quarta-feira, 26 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25685: Historiografia da presença portuguesa em África (429): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
A partir da circunstância de ter comparecido a uma homenagem dedicada a João Barreto pelo seu neto Aires Barreto e historiador Valentino Viegas, que ocorreu na Casa de Goa, deu-me para procurar conhecer melhor a atividade deste facultativo que veio de Margão para Bolama, e tudo leva a crer que teve um comportamento admirável, de tal sorte que quando partiu para Lisboa foi tratado como cidadão de mérito bolamense. Só encontrei dois trabalhos a que o seu nome está ligado, este relatório sobre a doença do sono, onde a tendência para a investigação histórica já é patente, a ponto, como aqui se faz notar, ele parece um historiador a descrever a guerra do Forreá, e dá razões quase de caráter sociológico para a localização da doença do sono; e outro trabalho que é o primeiro que se escreveu acerca da craniometria dos indígenas da Guiné Portuguesa. Se algum leitor conhecer outra obra de João Barreto, peço-lhe o favor de me informar.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1)

Mário Beja Santos

O primeiro trabalho que se conhece de João Barreto é o seu relatório apresentado em 1927 à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene, será publicado pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama, em 1928. Ele é diretor do laboratório de análise do Hospital Civil e Militar de Bolama. Barreto faz parte de uma missão que procedeu a estudos que tinham por fim averiguar se a doença do sono existia, ou não, entre as populações indígenas da colónia; e, ao mesmo tempo, praticar a vacinação antivariólica e proceder a inquéritos sobre outras doenças tais como lepra, filarioses, bilharzioses, etc. Barreto trabalhava com outro facultativo, Fernando Leite Noronha, andaram durante algumas semanas na circunscrição de Buba e concluíram que a moléstia do sono existia entre os indígenas de uma forma endémica. Escreverá mesmo que a extensão da tripanossomíase era enorme. Começa por informar que a referência mais antiga que encontrou da doença do sono na Guiné vinha num relatório enviado em 1885, da autoria de João Pedro Esmael Moniz, descrevendo três moléstias tropicais: a tripanossomíase, a uncinária e a bilharziose. Dirá depois que irão encontrar situações de anasarca, anemia palustre, caquexia palustre, disenteria crónica, doença do sono, febre perniciosa, febre renitente palustre e febre biliosa hematúria. Barreto faz um vasto reportório de informações retidas de diferentes serviços sanitários, à escala internacional.

Deverá ter incomodado os decisores políticos da época ao dizer coisas como estas: “Pode dizer-se que, até aqui, a função dos médicos na Guiné se tem limitado a assistência clínica à população civilizada e pouca aos indígenas. A parte puramente de investigação científica tem sido bastante descurada, há pouco mais do que a higiene e o saneamento da colónia.”

A missão médica começou os trabalhos em meados de maio de 1927, visitaram primeiramente povoações indígenas da ilha de Bolama, uma inspeção superficial a Mancanhas, mas a repartição de saúde deu instruções para marcharem imediatamente para Buba. “No desempenho das nossas funções clínicas tivemos conhecimento de três casos de lepra na ilha de Bolama, casos de elefantíases, admitia-se haver casos de tuberculose e não se encontraram casos de bilharziose.” Visitaram em Buba quase todas as tabancas, procedendo à inspeção médica dos indígenas para a verificação clínica da doença do sono, elefantíase, lepra e qualquer outra doença suspeita; fizeram colheitas de sangue, procedeu-se à vacinação antivariólica e à captura de insetos hematófagos, em especial, glossinas.

João Barreto não deve ter resistido à ideia de que cabia ali lugar apresentar dados de investigação histórica, dado o quadro demográfico da região em análise, a circunscrição de Buba, quis fazer a quem o lia um relato da história recente, vale a pena lê-lo com atenção:
“Entre os diferentes fatores que podem contribuir para a despopulação de um território, cremos que na circunscrição de Buba deveriam ter atuado dois mais importantes: um ligado à política e à administração indígena, e outro, à insalubridade da região. É de data recente a infiltração dos Fulas-Forros entre os Biafadas do Corubal. Tendo-se estabelecido pacificamente como colonos, tributários daqueles, os Fulas foram aguardando uma ocasião oportuna para se libertarem dos seus senhores e essa ocasião foi-lhes proporcionada por um régulo Biafada que solicitou auxílio dos Fulas para castigar a rebeldia da tabanca de Bacar Guidali, construída em 1852 por uma fidalga Biafada. Os Fulas-Forros não só prestaram auxílio na destruição da tabanca referida, mas acabaram por expulsar os Biafadas de uma e de outra margem do Corubal, organizando um regulado independente a que deram o nome de Forreá, isto é, terra de liberdade.
Mas no intuito de satisfazer os principais cabos de guerra, a região foi dividida entre os chefes, Bacar Guidali, Bacar Demba (eleito régulo), Sambel Tombon e Ogô Maná, de que resultou, como era de prever, uma série interminável de lutas e rivalidades.

Alguns comerciantes portugueses estabelecidos de 1874, na margem direita do rio Bolola, lembraram-se então de, para garantia das suas vidas e haveres ameaçados, pedir ao Governo de Bissau uma força armada em 1879, datando desse ano o estabelecimento de presídio militar de Buba.
Não tardou, porém, que as dissidências entre os Fula-Forros, Fulas-Pretos, Futas-Fulas e Biafadas destruíssem esta relativa prosperidade. Desde 1880 a 1890, poucos meses decorreram sem que os comandantes militares de Buba tivessem de registar assaltos às tabancas, raptos de mulheres, roubos de gado, mortos, assassinatos e guerras, entre as diversas tribos capitaneadas por Bacar Guidali, Paté Coiada, Paté Bolola, Daman Iaiá e outros. Essas lutas, pondo a região toda em estado permanente de guerra, acabaram por dizimar uma grande parte da população pela morte, fome e fuga, e só tiveram fim depois da derrota de Paté Coiada por intervenção do Governo português. Pode-se, por isso, dizer que há pouco mais de 20 anos esta região entrou num período de normalidade.
Os factos que acabamos de expor parece-nos terem sido causa principal dos despovoamento e abandono desse território aliás fértil.”


E muda de linha de observação, temos agora o médico tropicalista: “Há nesta região um outro facto que chama desde logo a atenção do observador: é o grande número de crianças portadores de poliadenites e de cicatrizes da extração de gânglios submaxilares. As adenites suboccipitais observadas nessas crianças poder-se-iam em grande parte às dermatoses do couro cabeludo. Quanto à hipertrofia dos gânglios cervicais e submaxilares observada em 80% das crianças examinadas, não nos foi fácil encontrar uma explicação plausível e parece-nos que este assunto tem de ser estudado demoradamente. Os indígenas atribuem-na invariavelmente à doença do sono. Até que ponto é verdadeira esta hipótese?”

Barreto procura uma explicação para esses fenómenos, há um facto merecedor de atenção, como ele pretende analisar:
“Dentro da colónia da Guiné notam-se duas regiões em que o decrescimento da população de acentua progressivamente, não tendo até hoje quaisquer medidas de ordem administrativa conseguido evitar o seu lento abandono e despovoamento.
Estas zonas estão situadas uma ao norte do rio Cacheu, compreendendo quase todas a circunscrição de S. Domingos, e outra, entre as sedes administrativas de Buba e Cacine, abrangendo os territórios banhados pelos rios Bolola, Tombali, Cumbijã e Cacine. Ora, é precisamente nestas duas zonas desabitadas pelos indígenas que a produção e desenvolvimento das glossinas parece ter atingido o máximo da sua intensidade; e essa aparição exagerada da mosca, quer a consideremos como mera coincidência quer como elemento causal do despovoamento não é de molde a favorecer a fixação do indígena nem tão pouco dos seus rebanhos, pela facilidade da transmissão das tripanossomíases animais, podendo ser que este último facto tenha levado os indígenas a procurarem de preferência localidades menos visitadas pelas glossinas.”

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Mapa étnico da Guiné, seguramente enviado por João Barreto aos seus colegas
Crânios enviados por João Barreto para o trabalho de equipa, tratou-se de um artigo em homenagem ao professor J. Leite Vasconcelos

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 19 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25659: Historiografia da presença portuguesa em África (428): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão


Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução) > c. 1970/73 > O José Àlvaro Almeida de Carvalho, diretor do departamento de trabalhos externos da empresa L. Dargent Lda. Aqui ainda no início da montagem do tabuleiro da ponte...



Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução) > 25 de dezembro de 1973  >

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Conheço o José Álvaro Almeida de Carvalho, da Lourinhã, é meu conterrâneo, cantor, autor de fados (pelo menos uns 26...) e exímio tocador de guitarra. 

Durante muito tempo tocou numa velha casa de fados, o "Cantinho da Amizade",  escondida, ali na Rua da Cruz da Carreira, 38, na colina de Santana, ali perto do Campo dos Mártires da Pátria. (Vd. aqui página no Facebook)

Quadro técnico superior, com uma larga experiência no setor da metalomecânica pesada, reformado, vive na Praia da Areia Branca. Aos fins de semana, encontramo-nos no VIGIA - Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca. Conversa puxa conversa, vim a saber que tinha também estado na Guiné, em 1963/65, tendo passado por Bissau, Olossato, Catió e Ilha do Como (tendo inclusive participado na Op Tridente, dando apoio de artilharia).

Com os seus 85 anos (n. 1939), tem uma ótima cabeça e é grande contador de histórias. É uma apaixonado pela vida. E tem um riquíssima história de vida, que gosta de partilhar com os outros.

Por outro lado, ele também em comum comigo o conhecimento de Angola, onde viveu e trabalhou. Estava lá quando se deu o 25 de Abril. A sua empresa, a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, fez a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola.

A ponte do rio Cuanza (que alguns angolanos grafam como Kwanza), perto da foz, e que servia de ligação entre os antigos distritos (hoje províncias) de Luanda e Bengo, foi construída entre 1970 e 1973. O projeto é do eng. Edgar Cardoso. Fica a 75 km da capital.

Construída em aço e betão, esta ponte também conhecida como a ponte da Barra do Cuanza, tem em 400 metros de tabuleiro com 47 metros de altura, dois vãos externos de 70 metros e outro com 260 metros. O dono da obra na altura era a Junta Autónoma de Estradas de Portugal (JAEP).

O Zé Álvaro viveu, então, com a família (esposa e duas filhas), em Luanda no bairro da Sagrada Família, enquanto decorreu a obra (os trabalhos da empresa foram dados por comcluídos em março de 1974). 

Pouco tempo depois do 25 de Abril voltou a Lisboa. Continuou a ir a Angola, sempre que era preciso... Entretanto, conheceu outras empresas, a começar pela Sorefame: é, por isso, um ator e uma testemunha privilegiada das grandezas e misérias da nossa indústria metalomecânica pesada, cujas empresas, muitas delas, se afundaram com o pós-25 de Abril, as mudanças económicas, sociais e políticas operadas, a par da crise financeira, bem como da descolonização e, depois, com a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), já em1986...

Com Angola, a Guiné, o fado... e a história do trabalho e da indústria, como interesses em comum, temos sempre tema de conversa, enquanto passamos tardes agradáveis na varanda do VIGIA, que é reconhecidaente umas das mais fantásticas para se assistir a um pôr do sol sobre o Atântico: tem uma vista de 180 graus, do cabo Carvoeiro e Berlengas a norte/noroeste, e Santa Cruz, a sul...

2. O que eu não sabia é que o Zé Álvaro também era um talentoso escritor, tendo inclusive já publicado, em 2019, na Chiado Books, um livro autobiográfico ficcionado, o "Livro de C" (710 pp.), disponível em papel e em ebook. É um livro difícil de catalogar, logo à primeira leitura... A editora classificou-o como "não ficção".

O autor cedeu-me uma com cópia digital do manuscrito, que consta de duas partes. Trata-se de uma nova versão, aumentada, revista e melhorada.

O autor é o José Carvalho, o título mantém-se o mesmo, Livro de C. Em formato pdf, está dividido em dois volumes: volume 1 (328 pp) e volume 2 (357 pp.).  É um livro com múltiplas narrativas, desfasadas no tempo e no espaço. A separá-las, o autor teve a ideia de inserir fados em formato mp3, e acompanhados com a respetivas letra. 

Diz ele: cada volume é "reconstruído com alguns fados gravados, ao longo da vida, aqui inseridos como separadores e ornamento de narrativa".  Parte das letras (e algumas músicas) são  da sua autoria. Teremos ocasião de voltar a falar deste projeto singular, original, onde há lugar também para as memórias de guerra.

O Zé Álvaro aceitou o meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande e autorizou-me a reproduzir excertos do seu manuscrito, entretanto, revisto e aumentado. (Não conheço o livro em papel, mas ele vai-se oferecer um exemplar, autografado.)

Falaremos mais, oportunamente, sobre este projeto literário  e o autor. C (inicial de Carvalho) era a letra do alfabeto pelo qual o pai, comerciante, o tratava. "Livro de C" tem, pois, um cunho marcadamente autobiográfico. Mas o livro é mais do que isso.



Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > s/l > s/d > c- 1963/65 > Fotos, sem legenda, do ex-alf mil art, José Álvaro Almeida de Carvalho, BCAC, Pel Art obus 8.8, m/943, que esteve 14 meses adido ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66). Em Catió, seguramenyte que conheceu o João Sacôto, da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66).


Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. O José Álvaro Almeida de Carvalho foi alferes miliciano de artilharia, pertenceu ao BAC (1963/65), esteve na Guiné, adido ao BCAÇ 619 (14 meses em Catió). Mas, antes, em Bissau também pertenceu a uma companhia de intervenção, de que comandava um pelotão, operando em Bissau e arredores. Esteve destacado no Olossato, com o seu pelotão de infantaria.  (E fez um assalto ao K3!).

Veio originalmente em rendição individual. Quando essa companhia de caçadores, acabou a comissão, o Zé Álvaro ficou no QT, em Bissau, a aguardar nova colocação. 

Sei que, nessa altura,  também pensou em oferecer-se para os comandos do CTIG, conheceu o Saraiva e o Godinho, do tempo do nosso Virgínio Briote. É possível até que tenham estado juntos, o Briote e o Carvalho.

Mas foi no sul, na região de Tombali, em Catió, como oficial de artilharia do BAC (Bateria de Artilharia de Campanha, obus 8.8 cm m/943) que ganhou a sua cruz de guerra de 3ª classe. (Curiosamente, o seu primo direito, meu conterrâneio, vizinho e amigo de infância, João Patrício, viria a ser  colocado em Catió, dez anos depois, como alf mil, CCS/BCAÇ 4510/72, jun72/jul74)(um batalhão que só tinha comando e CCS, não dispunha de subuniddaes operacionais orgânicas).

Cruz de Guerra, 3ª Classe Alferes Miliciano de Artilharia JOSÉ ÁLVARO ALMEIDA DE CARVALHO | BAC | GUINÉ

Transcrição da Portaria publicada na O.E. Nº 15 - 2ª série, de 1965.

Por Portaria de 29 de Maio de 1965:

Condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª classe, ao abrigo dos artigos 9º e 10º do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de Maio de 1946, por serviços prestados em acções de combate na Província da Guiné Portuguesa, o Alferes Miliciano de Artilharia, José Álvaro Almeida de Carvalho, do Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné.

Transcrição do louvor que originou a condecoração. (Publicado na OS nº 42, de 21 de Maio de 1965, do CTIG):

Louvo o Alferes Miliciano de Artilharia, José Álvaro Almeida de Carvalho, da BAC, porque, durante o período de catorze meses em que esteve destacado no Batalhão de Caçadores nº 619, foi sempre um Oficial zeloso, dedicado e muito competente, salientado-se a sua acção, principalmente, no campo operacional, em que foi utilíssimo o apoio, sempre eficaz, que soube dar com o seu pelotão em todas as operações em que interveio, nomeadamente, nas "Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate", contribuindo assim, dentro do seu âmbito, para o prestígio da Arma a que pertence.

Várias vezes se ofereceu para acompanhar o pessoal infante em operações, deslocando-se às zonas de contacto, para assim ver, "in loco", novas posições para as suas bocas de fogo, demonstrando a sua nobreza de carácter, a sua coragem e o desprezo pelo perigo.

Contribuiu imenso e com o seu pessoal, nunca se poupando a esforços, para o aperfeiçoamento dos trabalhos de organização do terreno e defesa do aquartelamento.

Pelas qualidades apontadas, este Oficial tornou-se digno de apreço e estima dos seus superiores e subordinados.

Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 5.° volume: Condecorações Militares Atribuídas, Tomo II: Cruz de Guerra (1962-1965). Lisboa, 1991, pág. 475.


4. Finalmente, e embora nos falte uma foto mais atual, e legendas para as fotos do seu álbum (que é diminuto), eu quero apresentar o José Álvaro Carvalho como o grão-tabanqueiro nº 890. É o seu lugar, sentado, à sombra do nosso poilão. 

Passa a ser mais um dos n0ssos "veteraníssimos", um dos poucos (com o Mário Dias e o João Sacôto, por exemplo) que participou na Op Tridente (jan / mar 1964).

Guiné 61/74 - P25683: Timor-Leste, passado e presente (9): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte I






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia).



1. José dos Santos Carvalho foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro da parte dos australianos e holandeses, e depois dos japoneses). Médico de 2ª classe, exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, 

O nosso amigo e camarada, membro da Tabanca Grande,  cor art ref Morais da Silva, descobriu, na Internet Archive, uma cópia, em formato digital, do  livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial". originalmente reproduzida  em;

https://archive.org/stream/VidaEMorteEmTimorDuranteASegundaGuerraMundial/VidaMorteTimor_djvu.txt 

O livro foi digitalizado e carregado, em 2010, no Archive.org,  por um sobrinho do autor ("Fernando in Lisbon"). Na dedicatória  lê-se: "Ao Fernando, com um abraço, muito amigo, do tio, José. Lisboa, 2/v/72".

A obra está disponível no Archive.org em vários formatos e  é apresentada como sendo do "domínio público". 

(Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser enconttrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico d
de Investigação Tropical.)

 
Sinopse:

(...) Testemunho de um médico que se encontrava a prestar serviço em Timor quando se deu a invasão japonesa durante a segunda guerra mundial. Além de ser uma descrição emocionada das atrocidades alí­ cometidas, este livro é também uma homenagem a todos aqueles, Portugueses e Timorenses, que resistiram à ocupação, muitas vezes com o sacrifí­cio da própria vida, unidos numa causa comum - a libertação de Timor. Como médico, o autor incluiu também as suas notas sobre a situação sanitária no território, durante e após a invasão.

Outros livros deste autor que podem ser encontrados no archive.org: 

  • "A Santa Bárbara de Cimbres (1959)"; 
  • "Iconografia e Simbólica do Polí­ptico de São Vicente de Fora (1965)"; 
  • "Os Painéis da Confraria de São Roque Expostos no Museu de São Roque em Lisboa (1974)"; 
  • "O Retábulo da Conceição (Benção Nupcial a D. Manuel e D. Leonor) Exposto no Museu de São Roque em Lisboa"; 
  • "O Tríptico da Santa Casa da Misericórdia do Funchal - A Tapeçaria do Templo de Latona do Museu de Lamego"; 
  • "Quatro Painéis da Confraria do Salvador Provenientes do Mosteiro de São Bento Expostos no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa". (...)
É escassa a informação, na Net, sobre este português que teve o azar de estar em Timor, em 1942... Julgamos que ele fosse beirão (talvez de Lamego, distrito de Viseu), devendo ter nascido no início da República. 

Outros trabalhos do autor (que descobri na PorBase):

  • O políptico de S. Vicente de Fora e a Iconografia Médica Portuguesa do século XV / por José dos Santos Carvalho. Lisboa : [s.n., 1968.
  • A Sé Catedral de Lamego / José dos Santos Carvalho. Lamego : Paroquial da Sé : Gráf. de Lamego, 1966.

O livro que escreveu sobre Timor,  baseia-se nas suas recordaçõe e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio.

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde (pp. 142-194), que têm igualmente interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor, relatórios esses que ele nunca deixou de fazer, anualmente, apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico de 2ª classe, chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene.

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, foi escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 




2. Vamos publicando notas de leitura e excertos do livro, de modo a permitir conhecer melhor este período da história de Portugal, em que Timor foi o único pedaço do Império que foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, na altura da II Guerra Mundial (entre dezembro de 1942 e setembro de 1945).


(...) Explicação Prévia (pp. 3-9)

 Todos os portugueses que então aí viviam, fossem eles timorenses, metropolitanos, goeses, madeirenses, africanos ou macaenses, estiveram sujeitos a prolongado e pertinaz suplício que estóica e patrioticamente suportaram, apesar de terem sido despojados de qualquer meio de comunicação com o mundo e de defesa contra a doença e, os que foram obrigados a reunir-se numa zona de concentração, submetidos a privações extremas de alimentos, medicamentos, artigos de vestuário, de higienee de conforto ,etc, numa palavra, de quase todo o essencial a uma via saudável e decente.


O autor esclarece que não foi apenas uma invasão estrangeira mas duas, as que vieram perturbar "a perfeita ordem e a serena paz" (sic)  em que até então ali se vivia:

(...) Duas invasões por tropas estrangeiras vieram destruir a perfeita ordem e serena paz que em Timor desfrutavam portugueses de diversas naturalidades e crenças, mas unidos fraternalmente num mesmo ideal patriótico e de amor pela fascinante terra em que haviam nascido ou trabalhavam.

Deram o exemplo de desprezo pela soberania de Portugal as forças australiano-holandesas que desembarcaram em Díli a 11 de Dezembro de 1941, não obstante a firme e decidida oposição do governador Ferreira de Carvalho, esse português de ouro do mais puro quilate, que, sem possibilidade de se impor pelas armas, energicamente protestou contra tão aleivosa afronta a um país neutral, aliado de Inglaterra, ainda mais!

Mas, não ficou por aí o atropelo à autoridade portuguesa. Já instalado em Díli, o tenente-coronel holandês Van Stratten, comandante das forças aliadas, impôs ao Governador a deslocação para longe da cidade do aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, única força válida de que os portugueses dispunham, com a ameaça de a mandar desarmar, se assim não fosse, dando como motivo de tão vexatória decisão, o ter recebido informação de que a companhia se preparava para as atacar! (...)

Apesar de tudo, o comportamento das duas tropas invasoras não são comparáveis, sendo o autor muito mais  crítico do projeto imperalista e totalitário dos japoneses, ao mesmo tempo que não perde a oportunidade de exaltar o portuguesismo das gentes de Timor e marcar o seu alinhamento pela política de "neutralidade" do país face ao conflito mundial: 


(...) Não teve esta invasão efeitos maléficos de monta sobre a vida material da população, porém, da levada a efeito pelos japoneses resultaram inúmeras e variadas consequências funestas pois certamente se aperceberam de que o desenvolvimento em Timor da ideia da Grande Ásia Oriental (eufemismo com que encobriam o seu desígnio de se tornarem senhores de toda ela) somente poderia realizar-se na condição de serem profundamente abaladas a fé patriótica, assim como a amizade e a confiança dos naturais timorenses nos seus irmãos de álém-mar.

Para atingirem esse objectivo dedicaram-se os nipões a vexar duramente estes últimos e a procurar desprestigiá-los perante os nativos da ilha, servindo-se dos meios mais desleais e hipócritas.

A propaganda contra Portugal era prática sistemática dos segundos invasores que não escondiam o desprezo do «Império Imperial do Grande Japão» pelos europeus que tão fácil e surpreendentemente até então haviam conseguido derrotar e quase aniquilar.


 (...) Sabiam bem que os soldados australianos e holandeses refugiados no interior da ilha e que seriamente os molestavam e dizimavam quando saíam de Díli, somente podiam aguentar-se na guerrilha que faziam por serem fornecidos de alimentos e ajudados por todos os meios não só pelos timorenses como por todos os nativos doutras terras, havendo somente a diferença de que a maior parte o faziacom as devidas cautelas, aparentando neutralidade, ao passo que alguns outros tomavam atitudes tão abertamente parciais que nos comprometiam, sem necessidade, perante os japoneses. (...)

 
A estratégia dos japoneses  era claramente a de segregar e separar timorenses e não-timorenses, se não a bem, a mal, pelo terror.  Sabe-se, por outro lado, que a guarnição militar de Timor tinha um efetivo total de três oficiais, sete sargentos e cerca de 3 dezenas de  cabos metropolitanos, mestiços e nativos;  e não mais de 3 centenas de soldados do recrutamento local, mal treinados e pior equipados.

(...) Continuando na sua obra demolidora, recrutaram no Timor Holandês centenas de indígenas com os quais, enquadrados por árabes e chineses, constituíram as famigeradas "colunas negras". Ora, esses timorenses da parte ocidental da ilha odiavam francamente os europeus, avaliados pelo padrão holandês que nunca conseguira, nem provavelmente pretendera, captar a sua amizade, o que bem fácil seria, a exemplo da parte portuguesa, se os considerassem, em tudo, como seres humanos seus iguaise não como espécimes duma raça inferior.

Lançadas as "colunas negras" pelo interior da ilha, sempre veladamente amparadas pela tropa nipónica que punha todo o cuidado em não se misturar com elas, por toda a parte se registaram assassinatos de pessoas indefesas, violências e depredações de toda a espécie.

As autoridades portuguesas prontamente reagiram, seguindo para as regiões afectadas expedições constituídas por militares e por voluntários civis, com o fim de castigar os culpados e restabelecer a ordem. Heroicamente se comportaram esses valentes e destemidos homens, tendo morrido em combate o cabo Paulo Moreira, o soldado Abel Soares dos Santos e o civil, António Fernão Magalhães, porém a sua missão foi integralmente cumprida. (...)

E aqui se conta como uma dessas "colunas negras", oriunda de Atambua,  atacou à traição o aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, em 1 de outubro de 1942, provocando aquilo a ques e chamou a "chacina de Aileu" (Aileu ficava a sul de Dili, vd. mapa):

 (...) Uma "coluna negra" formada por timorenses da cidade de Atambua, na parte holandesa, assaltou o aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, então situado em Aileu. Ataque traiçoeiro, a coberto do escuro da noite, não permitiu uma defesa eficaz, morrendo, combatendo, os cabos Evaristo Madeira e Júlio António da Costa, os soldados Álvaro Henrique Maher e João Florindo e vários soldados timorenses.

O comandante da companhia, capitão Freire da Costa, que com sua esposa, o médico dr. Arriarte Pedroso, o secretário de circunscrição Gouveia Leite e o chefe de posto auxiliar António Afonso, se encontravam reunidos na residência do comandante, suicidaram-se para não caírem nas mãos dos selvagens que atacavam a casa e lançavam fogo às suas dependências, os quais, certamente, os torturariam e sujeitariam aos piores vexames. (...) 


O antigo palácio dos governadores, em Lahane
datando de 1933, em estilo art déco, colonial. 
Restaurado.
Foto: cortesia de Wikimedia Commons

Na impossibilidade comunicar com 
o  Governo central (cuja política , de resto, era a da "estrita neutralidade" 
e de não-confrontação  com as tropas nipónicas de modo a garantir a "manutenção da soberania portuguesa", a todo o custpo), enfim, com a certeza de que nunca viriam  reforços de Lisboa (via Moçambique ou de Macau), e face ao número crescente de acções hostis contra os portugueses e a populução autóctone,  o Governador, o capitão Manuel Abreu Ferreira de Carvalho (1940- 1945) não teve outra solução se não aceitar a vontade do ocupante, que era a de separar e concentrar os não-timorenses nas povoações de Lahane  (na encosta sobranceira a Dili),  Liquiçá  e Maubara (a oeste de Dili) (vd. mapa). 

(...)  Foi nestes campos de detenção que "se passaram três infindáveis anos de permanente terror, fome e extrema miséria em que nos tornámos 'esqueléticos, quase irreconhecíveis à primeira vista', tal como nos encontrou o Dr. Cal Brandão, no fim da guerra, voltando da Austrália." (...)

 Mas foram esses esqueletos ambulantes, verdadeiros fantasmas de si próprios, que seguiram impavidamente para o interior da ilha onde, desde há anos, os nipões faziam, certamente, propaganda assassina contra eles! (...)

Refira-se que o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973) era um advogado do Porto, deportado para Timor em 1931, que se irá mais tarde juntar aos australianos na resistência ao ocupante japonês.

Na hora da libertação, três anos e meio depois, "as bandeiras verde-rubras logo surgiram por toda a parte, retiradas dos esconderijos onde ciosamente haviam sido resguardadas pelos timorenses":

(...) No dia 19 de setembro de 1945, data a todos os títulos memorável na nossa história, a bandeira da Pátria desfraldava-se orgulhosamente em todas as localidades importantes eem muitas povoações timorenses enfim libertadas da opressão estrangeira.

Três dias depois amarou na baía de Díli um hidroavião australiano transportando um representante do brigadeiro Dyke que em Koepang já havia recebido a rendição das tropas japonesas. (..:)

(...) A 27 de Setembro ancoraram na baía de Díu os avisos Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco, com tropas vindas de Lourenço Marques. (..)

O autor, nesta síntese dos anos que passou em Timor, faz o balanço das vítimas (subestimado em relação aos timorenses):

(... ) Contaram-se muitas centenas de timorenses assassinados, mortos em combate ou falecidos na prisão e, entre os não-nativos de Timor, pelo menos, trinta e sete assassinados, dez mortos em combate, seis mortos por suicídio, vinte falecidos ao abandono no interior da ilha onde andavam foragidos e oito que miseravelmente acabaram os seus dias no cárcere japonês, vítimas de violências e, sobretudo, da privação de alimentos e da falta de condições higiénicas e de qualquer espécie de assistência na doença. (...)

 Único sobrevivente dos quatro médicos que estavam ao serviço da administração colonial (dois morreram de morte violenta), o dr. José dos Santos Carvalho vai começar a sua narrativa com a sua história de vida, quando em meados de 1940 é colocado em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial". 

Muito resumidamente, descreve-se aqui a verdadeira odisseia que era, para um funcionário colonial,  em plena II Guerra Mundial, chegar, a partir de Lisboa, a um território tão longínquo como Timor, no Sudoeste Asiático:

(i)  o autor não pôde, obviamente,  fazer  a viagem pelo canal de Suez, mas seguir peçla rota o Cabo (cerca de 19,5 mil km até Dili);

(ii) viajou até Lourenço Marques, transportado no vapor "Niassa".

 (iii) na capital de Moçambique teve de  aguardar dois meses (!) até poder embarcar,  num vapor holandês, o "Tasmam",  com destino a Singapura;

(iv) a bordo encontrou outros compatriotas que iam para Timor: o coronel de aeronáutica Jorge Castilho, e o engenheiro Canto Resende, chefe e adjunto da Missão Geográfica de Timor, respetivamente; o dr. Tarroso Gomes, funcionário do serviço da Fazenda;  os funcionários administrativos Botelho Torresão e Silva Marques e o sargento da marinha Luís de Sousa, auxiliar da referida missão geográfica.

 (v) passados dias , embarcaram num "grande e luxuoso navio", o "Op Tèn Noort" que os transportou a Malaca, a Batávia (atual Jacarta) e a Soerabaja:

 (...) Pelas Índias Holandesas notava-se um ambiente febril de preparação guerreira, sendo frequente o encontro de campos de treino onde militares holandeses exercitavam recrutas javaneses. De facto, sentia-se evidente e iminente a ameaça nipónica a Singapura, à Insulíndia e à Austrália, pois os japoneses que há três anos se encontravam em guerra com a China, haviam aproveitado o facto de a França se encontrar manietada pelos alemães e conseguido dos governadores militares da Indochina a sua ocupação militar e levado, logo depois, as suas tropas, de setembro a novembro de 1940, à Indochina do Sul, à Tailândia e ao Cambodja.(...).

 Em Soerabaja estiveram três dias...

(vi) embarcando depois  num pequeno navio, o "Valentijn", que tocou em vários portos das pequenas ilhas de Sonda entre as quais a capital de Bali;

 (vii) em  21 de dezembro de 1940 chegam a Koepang, capital da parte holandesa da ilha de Timor;

 (viii) na noite de 29 fundeavam, finalmente, na baía de Díli; 

(ix) em Timor o autor iria ter apenas um ano de paz.

 (Continua)

(Excertos, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos: MS/LG)

 ____________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25661: Timor Leste: passado e presente (8): Os últimos soldados do império que estiveram prisioneiros do IN, na Indonésia (de setembro de 1975 a julho de 1976): tiramos o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... à Ephemera - Biblioteca e Arquivo do José Pacheco Pereira

terça-feira, 25 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25682: In Memoriam (504): Aurélio Manuel Trindade, ten gen oriundo da arma de infantaria, ref (1933-2024): antigo comandante da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)



Foto da capa  do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010 / 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo era o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/ jul 67]

Na foto acima, da capa, o "capitão Cristo, sentado ao centro, na casa do Zé Saldanha [encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia] . Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o Zé Saldanha" (legenda, pág. 440).  O cap Cristo era nem mais nem menos do que o "alter ego" do cap Aurélio Manuel Trindade, o 10º (e último) comandante da 4ª CCAÇ, desde 1jan61, e o primeiro comandante (de dez!) , a partir de 1bril de 1967, da CCAÇ 6 (Bedana, 1967/74).





1. A morte do ten gen ref, oriundo da arma de infantaria, Aurélio Manuel Trindade, foi-me confirmada por dois dos seus amigos e camaradas, e membros da nossa Tabanca Grande, o cor art ref Morais da Silva e o cor inf ref Mário Arada Pinheiro.


Este oficial general nasceu a 11 de maio de 1933 , faleceu, aos 91 anos, a 12 de junho de 2024.

Temos cerca de duas dezenas de referências ao Aurélio Trindade, que foi comandante da 4ª CCAÇ  e depois CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67)...

Não o cheguei a conhecer pessoalmente, mas o Arada Pinheiro, que muito prezo (a esposa é da Lourinhã), emprestou-me o livro dele (autografado), escrito sobre pseudónimo (Manuel Andrezo), com as suas memórias de Bedanda e dos seus bravos da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, "Panteras à solta"...

Temos transcrito alguns excertos do livro, com a devida vénia, sob a forma de "notas de leituira"...

É mais do que justo fazer este "In Memoriam". Gostaria, inclusive, de lhe "dar honras de Tabanca Grande", a título póstumo (se não houver objeções da família, que não conheço, mas vou incumbir o cor Aradas Pinheiro para obter o OK do filho que lhe deu a triste notícia). 

A partilha das suas memórias de guerra é importante para todos os "bedandenses" (que passaram pela 4ª CCAÇ e depois CCAÇ 6), e para os demais camaradas da Guiné.

À família, camaradas de curso )da Escola do Exército) e amigos íntimos, o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné manifesta os seus mais sinceros votos de condolências. E espera poder continuar a honrar a sua memória, através deste meio (virtual) de partilha de memórias dos antigos combatentes da Guimé.

2. Na realidade, o livro "Panteras à solta" é autobiográfica. Grande parte da narrativa, que segue um fio cronológico,  é constituída por episódios, entrecortados por muitos diálogos, sendo o principal protagonista o cap Cristo, "31 anos de idade, natural da Beira Alta, nascido e criado entre o duro granito da serra do Caramulo". É casado e pai de três filhos. Partiu no T/T Niassa, de Lisboa, em 30 de junho de 1965, com destino ao CTIG. 

Vai em rendição individual. Tem já duas comissões no Ultramar: Índia e Moçambique (donde acabara de regressar há 10 meses). (...) "Vai triste. (...) À sua frente o desconhecido. Sabe apenas que vai para a Guiné onde a guerra é dura. " (...) (pág. 7). 

Chega a Bissau a 5 de julho de 1965. E no dia seguinte, parte de imediato para Bedanda, de avioneta civil, com o cap Xáxa (a quem vai render), para tomar posse como novo comandante  da 4ª CCAÇ. 

O cap Xáxa  (Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares ?) fará as honras da sua apresentação aos militares e aos civis de Bedanda. E rapidamente a guerrilha do PAIGC (e a populaçao sob o seu controlo) vai passar a conhecê-lo e a temê-lo.

As primeiras impressões não foram favoráveis: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos. Nem se sequer se atreveram a praxá-lo, uma tradição muito cara à companhia" (...) (pág. 13).

De acordo com o portal UTW - Dos Veteranos a Guerra da Guiné, o cap inf Aurélio Manuel Trindade comandou, em Moçambique, a CCAÇ Esp 312, antes de ser mobilizado para o CTIG (Onde foi condcorada com a Cruz de Guerra de 2ª classe). Em Angola, e já como major de infantaria, seria o 2º comandante do BCAÇ 3856.

3. De um inquérito que o jornalista Adelino Gomes fez a "13 generais de Abril" (e publicado no "Público", em 2007), selecionámos as seguintes respostas dada pelo general Aurélio Trindade (nascido em 11 de maio de 1933, em Viseu; foi condecorado com 1985 com a Ordem da Liberdade):

(i) tinha 41 anos e era major de infantaria  à data do  25 de Abril de 1974, encontrando-se colocado na EPI, Mafra. 

(ii)  tinha feito 4 comissões de serviço no ultramar (Índia, Moçambique, Guiné, Angola);

(iii) resposta à pergunta sobre o seu apoio ao MFA: 

 "A maior parte de nós estávamos metidos no movimento desde longa data. Majores só estávamos dois, eu era um deles". No 25 de Abirl, a sua atividade operacional foi a de "comandante da unidade" (EPI)

(iv) sobre os protagonistas do 25 de Abril que acabaram por ser prejudicados nas suas carreiras, respondeu:

 "Todos os militares mesmo os que chegaram a generais como eu e o Jorge Silvério [também do Movimento, na EPI] pagam um preço por terem feito o 25de Abril. O preço, foi não me darem o comando de unidades. A mim, que na guerra tive uma companhia condecorada colectivamente por feitos em campanha (há no máximo uma dúzia, em centenas que lá andaram)."

(v) respondendo à pergunta do jornalista: "Quer indicar algum nome que gostava de ter visto no generalato (ou como almirante)?"... Resposta:

"Gertrudes da Silva. É o nº 1 do curso e ainda hoje lhe têm respeito. Pegou numa companhia do RI 14 na noite de 24 e veio por aí abaixo esses 300 quilómetros, até Lisboa, onde tinha uma missão a cumprir e cumpriu-a. Pagou a factura. Dizem que ele é gonçalvista? E os que estiveram ligados ao Mário Soares e ao Sá Carneiro? E à extrema-esquerda? Outro nome a quem não deram comando: Rui Rodrigues. Um homem que é capaz de arrancar com uma companhia e tomar o aeroporto, não pode comandar a Escola? Nos 300 que fizeram o 25 de Abril havias dos melhores oficiais do Exército. Por isso foram capazes de planear e executar aquela missão. O domínio da máquina militar pouco depois do 25 de Abril ficou nas mãos de militares que chamavam 'libertários' aos do 25 de Abril."

(vi) Sobre o antigos combatentes, Aurélio Triandade, fez questão de manifestar ao jornalista "a sua indignação pela forma como têm sido tratado":

(...) Como “oficial, ex-combatente e homem do 25 de Abril”...  Todos os governos têm dito que querem defender os ex-combatentes, “mas não fazem o essencial”, limitando-se a dar-lhes “uma esmola, e a esmola desonra o Estado português”.  (...)  “Os ex-combatentes nunca pediram ao estado uma pensão. O que pediram foi tratamento igual [em relação à contagem do tempo de serviço, quer militares quer os jovens do serviço militar obrigatório que foram para a actividade privada]. Dá-se 150 euros - trinta contos por ano - a um ex-combatente? É uma miséria. É indigno. Ou davam qualquer coisa decente ou não davam nada. Vem agora este governo dizer que só dá aos que precisam. Mas o ex-combatente não precisa de esmolas. Se querem dá-la,  façam-no pela Segurança Social, por exemplo. Por ser combatente, não”. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25564: In Memoriam (503): Lino Bicari (1935-2024) foi a sepultar ontem, no Alvito, Alentejo... "Senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné, e desejo-lhe o descanso eterno" (Arsénio Puim, ex-alf grad capelão, BART 2917, Bambadinca, mai 70/mai71)

Guiné 61/74 - P25681: 20º aniversário do nosso blogue (16): Alguns dos melhores postes de sempre (XI): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte I: a versão de Manuel Traquina (ex-fur mil mec auto, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)




Guiné > Região de Tombali > Contabane > CCAÇ 2382 (1968/70) > Malta da CCAÇ 2382 instalada nma monumental bagabaga (candidato ao concurso O Melhor Bagabaga da Guiné...), nas proximidades de Contabane, uma tabanca e destacamento destruídos na sequência do ataque, de três horas, levado a cabo pelo PAIGC em 22 de junho de 1968.

Contabane foi então abandonado pelas NT e pela população. Mais tarde será feito um reordenamento, mesmo frente ao Saltinho. Por lá passou o nosso camarada Paulo Santiago, quando foi comandante Pel Caç Nat 53 (1970/72). A povoação hoje chama-se Sinchã Sambel.

Foto (e legenda): © Manuel Traquina (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guião da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70), "Por picadas nunca estradas, por estradas nunca picadas"... Um trocadilho bem achado..., ó Zé do Olho Vivo!




1. O Manuel Batista Traquina,
  "ribatejano, escritor e fadista", com vivências ang0lanas, ex-fur mil mec auto, da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70) vive em Abrantes, onde nasceu em 1945.  [foto de 2008 à equerda].   

Podia ter sido apanhado à unha. Ou até ter sido morto. Teve sorte: esteve lá nesse pavoroso ataque a Contabane, em 22 de junho de 1968, e relatou-nos o essencial do que viu e viveu, no seu livro "Os Tempos de Guerra: de Abrantes à Guiné"   (Abrantes, editora Palha de Abrantes, 2009. ISBN 978-972-98796-6-1,228 pp.). A CECA (Comissão para o Estudo das Companhas de África) não faz qualquer referência a este ataque, que reduziu a cinzas Contabane que era até então um importante tampão fula (eixo Contabane - Aldeia Formosa), contra a fúria do PAIGC na região do Forreá.

Beja Santos
e Hermínio Marques

Este episódio de guerra foi recentemente evocado aqui pelo Beja Santos que, no passado dia 17, foi abordado pelo Hermínio Marques, antigo sold cond da CCAÇ 2382, o qual lhe contou como perdeu tod0s os seus haveres há 56 anos, em Contabane.

Ambos estava de passagem pela ilha de Santa Maria. O Hermínio Marques, que vive na América, casado com uma açoriana, reconheceu, no Hotel, o Beja Santos, sendo visita assídua do nosso blogue! (*).


Vamos convidar o Hermínio, que já nos escreveu, a juntar-se a esta tertúlia que é a Tabanca Grande, e onde já cá estão alguns bravos da CCAÇ 2382, a companhia do Zé do Olho Vivo, como o Manuel Traquina, o Carlos Nery, o José Manuel Cancela, o Alberto Ferreira, 
o padeiro, também conhecido por "Geada").



O Ataque a Contabane (**)

por Manuel Traquina

Era o dia 22 de Junho daquele ano de 1968, a Companhia estava na Guiné havia pouco mais de um mês e, ao ser deslocada para a região de Aldeia Formosa, (Quebo) dois pelotões fixaram-se em Mampatá, os restantes bem como o Comando foram deslocados para a aldeia de Contabane. 

Ali parecia respirar-se a paz, a população era numerosa e bastante acolhedora, e como habitual faziam-se alguns patrulhamentos na região, que ficava a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conákri.

Naquela aldeia os militares acomodavam-se nas próprias moranças cedidas pelo chefe da Tabanca. À volta da aldeia tinham sido abertos no terreno algumas valas e abrigos, além de duas fiadas de arame farpado. 

Tudo parecia correr dentro da normalidade, naquela tarde eu próprio com mais quatro militares saímos no Unimog a buscar água do poço que se localizava a curta distância.

Porém, já próximo do anoitecer, um dos elementos nativos que connosco efetuavam um patrulhamento, pisou um engenho explosivo, que lhe deixou um pé seriamente afectado. Este foi o primeiro sinal de que toda aquela paz não era real, o grupo recolheu à aldeia/aquartelamento, era a hora de jantar e na improvisada enfermaria o furriel enfermeiro Chambel com grande dificuldade, tentava encontrar uma veia onde pudesse administrar algum soro ao militar milícia, que com um pé decepado tinha perdido muito sangue.

Entretanto o sargento João Boiça, apercebendo-se da situação, corria de uma ponta à outra da aldeia, não parava de alertar todos para que de imediato se deslocassem para os abrigos, talvez ao tomar esta medida tenha evitado algumas mortes.

Tinha anoitecido e, de repente,  algumas explosões deram inicio a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à morança onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças arrastou-se até á porta e, no escuro,  sem que nos apercebesse-mos desapareceu rastejando, só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.

Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia reduzida a cinzas mais parecia um inferno. Mo final foi uma forte trovoada que, transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar. 

Não tenho dúvidas de que nós,  os militares,  que naquela tarde fomos à água, pasámos muito perto do local onde o inimigo preparava o ataque e só não fomos feitos prisioneiros porque o objetivo era o ataque. 

Apesar do grande aparato e grande potencial de fogo, sofremos apenas três feridos,  dois dos quais de maior gravidade. Porém, quase todo o património da companhia ali ficou reduzido a cinza, os rádios, os géneros alimentícios, o equipamento de enfermagem, tudo ali ficou carbonizado, grande parte dos militares ficaram apenas com a roupa que tinham vestida. 

Na manhã seguinte um helicóptero evacuou os feridos, alguns militares apressaram-se a escrever um ou outro aerograma meio queimado e enlameado que foi entregue ao piloto do helicóptero, era a parte psicológica a funcionar, pretendiam partilhar aquele momento de desânimo com alguém do coração.

Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram. 

Já no termo da comissão viemos encontrar na cidade de Bissau o milícia que, ao pisar a armadilha,  foi amputado de um pé, e que naquela cidade tentava sobrevier como engraxador de sapatos.

Neste agora passado dia 22 de junho de 2008, ao completarem-se quarenta anos sobre este ataque, quero homenagear os dois camaradas mortos,  não neste ataque, mas noutros que se seguiram, furriel Ramiro de Sousa Duarte e o soldado Elidio Fidalgo Rodrigues, pertencentes a esta Companhia.

 Quero também saudar todos os militares da CCAÇ 2382, estou convencido que todos os que viveram este acontecimento o recordam e jamais esquecerão aquelas horas difíceis ali vividas. (***)

Manuel Batista Traquina
Ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Contabane (1959 > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Contabane, a sul de Saltinho e do rio Corubal, a caminho da fronteira... A nordeste, Quirafo, também de trágica memória para as NT (abril de 1972).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  22 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25674: (De) Caras (209): Hermínio Marques, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 2382: "Vou contar-lhe como perdi as minhas coisas em Contabane" (Mário Beja Santos)



Vd.poste anterior: 4 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25476: 20.º aniversário do nosso blogue (14): Alguns dos melhores postes de sempre (X): O fatídico dia 12 de outubro de 1970: a emboscada de Infandre, Zona Oeste, Setor 04 (Mansoa) (Afonso Sousa, ex-fur mil trms, CART 2412, 1968/70)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25680: Notas de leitura (1703): O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Mais uma surpresa, uma bibliotecária dedicada deixou-me em cima da mesa de trabalho na Sociedade de Geografia de Lisboa uma revista que desconhecia totalmente, e de que não encontro referências no google, a Cartaz, pelo título palpita-me tratar-se de uma publicação do SNI, revista mensal de cultura, informação e turismo. O conteúdo tem a ver com a visita de Silva Cunha à Guiné, em março de 1970, nada que não esteja já registado. A novidade é a colaboração de Horácio Caio, não se sabe ao certo se também viajou na comitiva ministerial, já escreveu sobre a Guiné e o último livro de reportagem claramente em defesa do Ultramar é da sua lavra, já caminhamos para o 25 de Abril. Foi o primeiro repórter de guerra, terá ido pelo menos três vezes à Guiné, e podemos juntar o seu nome a Amândio César, José Manuel Pintasilgo, Dutra Faria e Avelino Rodrigues (este entrevistou Spínola, que numa dessas peças publicadas no Diário de Lisboa teve uma tirada bombástica, revela-se favorável à autodeterminação). Enfim, tratemos estes documentos como reportagens pró-regime (não será o caso das de Avelino Rodrigues), Horácio Caio era jornalista da Época (jornal do regime que sucedeu ao Diário da Manhã).

Um abraço do
Mário



O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória

Mário Beja Santos

Já conhecia dois livros de Horácio Caio alusivos a duas viagens que fizera à Guiné. Caio tornou-se no primeiro repórter de guerra e foi autor de um bestseller Angola Os Dias do Desespero. Foi com surpresa que pude compulsar uma revista intitulada Cartaz, revista mensal de cultura, informação e turismo, ano VI, número especial março 1970, a visita de Joaquim da Silva Cunha percorreu durante dias localidades da zona Leste (chegou a aterrar em Madina do Boé), esteve no Norte, em Mansabá, no chão manjaco, foi ao Sul a Catió, Cabedu, Cacine, etc. Agradável descoberta na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, desconhecia inteiramente este relato e creio que esta revista estava ligada ao SNI. No seguimento do relato da viagem aparece um texto de Horácio Caio, é bem provável que ele havia viajado como ministro e intitula-o os caminhos para a vitória, quatro pequenas histórias que ele interliga. Aqui fica o seu resumo.

Na primeira, refere um episódio passado em Bissalanca, que assim começa:
“Às cinco horas nasce o dia. O céu pardo da madrugada fica subitamente brilhante de purpura, passa aos poucos para o turquesa e o laranja e esborrata-se em vários matizes de azul. Então, a grande bola de fogo surge majestosa no seu bom-dia de esperança. A estrada alcatroada até Bissalanca, nastro esticado no ocre da terra, avisa de súbitos rumores metálicos os bairros sociais e as tabancas. São cinco quilómetros de asfalto bordado de casuarinas e poilões onde belos pássaros gorjeiam as sinfonias da manhã.” Faz uma apreciação do que encontra no bar, anda por ali alguém a fazer limpezas enquanto a enfermeira paraquedista e os pilotos do helicóptero ouvem música do tempo. O senhor da limpeza trava conversa com o repórter, agora estava tudo muito melhor, no passado não havia helicópteros nem piquetes, agora tudo se processa com rapidez para transportar os feridos. “Tudo está muito melhor desde que veio este general.”

A segunda estória prende-se com a audácia de um capitão miliciano que se fartou de ouvir os obuses por cima do seu quartel, perdeu a paciência com aqueles guerrilheiros que matavam, roubavam, destruíam, incendiavam e raptavam gente, preparou uma operação em que levou alguns homens para observar a posição onde estavam os guerrilheiros e a população forçada a viver com eles. Feita a referência, preparou um grupo para um golpe de mão, dividiu o contingente em três grupos de homens e pelas quatro da manhã emboscou-se ali perto. Ao nascer do dia, abriu fogo, os guerrilheiros ainda resistiram, e depois fugiram, o capitão queria apanhar gente, a população não acompanhou os guerrilheiros, homens, mulheres e crianças desceram o outeiro, silenciosos, à frente dos soldados. Atrás, o fumo do incêndio subia grosso e negro, traziam setenta e seis vacas que o inimigo roubara à população dos arredores.

A terceira estória intitula-se Eu dei a minha palavra, tem a ver com um homem que se vem entregar à tropa, é interrogado, tem resposta pronta: “A Guiné é a terra onde eu nasci. Esta é a minha terra, é aqui que eu quero ficar. Venho entregar-me à tropa.” E explica que há outros que também se querem entregar, mas têm medo, estão numa tabanca no Senegal, têm medo de ser mortos, compromete-se a ir buscá-los se o deixarem. Volta quarenta dias depois, numa luminosa manhã de dezembro, avisa que os fugitivos do PAIGC estão do outro lado da fronteira, será quatrocentos desalojados que querem viver à sombra da bandeira portuguesa.

E a última estória, Dá muito trabalho para morrer, um paraninfo à bravura militar, até mete linguagem de caserna, anda um grupo de combate à procura de turras, há tiroteio, o nosso herói perde-se do grupo, apanhou um tiro no ombro, aconteceu-lhe quando andava na caça ao homem. Novamente vem à baila o nosso general, não é a primeira vez que Horácio Caio enaltece o comandante-chefe que aparece imprevistamente nos lugares de risco, houvera uma emboscada, não quis tiros, queria saber para onde ia aquele grupo de cinquenta turras, então avistou-se um depósito de material.

“Caçámos quarenta e oito, vivos, e um montão de pistolas metralhadoras e espingardas, que eram as deles e outras que estavam escondidas. Outros fugiram, mas o que vigiava em cima da árvore estava morto, no chão, ainda por cima caiu de cabeça para baixo, tinha o pescoço partido; ele foi apanhado como um rato dentro da ratoeira. Ele podia ter caído só com o medo do barulho do tiro. E caiu daquela altura, já se vê, um tipo parte logo o pescoço, é uma chatice. Também já vi alguns morrerem só porque têm medo e quando vão a fugir e têm que atravessar um rio afogam-se porque o medo tira as forças todas a um turra.
Não querem combater e, por isso, fogem à nossa frente cheios de medo e não se entregam porque depois os chefes que vivem para lá das fronteiras mandam matá-los. É isso o que dizem todos quando se convencem de que nós os protegemos e ficam a trabalhar connosco e depois veem que é assim mesmo e são felizes ao pé da tropa.”


A história vitoriosa tem que envolver o general claro está, ele andava perdido, deu um tiro no turra que se está a esvair em sangue, virá um helicóptero bendito. Foram lá metidos, quando chegaram ao destino tinha à espera o general que lhe deu um abraço. “Eh pá, a gente sente uma coisa cá por dentro.”

Creio tratar-se da segunda viagem de Horácio Caio, e como o documento comprova ele acreditava a todo o transe que estava a escrever para mostrar aos incréus ou aos indiferentes por onde passavam os caminhos para a vitória, como ele escreveu histórias muito breves e de pouca importância para quem vive longe da guerra.

Joaquim da Silva Cunha, Ministro do Ultramar, distribuindo presentes às autoridades gentílicas durante a sua visita de março de 1970
O Ministro cumprimentando a população após a inauguração do aeroporto do Gabu, no seu quinto dia de viagem à Guiné, março de 1970
Horácio Caio (1928-2008)

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25668: Notas de leitura (1702): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1860 a 1864) (8) (Mário Beja Santos)