terça-feira, 6 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25811: (De) Caras (216): "Da minha varanda continuo a ver o mundo" - II (e última) Parte (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra)


Foto nº 11


Foto nº 12



Foto nº 13



Foto nº 14


Foto nº 15


Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 18


Foto nº 19



Foto nº 20


Foto nº 21

Sintra > Agualva-Cacém > Rua de Colaride > Julho de 2024> "Da minha varanda continuo a ver o mundo"...  São vizinhos do Valdemar que ele conhece e que estima, e que eles também o conhecem e estimam... E nenhum deles é identificável... São fotos tiradas ao longe e de perfil...

Mas podemos comentar: 
  • De como o telemóvel se tornou o novo grande órgão do corpo humano no séc. XXI... 
  • Ou de como estam0s todos a ficar autistas sociais... 
  • Ou de como a Rua de Coloride está mais bonita... e colorida;
  • Ou de com0 esta é a varanda do afeto contra a solidão...

Leitor: complementa a(s) legenda(s)... Mesmo que a imagem possa valer mais do que mil palavras...


Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Valdemar Queiroz: (i) minhoto de Afife, Viana do Castelo, por criação, lisboeta por eleição (ou necessidade, teve que se fazer à estrada e ir ganhar a vida, começando a trabalhar na idade da puberdade); 

(ii) ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70 (aqui por obrigação, em foto, tirada em Contuboel, 1969): 


(iv) estivemos juntos no CIM de Contuboel de 2 de junho a 18 de julho de 1969; 

(v) ele foi um dos instrutores da recruta das 100 praças do recrutamento local, que fomos receber para fazer a guerra, a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, junho de 1969 / março de 1971);  
(vi)  tem mais de 180 referências no nosso blogue, de que é um leitor e comentador assíduo; 

(vii) é portador de uma DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica), 
que o impede saír à rua...



1. Mais umas "fotos" tiradas pelo telemóvel do Valdemar Queiroz, o mais famoso (e bem humorado e resiliente e apaixonado pela vida) fotógrafo da Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra...

(...) "Eu, agarrado a oxigénio, cá estou na minha varanda a ver passar a nova vizinhança de cabo- verdianos e guineenses e um ou outro dos antigos vizinhos já muito raros. Anexo umas fotos tiradas da varanda e ver os vizinhos passar." (*) (...)

 
Lembremos o que aqui escreveu, há um ano atrás, o Valdemar, a respeito do "bairro" ou "urbanização" onde mora desde o início dos anos 70 (**):

(...) Vi nascer toda a urbanização da zona do prédio da minha casa. Passaram 50 anos, os casadinhos de fresco inauguraram os prédios da urbanização e com o andar dos anos os filhos foram crescendo e arranjaram outros locais para morar.

Os mais velhos, como eu, alguns ficaram, mas a maioria também saiu para outros lados. Agora, há cerca de 6-7 anos, os prédios começaram a ser habitados por outra gente, na maioria famílias de cabo-verdianos, mas também guineenses e angolanos.

E, agora, na rua só se vê gente de origem africana, talvez os de cá, já poucos, prefiram sair só de carro.

Eu, com o tempo mais quente, vou para a varanda e vejo passar gente que me faz lembrar a Guiné e sempre vou tirando umas chapas apanhando pessoas descontraídas." (...)

(...) Os arruamentos, zonas verdes e prédios têm um bom aspecto devido tratar-se de propriedade horizontal a grande maioria e como tal havido uma boa conservação.

Os prédios nasceram em 1972/73, no caminho de uma vacaria e moinhos de vento, ainda quase todos para alugar, a receber casados de fresco vindos de Lisboa, com a estação dos comboios a 10 minutos, e a meia hora do Rossio.

Levou alguns anos a ficar tudo arranjadinho como agora se vê, e os novos habitantes, principalmente as mulheres, fazem grande motivo de vaidade por viver no 2.º andar, que até dá para estender a roupa a secar. E até me dizem 'o vizinho está melhor?' (...)


Valdemar Queiroz


2. O poste anterior teve já cerca de um quarteirão de comentários (*)... Selecionámos alguns:


(i) Eduardo Estrela (Cacela):


Obrigado, Valdemar,  pela partilha das fotos do mundo que a tua Rua de Colaride encerra. Daqui de Cacela vai um abraço fraterno acompanhado com uma malga de verde tinto. A imaginação e o querer fazem milagres e este brinde ninguém nos tira.

4 de agosto de 2024 às 09:20



(ii) João Crisóstomo (Nova Iorque):


"A imaginação e o querer fazem milagres e este brinde ninguém nos tira." diz e bem o Eduardo Estrela.

Há indivíduos que, mesmo no meio de grandes adversidades, qual ouro purificado no cadinho, nos espantam pela força da sua coragem que a todos serve de motivação e inspiração. Tu és um destes gigantes, um poderoso farol num mar imenso a espalhar luz a navegantes perdidos que têm a sorte de estarem dentro do teu radar.

É reconfortante verificar a admiração de todos, eu, o Luis Graça, o Eduardo... todos aqueles a quem os teus comentários, as tuas fotos, a tua vida impressionam de tal maneira que quase sentimos inveja pelas qualidades sobre-humanas de que dás provas cada dia.

Se um dia eu puder não deixarei de voltar à tua rua; e se um abraço real não for possível, quero pelo menos mesmo à distancia"beber" ( como ainda recenrenmente o papa Francisco dizia) da tua força e do teu legado.


Por este teu exemplo te estamos incomensuravelmente gratos.

4 de agosto de 2024 às 11:17


(iii) Antº Rosinha:

Aquelas plantas de jardim, quase parecem cajueiros. Tudo muito parecido com Bissau, para não esquecer o antigamente. Boa saúde.

4 de agosto de 2024 às 11:35


(iv) Carlos Vinhal:


O nosso mundo pode ser tão grande quanto a nossa imaginação permita.
Caro Valdemar, não podes ir ao mundo, vem o mundo até ti.
Continuação de boa disposição e a melhor saúde possível.
Um abraço do meio minhoto Carlos Vinhal

4 de agosto de 2024 às 11:5


(v) António José Pereira da Costa


Força, Valdemar! Tás a fotografar umas coisas em grande!

4 de agosto de 2024 às 13:42


(vi) Manuel Luís Lomba:

Aceita as minhas felicitações: não só superas a tua debilidade física, como demonstras a sua resiliência psíquica, à combatente: ainda vês o mundo e... ainda atentas nos seres humanos "de anca larga" - Eça de Queiroz dixit - e nas suas curvaturas anatómicas.

Obrigado pelo teu exemplo. Aquele abraço e sombra e frescura.

4 de agosto de 2024 às 13:57


(vii) Virgínio Briote:

Caro Valdemar!

Passei por aqui para te dar um abraço. Quando vi Afife, veio-me logo à lembrança Viana, Caminha, a magnífica Cerveira, Valença... que terras e que gentes, meu Deus!

Abraço e desejos de ver novas da tua rua.

4 de agosto de 2024 às 14:36

(viii) Abílio Duarte:


Espero que estejas bem, dentro do possível.

Eu quando falo com a família e amigos, sobre os meus tempos de exilio na Guiné, recordo somente os bons momentos que passamos. Principalmente Contuboel... a instrução aos fulas, as idas ao banho no Geba, os nossos almoços no Transmontano em Bafatá, e em Sonaco, os nossos mergulhos na piscina da dita. A nossa amizade, já ultrapassou mais de 5 décadas, e cá vamos andando.

4 de agosto de 2024 às 15:13

(ix) Fernando Ribeiro:

O nosso amigo Valdemar é como o poilão, que em Angola é chamado mafumeira. Suporta os mais violentos temporais, raios e coriscos, furacões e chuvas diluvianas, e mesmo assim permanece sempre de pé. Tal como o poilão, o Valdemar pode ficar com cicatrizes, como a sua horrível DPOC, mas enfrenta as adversidades com uma invejável disposição. Que nunca falte a seiva ao Valdemar.

4 de agosto de 2024 às 15:41


(x) Cherno Baldé (Bissau);

Caro Valdemar Embaló,


Eguê, a minha avó paterna, bem que dizia: "a velhice é uma m...da". Hoje estás confinado à tua janela, roendo lembranças de Gabu e da tua linda e educada lavadeira ou daquele improvável golpe de judó em Canquelifã contra o teu amigo Duarte. A vida sempre nos guarda surpresas, e agora passas o dia a fotografar passantes, sem saber se um deles será ou não originário de Piche ou Guiró-Iero-Bocar.

Vê lá se me envias o teu contacto, que eu recomendo ao meu sobrinho para uma visita surpresa pois Agualva Cacém e toda a linha de Sintra é uma região que já conquistamos aos Mouros do Ribatejo.

4 de agosto de 2024 às 16:32

(xi) Valdemar Queiroz:

Das minhas traseiras, 1º andar, ainda vejo o Palácio da Pena por cima de uns prédios, mas na parte mais alta desta zona, a cerca de cem metros temos uma vista extraordinário sobre todo a baixo Cacém e a Serra de Sintra. Alto de Colaride, mesmo à frente da minha varanda, faz parte do maciço da Serra da Carregueira.

4 de agosto de 2024 às 18:24


(xii) Joaquim Costa:

Tenho andado arredado das redes sociais, mas felizmente ainda vim a tempo de te dar um abraço. Ainda mantenho de pé a promessa de levar a montanha a Maomé! Os meu netos alfacinhas cada vez mais me arrastam para essa cidade grande. A minha casa, agora, é demasiado grande para uma pessoa só.


És uma força da natureza. Um grande abraço deste Minhoto que te estima.


(xiii) Carvalho de Mampatá:


Sou um 'piriquito' à tua beira (de 72/74) mas atrevo-me a falar contigo por esta via, para te dizer, graças ao nosso blog, como admiro a tua força e a força da mensagem que nos deixas. Vivo cá para cima, num recanto ainda rural de Gondomar, longe desse mundo da periferia de Lisboa cada vez mais rico na diversidade cultural que eu muito aprecio e que tu nos dás o prazer de registar com primor.

Um grande abraço com votos de que melhores dessa aborrecida DPOC.


4 de agosto de 2024 às 20:05

(xiv) Hélder Sousa:


Também, se me permites, aqui deixo um pequeno comentário, na senda do muito que se encontra nos antecedentes.

É de louvar a tua persistência em não te deixares dominar pelas dificuldades e conseguires encontrar motivos de ocupação, física e principalmente mental. É assim mesmo que se devem encarar e enfrentar as adversidades, pois só assim elas ficam reduzidas a uma menor dimensão.


Observar a "fauna humana" que circula pelas tuas redondezas (e também a flora...), acompanhado por raciocínios mais ou menos especulativos sobre os seus destinos, as suas vivências, anseios, dificuldades, etc. é um exercício que manterá os teu neurónios em funcionamento e não te deixarão "afundar".


Continua assim. É bom para ti e também para nós que sempre podemos usufruir dos teus comentários, da tua perspicácia e, porque não, da tua resposta pronta para "enquadramentos menos sérios",

4 de agosto de 2024 às 23:07


(xv) Paulo Santiago:


Grande resiliente. Abraço forte

5 de agosto de 2024 às 01:10


(xvi) Francisco Baptista:


Que a medicina te ajude e que continues a ter essa a resistência e vontade de viver que continuas a demonstrar. Bem sei que as tuas limitações são muitas mas tu tens inteligência e sabedoria para viveres com o pouco que a vida te proporciona.


5 de agosto de 2024 às 10:29


(Seleção, edição de fotos, revisão / fixação de texto: LG)

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25810: Notas de leitura (1715): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Quando se lêem as implicações que o ajustamento estrutural teve em Kandjadja, uma comunidade a 100 quilómetros de Bissau e a 30 de Farim, parece que estamos a ver todas as comunidades rurais da Guiné-Bissau, o desalento, as expetativas frustradas, a diluição da presença do PAIGC, a manutenção da multiplicidade cultural que permitia uma vida em apaziguamento entre Mandingas, Fulas e Balantas, a desagregação do sistema escolar criado pelo PAIGC e encarado pelo sistema tradicional como a "escola dos brancos" e também sob a forte alegação de que os pais não encontravam razão para enviar os filhos à escola, preferiam que os filhos trabalhassem ali ou no Senegal; a dissolução atingiu também a saúde pública. Em finais de 1988, escreve Lars Rudebeck, ofereceu-se forte resistência ao aumento de impostos, e não se aceitou em perder a tradição do povo fazer queimadas para conseguir novas terras cultiváveis. As populações também voltavam as costas às exigências do Governo de não trocar o peso guineense no mercado negro pelo franco CFA. Este trabalho de campo do eminente investigador sueco anda muito próximo de um outro que já aqui analisámos, da autoria de Joshua Forrest, sobre a influência gradual que o sistema de linhagens foi tendo na vida das comunidades rurais a partir de um momento em que a via da democracia participativa se foi apagando.

Um abraço do
Mário



Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista:
Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (3)


Mário Beja Santos

Entro numa loja de comércio justo ligada ao CIDAC, à procura de uma publicação sobre Cabo Verde e encontro a tradução portuguesa de um documento de que há muito ando no encalço: o que representou o ajustamento estrutural em três países africanos de língua portuguesa que foram insurgentes (esclarecedor documento de Kenneth Hermele) e a profunda análise que Lars Rudebeck faz do que significou o ajustamento estrutural numa aldeia a cerca de 100 quilómetros de Bissau, foi matéria de um seminário que decorreu na Universidade de Uppsala em maio de 1989, organizado por AKUT.

Nos dois textos anteriores, fizeram-se apontamentos, um sobre o ensaio de Kenneth Hermele intitulado Ajustamento Estrutural e Alianças Políticas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, o segundo da autoria de Lars Rudebeck sobre o ajustamento estrutural em Kandjadja, vamos hoje concluir o ensaio deste renomado investigador abordando as implicações políticas e socioculturais do ajustamento estrutural na referida povoação.

Rudebeck visitara Kandjadja no início de 1986, tomou em consideração a própria análise dos habitantes, queixavam-se da falta de apoio, da ausência do Estado, isto a despeito de formalmente a população estar politicamente organizada, ter comité de base, o chefe da aldeia era o Presidente da secção do Partido. Este chefe da aldeia era militante do PAIGC durante a guerra da libertação, mas a maior parte da sua autoridade tem raízes locais nas tradições culturais e na estrutura do poder da comunidade Mandinga, ou seja, ele funcionava como mediador entre um Estado que apregoava a modernização e a força da tradição e das lutas pela sobrevivência. Como o investigador sueco observa: “Quanto menos o Estado cumprir as suas promessas de desenvolvimento mais dependente Kaba fica da sua autoridade derivada das raízes locais, e consequentemente menos capacidade tem para mobilizar a população local para atividades que ela não aceita espontaneamente – tais como pagar impostos ou mandar os seus filhos à escola estatal.” Houve uma deterioração da legitimidade original do partido, antes de Kaba houve outros representantes, mas eram sempre considerados como estranhos. Enfim, muito pouco da autoridade política de Kaba em Kandjadja parece derivar do Partido e do Estado.

Rudebeck reflete sobre a multiplicidade cultural do país, há a Kandjadja-Mandinga, a três quilómetros de distância fica Kandjadja-Fula e a cerca de um quilómetro Kandjadja-Balanta, há problemas religiosos, de estrutura social e de modos de produção distintos que o autor abreviadamente analisa. Refere, igualmente, que, por volta de 1984, surgiu uma espécie de movimento revivalista, primeiramente no sul entre o povo Balanta, criticando a ignorância, a corrupção, o despotismo dos velhos, a feitiçaria. Este movimento é chamado Yanque Yanque, iniciado por uma mulher profeta e mobilizando especialmente gente jovem. Apesar da crítica feita pelo movimento se dirigir especialmente à sociedade Balanta em si mesma, ele foi alvo de grande suspeita por parte do Governo e mesmo acusado de ter relações com uma tentativa de golpe de Estado em que teria estado envolvido o vice-presidente Paulo Correia, tal acusação é pura especulação, assim como muitos aspetos da alegada tentativa de golpe de Estado. Devido à grande influência Mandiga em Kandjada, este movimento Yanque Yanque não foi muito ativo.

E fala do funcionamento da escola. “Em 1976, quando visitei Kandjadja pela primeira vez, a escola era provavelmente a instituição mais revolucionária da aldeia, apesar de ser mais no sentido ideológico. Três professores, jovens e muito motivados, dois dos quais tinham vivido com a guerrilha desde a infância, ensinavam cerca de duzentos alunos, o ensino era uma combinação de disciplinas convencionais e de ensino político sobre a História e o significado da luta de libertação nacional.” A comunidade não reagiu bem, sentiu que havia uma rivalidade com a escola corânica. “O professor era um jovem de cerca de vinte anos, da mesma idade que os seus colegas na escola estatal, na qual estava ao mesmo tempo matriculado no segundo ano. A população de Kandjadja chamava à escola estatal, exatamente como ainda o faz catorze anos depois, ‘a escola dos europeus’ ou ‘dos brancos’ porque é aí que as coisas ‘modernas’ ou ‘europeias’ são ensinadas. Desde então, tem havido um declínio constante da extensão das atividades e do nível de autoridade da escola oficial na comunidade. Em 1976, havia quatro classes na escola primária (mais um grupo preparatório), nos anos seguintes, só três classes e em 1988, o único professor que restava afirmou que só iria ensinar duas classes em 1989.”

Igualmente Rudebeck observa que há consenso entre os observadores e estudiosos da Guiné-Bissau que o sistema escolar oficial da Guiné-Bissau sofreu durante toda a década de 1980 uma situação de crise e degradação incapaz de dar resposta às expetativas da população ou aquilo a que se poderá chamar as necessidades de desenvolvimento do país. Rudebeck tomou nota de que a escola da aldeia vai reduzida a uma pequena palhota, tinha somente dezasseis alunos (dez eram de Kandjadja-Fula, um de Kandjadja-Balanta e somente cinco da aldeia Mandinga, onde a própria escola se situa). O professor tinha sérios problemas em convencer os pais de origem Mandinga a mandarem os filhos à escola, aumentara a desconfiança em relação à “escola dos brancos”. O professor confessou que a escola estava num estado desastroso, já propusera às autoridades educacionais o encerramento da escola por falta de apoio da comunidade, mas recebeu ordem para continuar. O chefe da aldeia, Kaba, apoia os esforços feitos pelo professor, mas está muito pressionado pelos velhos que não têm nenhuma confiança na escola nova. O professor analisa a situação da seguinte maneira:
“Os pais não encontram razão para enviar os seus filhos à escola, visto que lá eles não aprendem nada que possa melhorar a situação da família, pelo menos a curto prazo. A escola constitui um obstáculo ao trabalho em casa e nos campos. Nos primeiros anos após a independência ainda se acreditava que a escola levaria a melhoramentos, que as crianças iriam aprender coisas úteis a ganhar dinheiro. Mas agora eles compreendem que não é assim, por isso, eles preferem que os filhos trabalhem aqui ou no Senegal".

O olhar do investigador dirige-se agora para a saúde pública. Em 1976 existia na povoação um embrião de um sistema de saúde pública que funcionava, havia uma enfermeira que três vezes por semana, de manhã, atendia doentes a quem dava cloroquina ou aspirina ou que administrava tratamentos gerais. Os casos sérios podiam ser mandados, a pé, para os dois pequenos hospitais em Morés ou Mansabá. Durante os anos seguintes, o sistema foi-se desintegrando manualmente, substituído pela medicina tradicional, ruiu o posto médico. No início de 1988 apareceu um programa de “saúde base” apoiado pela UNICEF, fora decidido que a população construiria e pagaria um posto de saúde. A ideia do programa de “saúde base” é criar uma rede de agente de saúde base locais, as pessoas iriam pagar 50 pesos por cada consulta e esse dinheiro ficaria em Kandjadja para ser utilizado na compra de medicamentos. Em dezembro desse ano chegou uma brigada de saúde para vacinar mulheres e crianças. Este programa de “saúde base” não recebe financiamento do Estado guineense, tem financiamento que vem diretamente do estrangeiro. Com as medidas do ajustamento estrutural acreditava-se que as agências estrangeiras de assistência iriam passar a ficar como encarregadas das funções de assistência social.

Por último, Rudebeck analisa o povo de Kandjadja em face do Estado, detalha longamente as conversas havidas acerca do aumento de impostos, como estes foram inicialmente contestados e, por último, suavizados pela Assembleia Nacional Popular. A contestação das tentativas de controlo por parte do Governo eram enormes. Existe uma resistência em relação ao pagamento de impostos porque aqueles que os pagam não reconhecem que recebem algo de volta. Aos olhos dos camponeses, a floresta tem de ser queimada enquanto não houver uma alternativa de método acessível para cultivar a terra. Em suma, o ajustamento estrutural era encarado pela população que tinham impressão que o Estado e a nação não ofereciam nenhuma alternativa real para os indivíduos e para o desenvolvimento, não trouxe razões concretas para se ter esperança num futuro melhor em Kandjadja. O que há de francamente novo é que os homens jovens da aldeia vajam mais livremente do que à volta de 1980. O poder do Estado estava à perder a sua legitimidade. “O povo regressa às suas raízes históricas e às experiências já vividas e demonstradas para sobreviver e para encontrar consolo. Mas o que encontra não chega para preencher o vazio do momento presente. Estão a surgir novas fendas. Através delas, novas alianças, novas bases de legitimidade, até agora só vagamente pressentidas.”


Kenneth Hermele
Lars Rudebeck
O antigo hospital militar n.º 241, imagem do Triplov, com a devida vénia
A casa comercial Taufick-Saad, imagem do Triplov, com a devida vénia
Fevereiro de 1965, o governador Arnaldo Schulz passa revista a uma unidade da Mocidade Portuguesa, no ato inaugural de uma escola, Arquivos da RTP, com a devida vénia
Nino Vieira e Luís Cabral na Suécia, 1973, imagem retirada do blogue Herdeiro de Aécio, com a devida vénia
Nota de 100 Pesos da Guiné-Bissau, emissão de 1975, reverso da nota na face está a efígie de Domingos Ramos
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Notas do editor:

Post anterior de 29 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25789: Notas de leitura (1713): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 2 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25803: Notas de leitura (1714): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (14) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)



Timor Leste  > Dli >  c. 1936/40  > O Palácio do Governador



Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > "Sua Excelência o Governador e S. E. Reverendissima o Bispo da Diocese"... Trata-se do governador Álvaro Fontoura (1891-1975), que exerveu o cargo antes dos acontecimentos aqui descritos, ou seja, entre 11/9/1937 e 10/5/1940. Duarante a Guerra Mundial, foi governador o cap inf Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (1893-1968).



Timor Leste > Díli > 1937 > "Baleeira governamental quando da chegada de S. E. o Governador"


Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > Baucau > "Residência do Governador (Vila Salazar)"



´Timor > Bacau ou "Vila Salazar > c. 1936-1940 > Um aspeto da vila

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo coma Wikimefdia Commons.




1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.

 Timor Leste, como é sabido, foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia" , até 1951)  que foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945): tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas, primeiro, e japonesas depois),

O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este dramático  período da história de Timor. Devido à censura, o "caso de Timor", ou todo o seu horror,  só foi conhecido depois do fim da guerra. Timor foi uma "pedra" na bota de Salazar, que vociferou contra os aliados e praticamennte calou-se ante os nipónicos.

Para ajudar a leitura, reproduzimos no fim deste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos: 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VII:   As chacina de Aileu e Anaro,  em outubro de 1942... E a coragem da menina Julieta Lopes que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric!   (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)


(i) Na madrugada de 1 de outubro de 1942, quinta feira, 
deu-se um dos episódios mais trágicos de toda a guerra 
no Timor português: o ataque à Companhia de Caçadores 
e à casa do seu comandante, o cap inf  Freire da Costa; 
uns morreram de armas na mão 
fazendo frente a uma "coluna negra",
 outros suicídaram-se. 

Segundo o adjunto da Companhia, o tenente Antóni0 Oliveira Liberato, dispunha de 200 homens, quase todos timorenses, 2 metralhadoras Vickers, 1 Lewis e 48 espingardas... do séc. XIX, Kropatchek, e umas escassas milhares de munições, velhas. Os prometidos morteiros, essenciais num território montanhoso,
ficaram, prometidos, em Lisbos. 

Toda a estratégia militar de Salazar e Santos Costa, na II Guerra Mundial, esteve orientada para a defesa das ilhas atlânticas (Madeira, Açores e Cabo Verde),  Tim0r foi, metaforicamente falando, 
riscada do mapa.

Nesta época, a população de Timor, de origem metropolitana, não ultrapassaria as duas centenas (não contando com as famílias): cerca de 90 deportados ("políticos e sociais"), meia centena de militares, umas escassas dezenas de funcionários administrativos, pessoal das missões católicas... Não havia colonos, ou contavam-se pelos dedos,
 

(...) Na tarde do dia 2 de outubro de 1942, o chanceler do consulado japonês, sr. Irié, veio ao hospital informar o engenheiro Canto de que em breve aí chegariam vários portugueses provenientes de Aileu.

De facto, cerca das 21 horas, apareceram três camionetas do exército nipónico, transportando portugueses de Aileu, entre os quais vinha o administrador Virgílio Castilho Duarte, o tenente reformado João Cândido Lopes e suas três filhas, o sargento António Lourenço da Costa Martins, o sargento Carlos de Miranda Relvas, o sargento Manuel dos Santos, os cabos Porfírio Soares e Jacinto Santos, e os enfermeiros Marcelo Nunes e Daniel Madeira.

Contou-nos, então o sargento Martins que na madrugada do dia 1 de Outubro, o aquartelamento da Companhia, instalado no depósito de degredados de Aileu, havia sido subitamente atacado e bombardeado por morteiros e, em seguida, por granadas de mão e alvo de tiros de metralhadora e espingarda, ouvindo-se gritos em língua indígena desconhecida no Timor português mas entre as quais se distinguia a palavra «Atambura» (1).

Tratava-se, pois, de uma coluna negra principalmente recrutada nessa cidade do Timor holandês. A guarda da Companhia, encurralada dentro dos muros do presídio, pois os japoneses haviam exigido que não patrulhasse as suas imediações, reagiu, saindo à portada, disparando uma metralhadora e espingardas, os cabos Evaristo Gregório Madeira e Júilo António da Costa, os soldados Álvaro Henrique Maher e João Florindo e vários soldados timorenses, tendo morrido, atingidos pela metralha, aqueles quatro europeus e seis soldados timorenses.

O ataque parou então, o que permitiu a fuga dos sobreviventes tendo, porém, alguns militares europeus ficado dentro do edifício do aquartelamento, escondidos e acaçapados no vão de um sobrado, coberto com as tábuas que tinham levantado. Assim se mantiveram até que, na manhã seguinte a tropa japonesa que visitou o edifício, os descobriu, com evidente surpresa e desapontamento.

A menina Julieta, filha do tenente Lopes (2) , eontou-me pormenorizadamente a tragédia que se tinha desenrolado na habitação em que estava instalado o comandante da Companhia e situada perto do aquartelamento.

Naquela noite, temerosos de acontecimentos terríveis que pressentiam, haviam-se acolhido à casa do comandante, o administrador Virgílio Duarte, o dr. Dinis Ângelo Arriarte Pedroso (delegado de saúde da zona oeste que habitava em Aileu desde o mês de junho), o secretário da administração de Aileu, José Gouveia Leite, sua esp
osa  [Cacilda] e dois filhos (um de sete anos de idade e outro ainda de peito), o chefe de posto auxiliar Antono Afonso, as três filhas do tenente Lopes  (2) e o filho do tenente Liberato, de doze anos de idade (3) .

O ataque principiou pelo quartel mas logo passou à casa do comandante que foi varrida por saraivadas de balas e a que começou a ser lançado fogo, pegando-o a uma dependência que servia de capoeira e lhe estava encostada. 

Não tendo dúvidas de que iriam ser mortos e torturados pelos assaltantes, tal como acontecera ao sr. Martins Coelho em Maubisse, e vendo que ficariam assados no braseiro em que a casa ameaçava tornar-se, todos os que ali se encontravam foram tomados do maior pânico, em especial os que temiam os piores vexames para as suas esposas que preferiam ver mortas

Em resultado deste estado de espírito, o capitão Freire da Costa suicidou-se com um tiro de pistola na cabeça, a sua esposa procedeu do mesmo modo com um pequeno revólver, o dr. Pedroso encostou uma espingarda ao peito e desfechou sobre o coração, e o secretário Gouveia Leite e o chefe de posto António Afonso meteram espingardas sob o queixo e dispararam. Em poucos instantes todos estes estavam mortos.

O administrador Virgílio Duarte teve, então, a ideia de se misturar com os cadáveres e se fingir morto. Assim fez, e foi isso que lhe salvou a vida. Entretanto, o fumo do incêndio, que alastrava, já quase asfixiava os sobreviventes, o que os obrigou a abrirem a porta para sair para o exterior. 

A turba ululante que se preparava para os exterminar foi então detida pela enérgica e decidida acção da menina Julieta Lopes (2), que, como conhecedora dos costumes primitivos timorenses,  se lhe dirigiu em alta voz, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (4). Assim, lembrando àqueles homens que na guerra não se matam mulheres e crianças, salvou a vida do desgraçado grupo.

Entrou a malta na casa e saciou o seu ódio disparando, ainda, tiros sobre os cadáveres, um dos quais feriu levemente no nariz, actuando de ricochete, o administrador Virgílio Duarte. As senhoras e crianças sobreviventes dirigiram-se então, livremente, para a residência do administrador que, tal como todas as casas de Aileu, com exceção do quartel e a do comandante, não havia sido atacada pela coluna negra.

Manhã cedo, militares japoneses vieram do seu acampamento vistoriar Aileu e foram eles que encontraram os militares portugueses escondidos nos escombros do quartel da Companhia e o administrador Virgílio na casa do comandante. 

Ficaram todos os sobreviventes da chacina de Aileu alojados na residência do administrador e, no dia seguinte, escoltados por soldados japoneses, tiveram de fazer a pé a longa caminhada entre Aileu e a ribeira de Cômoro onde encontraram as três camionetas que os transportaram ao hospital de Lahane, sendo recebidos com o carinho e a emoção fáceis de imaginar.

Passados poucos dias, seguiram a hospedar-se em casas de Liquiçá. Somente dias depois, soubemos em Lahane que em 2 de Outubro, dia seguinte à da chacina de Aileu, uma coluna de tropa japonesa acompanhada de timorenses havia assassinado em Ainaro, com requintes de selvajaria, os missionários, padres António Manuel Pires e Norberto de Oliveira Barros e o deportado Luís Ferreira da Silva que, na missão de Ainaro, prestava serviço como mestre-de-obras.

Devido a tantos acontecimentos desastrosos, o tenente Ramalho retirou-se do seu acampamento de Ai-Hou, daí saindo e dirigindo-se para leste, no dia 5 de outubro, chegando à Baucau a 24. 

O tenente Liberato ainda se manteve uns dias em Bobonaro, porém teve que retirar para Atsabe, no dia 12, seguindo a f ixar-se no lugar de Mânu-Tássi, a dois quilómeros da Hátu-Lia, cumprindo uma ordem do Governador que o incumbia de orientar a atuação nas áreas dos postos ainda ocupados pelas autoridades administrativas — Atsabe, Lete-Fóho, Hátu-Lia, Cailaco e Ermera — e cobrindo com as tropas as regiões de Liquiçá, Bazar-Tete e Boibau (6).

Entretanto, factos graves se passavam em Bazar-Tete e tropas japonesas, acompanhadas de indígenas, ameaçavam Lete-Fóho. Na primeira dessas localidades, apareceu de surpresa, à hora em que se realizava o bazar (7) , uma coluna negra, vinda de Aileu. Precedendo a sua entrada de breve fuzilaria, puseram em debandada os timorenses e os europeus que se encontravam no mercado.

O sr. Moreira Rato, chefe do posto, e família, perseguidos a tiro, conseguiram escapar aos assaltantes, refugiando-se no mato. Auxiliados por timorenses dedicados, alcançaram Liquiçá. Exaustos, rotos, corpos cheios de arranhaduras, entraram na vila, onde foram socorridos pelo chefe de posto José Nascimento. Incansáveis, ele e sua esposa, prestaram-lhes carinhosa assistência. Outro tanto haviam feito já aos refugiados de Aileu.

No dia 19 de outubro, os japoneses entraram em Lete-Fóho, afugentando os moradores com rajadas de metralhadora e incendiando as residências, armazéns, etc, e regressando a Hátu-Builícu, donde tinham ido. Dois europeus, o deportado Emílio Augusto Caldeira e o condenado João Romano da Silva, morreram às mãos dos indígenas que acompanhavam os nipónicos (6).


(ii) Isolados do mundo (com a estação radiotelegráfica de Taibessi nas mãos dos japoneses), não há sinais de esperança, vindos de Lisboa, pelo que o governador (e os restantes portugueses) acaba por ter de aceitar a "solução japonesa", a de os concentrar em Liquiçá e Maubara.

Entretanto, há já aviões norte-americanos a bombardear o território... Dois anos depois, em 28/11/1944,  a diplomacia portuguesa, jogando com o pau de dois bicos (a famosa "neutralidade colaborante") consegue assegurar a restituição da soberania de Timor, ao conceder aos EUA facilidades na utilização 
da base da ilha de Santa Maria, Açores. 



(...) Após as chacinas de Aileu e Ainaro, o Governador resolveu informar do acontecido a população europeia instalada em Baucau pedindo-lhe, ao mesmo tempo, para se pronunciar sobre a urgente necessidade de se enviar um telegrama para Lisboa, rogando a evacuação de Timor, da população que estava sistematicamente a ser dizimada. 

O caso, que primeiro foi tratado com os que residiam no hospital de Lahane, pessoalmente pelo Governador, revestia-se de excecional delicadeza. A nossa dificílima situação era motivada, não pela impotência de dominarmos os limitados focos de rebelião de timorenses-portugueses mas, sim, pela impossibilidade de podermos castigar e reprimir os bandos de indígenas do Timor holandês que os japoneses lançavam contra nós e que, sem dúvida alguma, protegeriam.

Ora, desde o dia 31 de maio que estávamos isolados de qualquer comunicação com o resto do mundo por os japoneses terem ocupado a nossa estação radiotelegráfica de Taibéssi e, somente por intermédio deles poderíamos enviar um SOS ao Governo central. 

Porém, como explicar-lhe que todas as nossas aflições resultavam da velada ação nipónica, em telegrama aberto, pois o cônsul japonês logo claramente informara o engenheiro Canto de que a mensagem, por razões de segurança das forças militares, não poderia ser em cifra ?

Seguiu então para Manatuto e Baucau o capitão Vieira, enviado do Governador, no dia 4 de outubro, tendo recebido o assentimento dos portugueses aí reunidos para se mandar ao Governo um telegrama que, pelo seu apelo desesperado, lhe desse a entender que estávamos inteiramente impossibilitados de garantir a vida de qualquer de nós. 

A resposta do Governo central não se fez esperar, tendo eu sabido, por meias palavras do engenheiro Canto, que nela não havia qualquer esperança de alívio para a nossa situação, julgada perfeitamente controlável pelos meios locais.

Não restou, assim, ao Governador outra hipótese de solução, senão aceitar o oferecimento, que já várias vezes tinha sido feito, de o exército japonês garantir a nossa segurança desde que todos os não-timorenses se concentrassem na zona constituída pelas povoações de Liquiçá e Maubara, por eles escolhida. Todos os portugueses de Lahane concordaram com esta ideia, o mesmo acontecendo com os da zona Leste, a quem o capitão Vieira foi novamente informar do que se passava, partindo para Baucau no dia 11 de outubro.

Era, então, absolutamente claro para todos, não podermos ter a mínima confiança em os nipónicos cumprirem a palavra  dada. Todavia, nada mais nos era dado escolher e tínhamos que nos sujeitar ao que entendíamos ser um subterfúgio para afastar as autoridades portuguesas dos seus postos de soberania

No dia 14 de outubro, passados os dois meses da minha estadia voluntária em Díli, voltei para Baucau e o dr. Rodrigues regressou ao hospital de Lahane, tendo deixado a sua esposa naquela vila, hospedada na residência do secretário Howell de Mendonça de cuja esposa era íntima amiga.

Decorridos três dias, fui surpreendido em Baucau pela notícia de que a família do Governador tinha chegado na noite da véspera trazendo consigo outras pessoas e que todos estavam instalados no «palácio», uma residência de férias dos governadores. Imediatamente, como me cumpria, me dirigi ao palácio para apresentar os meus cumprimentos e no seu átrio encontrei o capitão Vieira que me informou do que se passara em Manatuto, no dia 16 de outubro. 

Aviões com o distintivo americano, haviam, então bombardeado a estrada de Manatuto a Saututo, tendo caído bombas muito perto da residência do administrador, o que motivara a vinda de todos os que aí habitavam para Baucau com exceção do dr. Mendes de Almeida e do secretário Augusto Padinha.

Estavam, assim, no palácio, a senhora D. Cora Ferreira de Carvalho e as suas três filhas, o capitão Vieira e sua esposa e filha, a esposa do tenente Alves e suas duas filhas e um filho, a esposa do administrador dr. Mendes de Almeida e a esposa do secretário Padinha e seus filho e filha. 

No dia 24 de outubro, à tarde, as filhas do Governador e a do capitão Vieira estavam a jogar o ténis comigo. Com grande surpresa, nossa, avistámos, marchando, uma coluna de tropa portuguesa à frente da qual comandava o tenente Ramalho. Era, de facto, este oficial que voltava da sua missão de combater a rebelião de Maubisse e que ia alojar a sua tropa no belo edifício da escola de Baucau, a cerca de quinhentos metros para norte da vila. 

Fui visitá-lo, na manhã do dia seguinte, tendo-lhe oferecido roupas interiores e umas calças minhas que ele, reconhecidamente aceitou, pois não tinha possibilidade de substituir as que ainda usava, rasgadas pelos espinhos do mato, durante as árduas lutas em que tomara parte.

No dia seguinte ao da chegada do tenente Ramalho apareceram, em Baucau o engenheiro Canto e o tenente Alves que convocaram uma reunião onde compareceram quase todos os portugueses não-timorenses. Deram então conhecimento de que tinha sido concluido o acordo com o comando nipónico, negociado por intermédio do engenheiro Canto e do cônsul japonês, pelo qual aceitávamos a sua protecção, e a deslocação para a zona de Liquiçá e Maubara e de que traziam instruções sobre a forma como esta última se havia de processar.

O meio de transporte seria o vapor Oé-Kússi (5) que ainda demoraria a vir cerca de duas semanas, e que começaria por fazer viagens somente com géneros alimentícios (que se deviam juntar em Baucau pois a zona era muito pobre em agricultura) e com bagagens dos passageiros, os quais seguiriam depois. Vários dos assistentes à reunião tomaram então a palavra, sendo o primeiro o Coronel Castilho e seguindo-se-lhe os administradores, tenente Pires e Sousa Santos. Todos foram unânimes na opinião de que não tinham a mínima confiança nas promessas dos japoneses, mas que para nós não havia outra alternativa senão a de seguir para a zona de concentração, que, à boca pequena, se classificava como «o açougue dos portugueses».

As disposições relativas à concentração dos portugueses, tomadas de acordo com o comando nipónico, foram então referidas, de um modo vago, pelo engenheiro Canto e encontramo-las num dos livros do capitão Liberato (6), do qual as passo a transcrever.

«A zona de concentração, necessidade premente, imposta pela situação aflitiva que a colónia atravessava, abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara. 

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares, o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respectivamente em Boebau (8), área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas. 

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, em Lahane».

O acordo foi firmado em bases imprecisas, porque os nipónicos sempre se recusaram a reduzir a escrito os pormenores regulando a sua execução, como insistentemente lhes foi pedido è nas próprias bases era prometido. Manhosos, velhacos, nunca quiseram firmar um compromisso que de certo modo lhes pudesse cecear a sua acção sobre os portugueses. Jamais se decidiriam a penhorar á sua palavra, assinando um documento que no fúturo constituísse a demonstração insofismável da sua desleal conduta (9).

Em minha casa, onde ficou hospedado, me contou o engenheiro Canto que tinha trazido um pedido do Governador para o administrador de Manatuto adquirir, juntar e enviar para Baucau todo arroz que lhe fosse possível obter, para embarcar no OeKussi. 

Transmitidas pelo tenente Pires as instruções do Governador ao administrador de Lautém, todos começaram os seus preparativos para a deslocação, mas sem qualquer ansiedade pois havia um razoável período de espera pelo transporte.

So mais tarde eu soube que no dia 28 de outubro, bastantes portugueses dos lados da Hátu-Lia e Ermera e que se encontravam albergados na plantação de Fátu-Béssi,  haviam abandonado esse local e ido para parte incerta, para não seguirem para a zona.

Conta-nos o dr. Cal Brandão (10) que um oficial australiano que a passara com a sua guerrilha, os informara não ser do conhecimento do seu comando a criação duma zona neutra e que, assim, eles não se julgariam obrigados a respeitar uma convenção feita sem o seu assentimento. 

Depois, o major Bernard Callinan (11), segundo-comandante australiano, declarara que o seu comando criaria também, uma zona de protecção às famílias portuguesas, a evacuar para a Austrália em caso de necessidade, com a condição dos homens lhe prestarem ajuda, ficando como seus intérpretes e colaboradores (10) .

«O facto tornou-se conhecido, fizeram-se os preparativos necessários para a viagem, que podia ser acidentada, e era demorada por certo. No dia 28 de outubro, logo de manhã cedo, com doze australianos a proteger-nos a retirada e sentinelas colocadas nas encruzilhadas em que seria possível um mau encontro, pôs-se a caminho uma caravana de cerca de oitenta pessoas, muitas mulheres e crianças, umas a pé outras a cavalo, em bicha indiana serpeando pelos estreitos carreiros cavados nas encostas de íngremes montanhas» (10) .

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Notas do autor (complementadas pelo editor LG):


(1) Atambua era uma cidade do Timor holandês, situada próximo da nossa fronteira.

(2) O intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes , tinha 3 filhas, entre elas a Julieta Lopes (aqui citada pelo autor), de 17 anos. 

(3) O tenente António Oliveira Liberato, viúvo, deixara o seu filho Luís Filipe, de 12 anos,  à protecção do capitão Freire da Costa, quando partira com o destacamento da Companhia a combater a rebelião dos povos da Fronteira.  Casará depois, em 1943/44, com a Cacilda, viúva do secretário da administração de Aileu, Júlio Gouveia Leite.  (O casal tinha chegado a Timor em setembro de 1936.)  

António Liberato e Cacilda vão reencontrar.se no campo de concentração, com os 3 filhos (dois dela, um dele).

(4) Esta frase, em tétum, significa: "Não se devem matar (após a vitória em combate) as mulheres e as crianças".

(5) O vapor Oé-Kússi, havia sido tomado pelos japoneses para seu serviço no mês de maio de 1942, depois de repetidas vezes, a sua cedência ou aluguer lhes serem negados pelo governador.

(6) Vide Capitão António Oliveira Liberato, O Caso de Timor, Portugália, Lisboa.

(7) Em Timor os mercados públicos têm a designação comum de «bazar».

(8) Onde hoje fica a ESFA (Escola de São Francisco de Assis), construída pela ASTIL - Associação de Solidariedade com Timor Leste.

(9) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(10) Vide Carlos Cal Brandão, Funo. Porto, 1946.

(11) E não Callini, lapso do autor ou gralha tipográfica. (Nasceu em 1913 e faleceu em 1995, sendo um grande amigo de Timor Leste).

Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 44-53.

 
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, notas introdutórias, reorganização das notas, itálicos e negritos: LG)






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes. O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25802: Timor-Leste: passado e presente (15): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VI: e o terror continuou no 2º semestre de 1942...

domingo, 4 de agosto de 2024

Guné 61/74 - P25808: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte V: Na lha do Como...Jusfificação do impedido sobre o rombo que tinha levado o garrafão do vinho do pessoal: "Teve visitas, meu alfero!"...

Foto à direita: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita

1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964); 

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.); 

(ix) é empresário reformado.

Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho, estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC). 

Este Pel At participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos agora na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964).


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)

Parte V: Na ilha do Como...Justificação do impedido sobre o rombo que tinha levado o garrafão do vinho do pessoal: "Teve visitas, meu alfero!"...


Definido o local de estacionamento, o oficial dos abastecimentos do batalhão ficou de arranjar tendas e outros equipamentos necessários, o que disse ainda ia levar alguns dias, mas acabou por nunca aparecer.

O pessoal do pelotão era constituído por africanos que  na ausência de qualquer abrigo, se propuseram construir na areia da praia, barracas com uma estrutura de paus coberta por ramos de palmeira entrelaçados. Cada barraca fazia parte do semicírculo que todas formavam, atrás dos obuses já instalados e virados para a mata de terra firme que constituía o centro da ilha, cerca de 30% do total e formado por árvores de porte elevado. Os atrelados com munições foram estacionados atrás de cada obus.

A barraca do alferes Carvalho era a primeira a oeste do semicírculo e tinha um pequeno alpendre que a distinguia das outras por ser ele o chefe.

Atribuíram-se tarefas: cozinha, armazém limpeza, etc. 

O vinho semanal armazenado em garrafões ficava religiosamente guardado na sua barraca, à responsabilidade do impedido, um africano enorme da etnia Papel, com cerca de 2 metros de altura, que tinha sido criado dum médico e lhe arranjava primorosamente a pouca roupa que levara (duas camisas e dois calções que lavava na água do mar e colocava em seguida entre algumas caixas de granadas, cujo peso se assemelhava ao efeito de passar a ferro).

Este impedido foi de grande utilidade para um oficial dos comandos, seu amigo dos primeiros tempos de África, que entrava sempre em operações com o fato de combate impecavelmente preparado por ele e também um lenço de seda azul que levava ao pescoço como se fosse para alguma festa, para daí a meia hora se enterrar na lama, nalguns casos até à cintura.

Era também o responsável pelo vinho do pessoal e pela sua distribuição. Um dia após regressar do almoço na messe de oficiais do batalhão, onde às vezes ia, verificou que o vinho tinha levado um rombo assustador, tendo-se este justificado:

 
  Teve visitas,  meu alfero.

As visitas eram só uma e constituída por um soldado africano comando, estacionado também naquela praia paredes meias e que lá ia com frequência. O impedido foi por isso castigado com um dia de prisão, que cumpriu num posto de sentinela.

Não sabia se tinha exagerado. O impedido era um bom soldado, mas nessa altura já estava farto de guerra e de beber naquela praia whisky com água e gelo amarelo, da cor do whisky feito com a única água que se obtinha e nem sempre bem filtrada.

Os mosquitos eram poucos, uma das grandes qualidades daquele acampamento, mas o Sol era sempre o mesmo: rompia a neblina e incidia forte e quente na pele.

A comida era à base de arroz como de costume,  que aliás o seu cozinheiro fazia muito bem. Cozinhavam em pequenas marmitas que arranjaram junto do outro pessoal do batalhão.

(Continua)


(Revisão/fixação de texto, título, negritos: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 29 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25788: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão

Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Um bramido de raiva

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória, velocidade rebentando a dor, direto à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô, trabalhador-milionário, desiludido porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas, sem força nem entreatos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu, o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25785: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (28): "O presépio de Laila"

Guiné 61/74 - P25806: (De) Caras (215): "Da minha varanda continuo a ver o mundo"... Parte I (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra)

 

Foto nº 1


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Sintra > Agualva-Cacém > Rua de Colaride > Julho de 2024>    Da mimha varanda continuo a ver  o mundo... "

Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Valdemar Queiroz:


Data - domingo, 28/07/2024, 15:08

Assunto - Da minha varanda continuo a ver o mundo (*)


Boa tarde, Luís


Como este belo tempo, um pouco quente mas sem o sol a abrasar, continuo a ver passar os meus novos vizinhos caminhando na minha rua, sempre coloridos.

Agora, já apanharam o hábito do telemóvel quase como em tempos o cigarro ou a pastilha elástica, inseparável. Até a sombra da frondosa e quase cinquentenária nespereira serve para fazer um 'mi liga' a meia da tarde. 

Também já existem telemóveis que enviam legendas-grafites e outros que nem sequer criam
inveja antes olhar a loirinha à fresca ligando.

Eu, agarrado a oxigénio, cá estou na minha varanda a ver passar a nova vizinhança de cabo- verdianos e guineenses e um ou outro dos antigos vizinhos já muito raros. Anexo umas fotos tiradas da varanda e ver os vizinhos passar.

Bons dias de Verão e umas malguinhas de verde fresco. (**)
Valdemar Queiroz

Anexo - 24 fotos



Valdemar Queiroz, minhoto de Afife,  Viana do Castelo, por criação, lisboeta por eleição (ou necessidade...), ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70 (aqui por obrigação, em foto, tirada em Contuboel, 1969).  Entrou para a Tabanca Grande em 16 de fevereiro de 2014. Estivemos juntos no CIM de Contuboel de 2 de junho a 18 de julho de 1969. Ele foi um dos instrutores da recruta das 100 praças do recrutamento local, que fomos receber para fazer a guerra, a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, junho de 1969 / março de 1971). Tem mais de 180 referências no nosso blogue, de que é um leitor e comentador assíduo.


2. Comentário do editor LG:

Grande Valdemar, já não há, em julho, nêsperas nem flores lilases de jacandará, mas o mundo continua a passar pela tua janela ou pela varanda do teu apartamento na Rua de Colaride, Agualva-Cacém... O mundo, os teus vizinhos, e as memórias que eles te trazem do seu mundo (que afinal é cada vez mais só um...).

E tu continas a sorrir para o mundo, ou pelo menos a câmara do teu novo telemóvel,  que já não é tão "fatela" como a do ano passado...a avaliar pela "qualidade" das imagens que me mandas agora... Ou é a mesma ? (Tenho ideia que  Menino Jesus neerlandês te deu um novo telemóvel pelo Natal.. se não te deu, bem o merecias.)

Continuas a viver hoje, sozinho, em casa, em Agualva-Cacém. Felimente que a tua rua é "colorida". E tem vida...  E renova-se... 

Tens o teu filho e netos, longe, nos Países Baixos, mas mesmo assim ao alcance de um "clique". (Lembras-te, na Guiné, naquele tempio, era preciso dormir na estação dos correios em Bissau, para se conseguir, no dia seguinte, uma chamada para casa, aqueles de nós, muito poucos, que tinham o privilégio de ter telefone fixo, em casa...).

E vez em quando, lá vais (é a tua sina!) de "charola" para o Hospital Amadora-Sintra com uma crise aguda, devido à sua "DPOC de estimação"... Aprendeste a lidar com a ela, a filha da mãe..., com o teu sempre desconcertante mas saudável humor (de caserna)... E com a preciosa ajudinha do teu/nosso SNS que já conhece a tua rua... (Que Deus Nosso Senhor lhe continue, ao teu/nosso SNS,  dar "saudinha da boa", e por muitos anos...).

O voto dos teus amigos e camaradas da Guiné é que continues a ser mais teimoso do que o raio da tua "doença de estimação" que te vai acompanhar para o resto da vida.  E que a "menina dos teus olhos" continue a poder ver o mundo, e a encontrar motivos para sorrir e o fixá-lo em humaníssimos e ternurentos instantâneos como estes...  (Tens razão, o raio do telemóvel também veio para ficar como o Toyota, a "covide" e por aí fora...).

Obrigado, pelas fotos que nos mandaste e de que fizemos uma seleção. (**) 
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Notas do editor:

(`*) Vd. postes anteriores:



15 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24400: (De) Caras (198): "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou uma nesga, o da da minha rua" (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra) - II (e última) Parte

(**) Último poste da série > 31 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25797: (De)Caras (305): Cecílica Supico Pinto: a "líder carismática" do Movimento Nacional Feminino, com acesso privilegiado a Salazar, que veio preocupadíssima com a situação na Guiné, na véspera do 25 de Abril de 1974