com a Alemanha passava pela revisão da partilha colonial, abrangendo os territórios belgas e portugueses em África”.
Estas ameaças desapareceram com a derrota alemã, mas emergia outra, a descolonização da Ásia, primeiro, e de África, depois. É este o período analisado: 1945 a 1960. Porque tudo vai mudar a partir de 4 de Fevereiro de 1961.
É já durante o conflito da II Guerra Mundial que o regime de Salazar se inquieta com sinais eloquentes: a rutura nos sistemas coloniais da Holanda, Bélgica e França com a rápida ocupação dos exércitos alemães em 1940, em Vichy a França ocupada procura zelar pelos seus territórios ultramarinos, mas na Indochina houve bases japonesas e a África Equatorial Francesa tomaram partido do General de Gaulle; em 14 de Agosto de 1941 aumenta a inquietação com a “Carta do Atlântico” onde Roosevelt e Churchill deixaram claro que no futuro cabia aos povos escolherem a sua forma de governo, devendo ser restaurados os
“direitos soberanos e o autogoverno daqueles que dele haviam sido privados pela força”. Não era claramente preocupante, sê-lo-á depois, no acesso da descolonização.
Apercebendo-se desta linha dominante da política externa norte-americana, Salazar volta-se para a Grã-Bretanha, só que o império britânico está a caminho da sua desarticulação. E assim chegamos à Carta das Nações Unidas, irão começar as dores de cabeça para a defesa do império português.
Salazar pôde contar com um elemento atenuante: a Guerra Fria. Washington e Moscovo assumiam, ao princípio uma posição anticolonialista, embora partindo de pressupostos diferentes. Os EUA, após a guerra, queriam conter o comunismo e simultaneamente ganhar a confiança junto dos países recentemente saídos de situações coloniais. Os EUA não podiam interferir no que se passava no Norte de África: Marrocos, Tunísia, Argélia, o Egipto. Muitas centenas de milhares de homens tinham sido enviados a combater na Europa, no Norte de África ou na Ásia, em nome da França ou da Grã-Bretanha. Várias cidades de África – Cairo, Dakar, Lagos, Freetown e a Cidade do Cabo, entre outras – serviram de pontos de apoio militar. Na Grã-Bretanha e na França estudavam e formavam-se africanos que irão rapidamente reivindicar a independências das colónias. Aos poucos, estas potências coloniais foram aceitando as independências.
Urgia, pois, reavivar a retórica imperial, melhorar as condições de vida dos timorenses e refazer os equipamentos destruídos pelos japoneses, manter uma relação aceitável com os comunistas chineses, que não reivindicavam nem Macau nem Hong Kong, ensaiou-se uma manobra de afetividade com a União Indiana, e no caso africano procurou-se melhorar a presença missionária e tornar a mística imperial como vetor ideológico incontestável.
Marcello Caetano é ministro das Colónias. Valentim Alexandre termina assim este capítulo:
“As atenções do governo de Lisboa, nos anos do após-guerra, centraram-se sobretudo no povoamento branco e no fomento da economia, que tinha finalmente condições para arrancar. No imediato, as ameaças à integridade do Império situavam-se no Oriente, dada a evolução política desta parte do mundo, com o ataque generalizado às posições europeias”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de setembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17794: Bibliografia de uma guerra (81): “A Guerra Civil em Angola - 1975-2002”, por Justin Pearce; Tinta da China, 2017 (Mário Beja Santos)