Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço (3) e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (2), ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito (1). O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira, com a frente virada para poente (para o que é hoje a praça do Rossio). Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa.
O Paço dos Estaus (ou Palácio da Inquisição) ardeu em 1834. No mesmo sítio, irá constrruir-se, dez anos depois, o Teatro Nacional Dona Maria I.
@ José Avelar/Museu de Lisboa
"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializarem bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço.
"O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715).
"O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740".
Índice:
Parte I
1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade
2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"
3. O movimento de concentração hospitalar
Parte II
4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar
4.1. O Provedor
4.2. O Almoxarife
4.3. O Hospitaleiro e o Vedor
4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira
5. Diferenciação Socioeconómica do Pessoal Hospitalar
Referências bibliográficas
Originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, Saúde e Trabalho > Textos > 59. Graça L- (2000) - O Hospital Real de Todos os Santos. Parte I.
O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo
Parte I
1. O hospital monumental renascentista:
A ostentação da caridade
Se o leitor do nosso blogue passar um dia destes por Lisboa, convido-o a visitar o excelente Museu da Cidade, polo Palácio Pimenta, ao Campo Grande. Aí poderá ter uma ideia da Lisboa pré-pombalina, através de uma magnífica maqueta da urbe e, inclusive, admirar a maqueta do antigo Hospital Real de Todos os Santos (abreviadamente, HRTS), para além de dois ou três admiráveis conjuntos de azulejos onde está representado o HRTS.
Embora a maqueta do HRTS seja uma reconstituição, feita na década de 1950, o que salta à vista é a sua arquitectura - a arquitectura monumental renascentista, reflectindo a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.
Assistia-se então, no início do século XVI, a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel decisivo nesse movimento.
Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade da sua administração durante mais de 400 anos. até ao período de 1974/76 (no caso do Hospital de São José e seus anexos, até 1836). Estima-se que o número de pequenos hospitais e outros estabelecimentos do género chegasse às cinco centenas, totalizando cerca de 2500 camas.
A política de fusão e concentração dos hospitais, seguida por de D. João II e D. Manuel II, tem de ser entendida no contexto do longo e sinuoso processo de luta secular do poder régio e, depois, do Estado contra a Igreja.
Essa luta - muitas vezes cínica e surda - acentuar-se-á com o Marquês de Pombal e culminará com a legislação liberal de Mouzinho da Silveira (1832) e Joaquim António de Aguiar (1834), completada depois com a da República (1910), tendo-se traduzido na secularização da maior parte do fabuloso património fundiário da Igreja (os chamados bens de mão-morta, que estavam fora do mercado imobiliário, não podendo ser alienados) e na drástica redução dos privilégios do clero.
É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc., em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei.
O Hospital Real de Todos os Santos é disso um exemplo paradigmático.
Como diz Correia (1984), no prefácio à primeira edição do respectivo regulamento (feita em 1946, por iniciativa de um laboratório farmacêutico, e reproduzida pelos Hospitais Civis de Lisboa, em 1984), "nunca em Portugal houvera hospital tamanho e, pela sua grandiosidade, ganhou fama de ser um dos maiores do mundo", ombreando com os outros grandes hospitais quatrocentistas e quinhentistas da Cristandade, tanto em Itália (Florença, Siena, Roma) como em Espanha (Santiago de Compostela, Toledo).
Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a economia mercantil, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).
Por outro lado, e como já acima referimos, a arquitectura do hospital renascentista exprime a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade. Uma e outra são possíveis, no nosso caso, devido à enorme acumulação de riquezas, resultantes do comércio ultramarino, e nomeadamente da exploração comercial do ouro da Mina e da pimenta da Índia.
O HRTS estava localizado na cerca do Mosteiro de S. Domingos, onde é hoje a Praça da Figueira. A sua construção foi iniciada em 1492, a 15 de maio, com o lançamento da primeira pedra, juntamente com algumas moedas de ouro, na presença do próprio D. João II, depois da indispensável (mas morosa) autorização papal (Bula de Sisto IV, 1479, e Breve de Inocêncio VIII, 1942) para reunir o património dos diversos estabelecimentos (mais de quatros dezenas!), existentes na cidade de Lisboa, "cujos proventos não excedessem trezentos florins de ouro" (Goodolphim, 1908, cit. por Basto, 1934. 46).
O hospital só será concluído doze anos depois, em 1504, sendo por isso anterior ao de Santiago de Compostela (1499-1515), mandado fundar pelos Reis Católicos Isabel e Fernando. Na construção do edifício, ou pelo menos da igreja e da sua fachada manuelina, terá havido a intervenção do "mestre de obras do reino", Diogo Boitaca (c. 1460-1527), arquiteto de origem francesa, consideradio uma das referências do estilo manuelino.
De 1504 data também o seu notável regulamento (Regimento), outorgado por D. Manuel I (1469-1521), como testamenteiro de seu primo, cunhado e antecessor, D. João II.
É, sem dúvida, um documento de grande interesse histórico, na medida em que nos permite:
(i) ter hoje uma visão global da organização e do funcionamento do hospital renascentista;
(ii) bem como reconstituir a representação dos diferentes cargos ou funções (ou papéis socioprofissionais, como diríamos hoje), do director (provedor) ao médico (físico), ou, pelo menos, dos papéis prescritos pelo outorgante;
(iii) é, sobretudo, é a expressão mais acabada da vontade do poder político de intervir no domínio da assistência, pondo em causa o papel até então hegemónico da Igreja e respondendo, ao mesmo tempo, às necessidades de uma população em que, à subnutrição e à peste endémica, se vêm pôr novos problemas de saúde, novas doenças (até então desconhecidas) como resultado da concentração urbana e da mobilidade espacial, decorrentes da expansão marítima.
Acrescente-se que D. Manuel I seguiu a mesma política diplomática do seu antecessor, tendo nomeadamente conseguido por bula de Alexandre VI, de Outubro de 1501, a faculdade de incorporar as rendas dos pequenos hospitais de cada terra numa único hospital. O mesmo papa concedera-lhe semelhante autorização (Breve, de 23 de Agosto de 1499) para proceder à concentração dos hospitais de Coimbra, Évora e Santarém (Basto, 1934. 168).
Voltando ao citado Regimento, deverá dizer-se que ele não é inteiramente original, tendo sido inspirado, pelo menos, parcialmente, nos estatutos dos hospitais italianos (Santa Maria Nova, de Florença, e Santa Maria, de Siena).
Outros documentos notáveis dessa época chegariam, de resto, até aos nossos dias, como por exemplo o Compromisso do Hospital Termal das Caldas da Rainha (1512), considerado o mais antigo estabelecimento do género em todo o mundo. Num caso e noutro, dois homens da Igreja terão participado na sua elaboração: o cónego Estêvão Martins e o Cardeal Alpedrinha, respetivamente. O cónego será, de resto, o primeiro provedor do HRTS, por nomeação régia (Correia, 1984. 10-11).
Deve-se a Irisalva Moita (Benguela, 1924-Lisboa, 2009), arqueóloga, olissipógrafa, criadora do Museu da Cidade de Lisboa, no Palácio Pimenta,a primeira intervenção arqueológica de uma vasta área das ruínas do HRST, aquando da construção do metro, em 1960/61. Quatro décadas depois, em 1999/2001, na sequência de um projeto de reabilitação e requalificação urbana da Praça da Figueira, foi feita uma intervenção de fundo, uma das maiores (e exemplares) levadas a cabo em Lisboa.
2. "Couza tam grande,
e de tão grande maneo"
Passava-se, entretanto (e isso é que é um facto assinalável para a época) dos estabelecimentos de meia dúzia de camas no máximo, e sem qualquer estrutura organizativa (simples hospícios, portanto), para os grandes hospitais de 100 e mais camas, de arquitectura monumental (o esprital solemne), com uma diferenciação hierárquica e funcional já perfeitamente definida, com um órgão de gestão que era nomeado pela (e responsável perante a) tutela régia, distinto da direção técnica, e dotado, além disso, de mecanismos de controlo patrimonial, contabilístico e financeiro.
Segundo o Capítulo III do Regimento do HRTS, a área de influência do estabelecimento cobria:
- a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte",
- além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".
Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.
Ainda de acordo com as indicações do próprio regimento bem como de diversos documentos literários e iconográficos do período que vai da sua construção ao terramoto de 1755, o HRTS era uma das mais importantes obras do equipamento urbano da cidade; tinha dois pisos, situando-se a sua área coberta no que é hoje a Praça da Figueira (vd. iamgem da maqueta acima :
- a frontaria estava voltada para o Rossio e deveria medir cerca de 100 metros;
- o corpo do edifício estendia-se para norte, com uma arcaria contrafortada que encostava ao Convento de S. Domingos;
- a meio, sobrelevada e com uma escadaria de acesso, erigia-se a igreja, de fachada manuelina, com uma imponente escadaria de 21 degraus;
- a planta do edifício era em cruz, com a torre da igreja ao centro;
- no piso superior, três grandes enfermarias (a de S. Vicente, a de Santa Clara e a de S. Cosme) constituíam os braços da cruz, dispostas em volta do altar-mor;
- esta estrutura cruciforme permitia aos doentes internados acompanhar diariamente os ofícios religiosos (e nomeadamente as duas missas, uma das quais celebrada por alma do fundador);
- no piso térreo, situavam-se os alojamentos do pessoal residente (cerca de meia centena de funcionários, incluindo o provedor);
- no piso inferior, ficaria ainda muito provavelmente a albergaria (ou casa dos pedintes andantes, com cerca de quarenta camas para ambos o sexos) e os demais anexos do hospital, incluindo a casa dos expostos, o refeitório, a botica, a casa da fazenda (ou secretaria), a cozinha e o forno;
- no seu vasto logradouro, encontravam-se as demais instalações e equipamentos necessários ao funcionamento do hospital: os lavadouros, as latrinas, as atafonas (ou moinhos), o pombal, a capoeira, a arrecadação da lenha e a horta;
- o hospital tinha ainda claustros com poços de água potável e cemitério privativo.
À semelhança do hospital árabe e bizantino, os doentes eram repartidos por secções em função da sexo e até da patologia: das três grandes enfermarias, uma era destinada a mulheres e as outras duas a homens, sendo uma de medicina e a outra de cirurgia.
O regulamento faz ainda referência à casa das boubas, uma casa apartada onde eram tratados os doentes com morbo gálico (isto é, gaulês ou francês), designação que englobava então todas as doenças sexualmente transmissíveis (e nomeadamente, a sífilis) mas possivelmente também outras do foro dermatológico.
Estas unidades de enfermagem para internamento de doentes do morbo gálico seriam das mais antigas que se conhece, o que é tanto mais interessante quanto, na época, "o mal de boubas era tido como doença vergonhosa e inconfessável, e os seus portadores reputados merecedores do castigo de Deus e não da piedade dos homens" (Basto, 1936. 343).
Segundo diversas fontes dos séculos XVI e seguintes, compulsadas e citadas por Lemos (1991), o número de efetivos do pessoal do HRTS foi aumentando, tal como o número de doentes a que ele recorriam, a começar pelos doentes portadores de sífilis (morbo gálico). Assim, ao tempo do andaluz Ruy Diaz d'Ysla, e ainda no reinado de D. Manuel I, havia já dois físicos e dois cirurgiões além de um "mestre que curava o morbo serpentino" e que era o próprio Ruy Diaz (cit. por Lemos, 1991, Vol. I. 133).
Haveria ainda uma casa de doidos (segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504), além de um banco de urgência e de instalações privativas para pessoas nobres.
Competia ainda ao hospital receber todas as crianças abandonadas da cidade (expostos), que depois eram entregues, até aos três anos, ao cuidado de amas externas. No reinado de D. João III o número anual de expostos já andaria pela centena e meia.
Entre doentes, crianças, peregrinos e mendigos, calcula-se que o hospital teria inicialmente capacidade para alojar mais de 250 pessoas (incluindo o pessoal residente, em número superior a meia centena) . Fala-se mesmo em 400 camas. O movimento anual de doentes rondaria então entre os 2500 e os 3000, sendo já porém insuficiente a sua capacidade hoteleira nos finais do Séc. XVI (Correia, 1984; Neto, 1981). À época do terramoto, o hospitak chegaria a fornece mil refeições diárias.
Apesar dos sucessivos incêndios que o destruíram total ou parcialmente (em 1601, 1750 e 1755), o HRTS foi-se alargando em termos de instalações e equipamentos, sendo referenciada, por volta de meados do Séc. XVIII, a existência de doze enfermarias, cada uma das quais com o nome do seu santo patrono, além da "casa das feridas e convalescentes, casa da anatomia, enfermaria de mulheres feridas e doidas, casa de doidos, casa dos mortos, casa dos banhos ou das tinas" bem como das casas dos cirurgiões do banco (Correia, 1948. 12). Pelo número de enfermarias existentes, calcula-se que, por volta de 1750, o hospital tivesse já mais de meio milhar de camas. Será completamente desativado em 1775, vinte anos depois do terramoto.
Embora no regimento original não se faça nenhuma referência a qualquer sala de operações, bloco operatório ou equivalente, sabe-se que o HRTS foi a primeira 'grande' escola de anatomia e cirurgia da qual se destacaria, entre outros, o nome de Manuel Constâncio (1725-1817).
A administração deste hospital foi da responsabilidade régia até 1530 (ou até 1557, segundo outras fontes). Os provedores eram recrutados entre gente da casa real ou da confiança, pessoal e política, do rei. De 1530 (ou apenas de 1557) a 1564 a sua gestão esteve entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista (ou Lóios), para, finalmente, por carta régia de 1564, passar para as mãos da Misericórdia de Lisboa.
Durante dois séculos, até destruição do HRTS pelo terceiro (e último incêndio, na sequência do terramoto de 1755), a figura do provedor passa a ser designada por enfermeiro-mor (provavelmente uma corruptela do termo irmão-maior). Essa designação chegará até 1974.
No Quadro 1, em anexo, faz-se uma tentativa de reconstituição do seu hipotético quadro do pessoal inicial, de acordo com as disposições do Capº I do regimento ("Titolo de quantos oficiaes ha no esptall e seus mantymentos que ham daver") (Graça, 1994).
"A superioridade e cura das couzas da Igreja" são explicitamente apresentadas pelo outorgante como razões primordiais, pelo menos, no plano político e ideológico, para dar toda a ênfase, logo no Capº II, ao serviço religioso, cometido a dois capelães residentes e seus "dous moços" (Regimento do HRTS, 1984).
Não se estranhará, por isso, que logo à cabeça do regulamento sejam minuciosamente discriminadas as funções de capelania, a primeira das quais é a de "menistrar a todos os pobres enfermos sãos, e doentes, (...) todos os sacramentos (...) e todas e quaesquer outras couzas necessárias à saúde das almas" (p. 25).
Cuidar das almas e, acessoriamente, cuidar dos corpos dos doentes pobres, é (e continuará) a ser a missão do hospital quinhentista. Aliás, no Capº III (Título do proveador, do esprital, e o regimento e maneira em q hade servir o dito seu officio), é claramente patente a motivação intrinsecamente religiosa (e, naturalmente, política) do poder régio ao fundar o hospital e criar a figura do percursor do hodierno director e/ou presidente do conselho de administração dos nossos hospitais.
A fundação deste hospital é, sobretudo, uma pia causa. No intróito do regimento, o seu fundador, como príncipe cristão, é descrito como tendo sido "movido com boa intenção, por q os Pobres, e pessoas Miseraveis tivessem algum mais certo Recolhimento, e Remedio de suas necessidades em esta cidade do q nella para elles até então havia".
Daí o pedido de autorização ao papa (quando D. João ainda era príncipe) para que na cidade de Lisboa, "a Principal destes Regnos, e de grande Povo", fosse edificado um "Esprital solemne" que, além do mais, agregaria o património dos pequenos estabelecimentos existentes (cerca de quatro dezenas de hospitais, grande parte deles ligados às confrarias de ofícios e cada um com o seu santo padroeiro). E daí, também, a feliz e sábia designação que foi encontrada, a contento de todos: Hospital Real de Todos os Santos.
Nessa época, Lisboa passa dos 60 mil habitantes (em 1422) para os 85 mil em (1528), atingindo os 100 mil em 1551, dos quais 7 mil seriam estrangeiros residentes ou de passagem (Ferreira, 1981. 464).
Dando resposta às crescentes necessidades de saúde da população, o HRTS conheceu um crescimento exponencial ao longo dos seus 270 anos de existência, não obstante os vários grandes incêndios (que foram seguidos de reconstruções e ampliações): o número de enfermarias / serviços passou de 5 (em 1505), 9 (c. 1550), 19 (c. 1620), 22 (1715), 21 (1755-1758) e 22 (1759-1775) (Pacheco, 2008).
Aquando do grande incêndio de 1750, no HRTS estariam internados 723 doentes, muito mais do que a capacidade instalada. Vinte e tal anos depois, em outubro de 1774, alguns meses antes da transferència de doentes e serviços para o "novo" Hospital Real de São José, o número de doentes internados em 17 enfermarias seria de 843 (um média de c. de 50 doentes por enfermaria, o que nos parece excessivo) (Alberto et al, 2021).
3. O movimento de concentração hospitalar
Um outro grande hospital da época era o hospital termal das Caldas da Rainha, como já atrás referimos, construído por iniciativa e a expensas da Rainha D. Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel I, com início das obras em 1485 e conclusão por volta de 1497.
Tinha cerca de 120 camas (80 para doentes de ambos os sexos; 20 para o pessoal religioso e pessoas honradas; e mais 20 para peregrinos e pessoal de apoio), além de médico privativo, consulta médica obrigatório, farmácia (botica) e estatuto próprio (Correia, 1981).
De entre os oficiais que deviam reger e governar o novo estabelecimento assistencial, doado pela rainha D. Leonor, destaque-se a figura do almoxarife. Notável é, de facto, o painel de 13 por 12 azulejos (incompleto, pintado a azul e branco, e datado de 1667-68), que ainda hoje pode ser observado na copa do edifício, e que constitui um exemplar único no nosso país e um documento interessante para a historiografia e museologia hospitalares: "a tábua do almoxarife";
Trata-se de um curioso algoritmo então usado para calcular a quantidade de carne a fornecer aos enfermos, conforme o seu número: "Taboa do (ca)rneiro q se da aos enf(erm)os ao iantar tres quartas a ca hum de resam".
Entretanto, o movimento de concentração dos pequenos hospitais e estabelecimentos similares estende-se a outras cidades e vilas (Évora, Santarém, Estremoz, Beja, Braga, etc.) nas primeiras décadas do Séc. XVI, e inclusive aos territórios de além-mar. O Hospital Real de Goa, por exemplo, irá desempenhar um importante papel na assistência aos milhares de portugueses, soldados, aventureiros, mercadores, missionários e funcionários régios, que aportam à Índia e demais terras do Oriente.
A sua fundação deve-se à iniciativa de Afonso de Albuquerque em 1510, depois da conquista de Malaca (Ferreira, 1990. 121). Em 1520, o seu secretário, António da Fonseca Ormuz, publica o regimento do hospital. A designação de Hospital Real de Goa (ou d’El-Rey) só aparecerá, contudo, mais tarde, em 1542, ano em que passa a ser administrado pela Misericórdia que, além disso, mantinha em Goa, o Hospital dos Pobres.
Em 1565, o orçamento deste hospital era de 1300$000 réis. A sua administração terá sido disputada pela Misericórdia e pela Companhia de Jesus, a avaliar por dois documentos de 1584 e 1591, citados por Ferreira (1990.122). De qualquer modo, nos finais do Séc. XVI, as dificuldades que enfrentava eram muitos, sendo nomeadamente manifesta a sua incapacidade para dar resposta ao número crescente de doentes e a sua insuficiência de meios financeiros.
Nessa época o vencimento anual do físico era de 57$600 réis, o do cirurgião 43$200 e o da cristaleira 12$000, traduzindo uma clara diferenciação socioprofissional dos praticantes da arte médica.
Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional |
Categoria | Nº | Unidade | Total | Remune-ração em género | Perfil |
Pessoal dirigente | | | | | |
Provedor | 1 | 30$000 | 30$000 | A | "Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" |
Almoxarife | 1 | 12$000 | 12$000 | A | "Homem de bem, e de fiança, e bemcriado" |
Escrivão | 1 | 12$000 | 12$000 | A | |
Protonotário | 1 | ? | ? | | |
Hospitaleiro | 1 | 12$000 | 12$000 | A+B | "Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança" |
Hospitaleira | 1 | ? | ? | A+B | "Muito diligente, e destra no serviço" |
Vedor | 1 | 8$000 | 8$000 | A+B | "Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber" |
Sub-total | 7 | | 74$000 | | |
Pessoal de capelania | | | | | |
1º Capelão | 1 | 6$300 | 6$300 | A+B | |
2º Capelão | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Ajudante | 2 | 2$000 | 4$000 | A+B | |
Sub-total | 4 | | 16$300 | | |
Pessoal médico e paramédico | | | | | |
Físico | 1 | 18$000 | 18$000 | A | |
Cirurgião interno | 1 | 12$000 | 12$000 | A | |
Cirurgião externo | 1 | 6$000 | 6$000 | | |
Ajudante de cirurgião | 2 | 2$000 | 4$000 | A+B | |
Boticário | 1
| 15$000 | 15$000 | A | "Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado" |
Ajudante de boticário | 3 | 3$000 | 9$000 | A+B | |
Enfermeiro- mor (ou chefe) | 4 | 6$000 | 24$000 | A+B | "Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo" |
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar) | 7 | 2$000 | 14$000 | A+B | |
Enfermeira-mor (ou chefe) | 1 | 3$000 | 3$000 | A+B | |
Enfermeira auxiliar | 1 | 2$000 | 2$000 | A+B | |
Barbeiro- sangrador | 1 | 3$000 | 3$000 | | |
Cristaleira | 1 | 3$000 | 3$000 | A+B | |
Total | 25 | | 113$000 | | |
Pessoal operário e auxiliar | | | | | |
Despenseiro | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Cozinheiro | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Ajudante de cozinheiro | 3 | 3$000 | 9$000 | A+B | |
Porteiro | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Costureira | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Lavadeira | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Ajudante de lavadeira | 1 | (a) | (a) | A+B+C | |
Atafoneiro | 1 | (b) | (b) | | |
Amassadeira | 1 | (b) | (b) | | |
Forneira | 1 | (b) | (b) | | |
Outros (eventuais) | 4 | 3$000 | 12$000 | A+B | |
Sub-total | 16 | | 45$000 | | |
Total geral | 52 | | 248$300 | | |
Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário
(Continua)
© Luís Graça (1994). Última revisão: 10/8/2024
Observ.: Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia.
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Nota do editor:
Último posto da série > 14 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro