terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26020: Timor Leste: Passado e presente (24): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo III: a situação sanitária em 1943: de 52 profissionais de saúde, 34 (c. de dois terços) tinham falecido, ou desaparecido, ou estavam ausentes



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 16690 > Ambulància



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 16949 > Tecelão



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto  16927 > Vida social e familiar  > Mulheres, jovens e crianças



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 17047 > Uma escola em Balibó



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto  16994 > O farol de Díli

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo coma Wikimefdia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)


O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a:~

  •  «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», 
  • «trajos, ornamentos, pertences e armas», 
  • «vida familiar e social», 
  • «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» 
  • e «acção civilizadora e colonizadora». 

O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL), pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)

 
O coronel Álvaro Fontoura (Bragança, 1891 - Lisboa, 1975), foi "governador de Timor entre 1936 a 1940 e é-lhe atribuída a ideia de organizar o Álbum Fontoura". 

Era então major de infantaria. Licenciou-se em engenharia civil na Universidade do Porto e foi professor do Colégio Militar entre os anos de 1925 a 1937, da Escola Superior Colonial entre 1932 a 1947 e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas (ISCSPU) / Universidade Técnica de Lisboa entre os anos de 1939 e 1961.

Será depois chefe de gabinete do Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, de 1940 a 1944, presidente da Junta Central de Trabalho e Emigração do Ministério do Ultramar de 1937 a 1960 e Diretor dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Como parlamentar participou como deputado da IV Legislatura (1945 - 1949) pelo círculo eleitoral de Macau.


1. José dos Santos Carvalho (de quem não temos uma única foto) foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro, da parte dos australianos e holandeses, e, depois,  dos japoneses). Médico,  exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, desde meados de 1943.

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território. Desembarcou em Díli nas vésperas do ano novo de 1943.

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio.   .

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), que têm igualmente interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor, relatórios esses que ele nunca deixou de fazer,  apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico e  chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. Não sabemos se chegaram, na altura, ao conhecimento de quem de direito, para além  do governador da colónia (que esteve, na prática, durante os três  anos de ocupação, na situação de refém dos japoneses e sem comunicações com Lisboa).

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, foi escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 

O livro e o autor merecem não ser esquecidos. 

Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico de Investigação Tropical.

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, vamos reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde e os serviços de saúde são vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo III:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1943) (pp. 142-148)

 
(i) Como bom funcionário público e representante da autoridade de saúde, no apogeu do Estado Novo, o dr. José dos Santos Carvalho, médico de 2ª classe, não deixou de cumprir os seus deveres, apesar da ocupação do território por forças estrangeiras, e nomeadamente japonesas (entre 20 de fevereiro de 1943 e 2 de setembro de 1945). 

Recorde-se que dos quatro médicos existentes no território, dois morreram. alegadamente por suicídio: o dr.  Diniz Ângelo de Arriartre Pedroso (Aileu, 1 de outubro de 1942), e o dr. José Aníbal Torres Correia Teles (algures na região de Viqueque, em fevereiro de 1943).

O dr. José dos Santos Carvalho, chefe interino da repartição de saúde e higiene  (desde 2 de agosto de 1943) foi louvado, em 10 de outubro de 1945, pelo governador cessante, Manuel  de Abreu  Ferreira de Carvalho, "pela forma  como soube sempre cumprir os seus deveres, não abandonando, mesmo em circunstâncias muito difíceis, o seu posto e procurando, apesar de todas as deficiências materiais com que sempre lutou, dar a maior eficiência possível aos serviços de saúde, cuja chefia lhe foi confiada, e ainda pelos trabalhos de  investigação e de estudo, a que se dedicou e que procurou sempre orientar num sentido de utilidade imediata para a população" 
(pág. 135/136).



 (...) "As circunstâncias extraordinárias e completamente anormais em que nos encontramos, sujeitos a todos os perigos e consequências da guerra, e guerra a valer, impõem ao fiel servidor muito maiores deveres, grande paciência, abnegação, sacrifícios sem conta e muitas vezes dificuldades insuperáveis, que a história mal virá a conhecer, sendo dificílimo destrinçar e avaliar com inteira justiça os serviços prestados à Pátria, quer colectiva quer individualmente. 

 "A crítica histórica tem de ser feita passados os acontecimentos, com calma e sem paixões. Não é, pois, ocasião para a fazer. Porém os factos devem ser registados, embora, por enquanto, não possam ser comentados, nem se possa também investigar a sua razão de ser, o que deverá ser feito mais tarde, recompensando-se os que cumpriram e castigando-se os prevaricadores se os houver. 

"É por ter considerado estas proposições que me julgo na obrigação de juntar a este relatório uma resenha dos factos principais respeitante ao serviço, dos quais tive conhecimento, a qual será completada ou mesmo corrigida com o testemunhe dos funcionários da Repartição que agora não posso obter. 

 "Apresento assim um esboço de história (...).

"Também, sem dúvida, interessará sobremaneira, saber das condições de vida dos portugueses durante o período de guerra. Por esse motivo incluo neste relatório (que obviamente deveria começar na data da minha posse, em 2 de agosto de 1943) a descrição das circunstâncias de interesse para a Saúde Pública, desde o ajuntamento dos portugueses na zona de concentração (Novembro de 1942), tanto mais que o estado de guerra, as ansiedades e incertezas do futuro e mesmo a falta de expediente impediram que fossem elaborados os variados documentos da estatística normal. 

"Feitas estas ligeiríssimas considerações, preâmbulo que me parece necessário, entro agora no relatório propriamente dito." (...)


Medicamentos, Material Cirúrgico, Utensílios, Roupas, etc.

(...) "Foi com a maior tristeza e quase com desespero que os dois médicos a quem coube prestar assistência aos portugueses, verificaram que, além dos seus esforços e boa vontade de bem servir, com pouco mais poderiam contar para cumprirem a sua humanitária missão.

"Praticamente todo o recheio do hospital Dr. Carvalho, transferido para Quelicai, aí se perdeu; e o mesmo aconteceu nas sedes de delegação (Aileu e Baucau) a não ser uma malinha de mão, em que o signatário tinha juntado alguns medicamentos de urgência e instrumentos de pequena cirurgia para o caso, que se deu, de ser impossível empacotar para transporte, pelo menos o mais útil. 

"Em suma, ficamos reduzidos às existências das ambulâncias de Lahane e Liquiçá, as quais eram muito pobres, salvando-se todavia alguns utensílios de valor (autoclaves, mesa de operações, aparelho de Clayton), livros técnicos, etc, assim como bastantes frascos com medicamentos (infelizmente de pouco valor terapêutico por serem muito antigos) (...)-

"Feito o inventário, encontram-se ainda, em barricas e latas, razoáveis quantidades de: 

  • sulfato de sódio,
  •  borato de sódio, 
  •  ácido bórico, 
  • sulfato de cobre, 
  • enxofre, 
  • vaselina 
  • e permanganato de potássio. 

"Têm sido estes medicamentos, generosa dádiva da Providência, largamente empregados. 

"O material de penso existia em quantidade mínima, e temo-nos aguentado, poupando-o com a mais profunda avareza; hoje está reduzido praticamente a zero com exceção de uma quantidade mínima guardada para ferimentos graves, sempre prováveis. 

"Operações cirúrgicas, em condições de sucesso, são impossíveis. Falta o material cirúrgico e de penso, luvas, batas, toalhas, etc; e todo o material de anestesia, além dos medicamentos  necessários para acudir prontamente aos acidentados. Esterilizações perfeitas também não podem ser efectuadas por não termos petróleo para aquecer os autoclaves.

"Foi devido a estes factos que foi solicitado, que os quatro timorenses, auxiliares dos europeus, gravemente feridos por estilhaços de bomba (que ficaram profundamente situados nos tecidos), a quando do bombardeamento das vizinhanças do hospital, fossem operados no hospital nipónico. Os curativos consecutivos foram feitos por mim e enfermeiros em serviço no hospital, transferindo-se mais tarde os feridos: para a ambulância de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos. 

"As operações de pequena cirurgia e os curativos de feridas e úlceras têm-se feito todavia, utilizando-se os mais diversos recursos como, pano de roupa muito usada (a substituir a gaze). sumaúma (para almofadar as lesões da pele), ataduras de qualquer pano e mesmo de folhas de palmeira (servindo-nos as folhas verdes de palmeira esterilizadas à chama do álcool indígena, para tornar impermeáveis certos pensos) e tantas improvisações a que a penúria obriga. 

"Foram cedidos alguns medicamentos pelas forças nipónicas. Assim receberam-se em dezembro de 1942, dois mil e quinhentos comprimidos de quinino, e em maio de 1943 uma pequena quantidade de medicamentos, entre os quais havia 170 gramas de euquinina, que muito jeito fizeram para o tratamento do sezonismo das crianças.

"Em 18 de maio do mesmo ano foi entregue,  ao senhor Cônsul do Japão, uma lista dos medicamentos, material de penso e utensílios, essenciais para os portugueses. 

"Em 10 de setembro foram internados no hospital Dr. Carvalho dois timorenses com várias lesões traumáticas, tendo o médico nipónico, que os acompanhou, enviado algum material de penso para o seu tratamento. 

"Em novembro, ainda no mesmo ano de 1943, registaram-se casos de varicela tendo-se pedido, e obtido, alguns medicamentos, embora em pequeníssima quantidade. Em outubro, recebemos 400 tablóides de quinino a 0,10 g." (...)


Estado sanitário da população

(...) "Não nos afligiu, até agora, o cataclismo das grandes e mortíferas epidemias que tão facilmente se instalam nos aglomerados humanos em que o ajuntamento de várias famílias sob o mesmo teto, sem qualquer espécie de conforto, com falta de quase tudo, desde as roupas e material doméstico até à alimentação, que por ser pouco variada e reduzida (devido à sua dificílima aquisição, visto aparecer nos mercados em pouca quantidade e com custo incrível) não corresponde às normais necessidades da fisiologia nutritiva, por lhe faltarem quantidades suficientes de gorduras, proteínas e  os princípios vitamínicos essenciais à manutenção da vida sã. 

"A alimentação é pouquíssimo variada e é quase exclusivamente constituída por feculentos (milho assado, cozido ou em papa, arroz, mandioca, batata doce e inhames, sendo raras as batatas); fazem muita falta os ovos, carne e peixe em quantidade suficiente, os variados legumes, fruta, hortaliças e gorduras animais ou vegetais, pois não havendo há muito tempo o azeite de oliveira, são quase impossíveis de obter a banha e os produtos vegetais oleosos (óleos de amendoim e de coco, e amêndoas de "quiar"— 'Canarium molucannum', Blume — ). O leite é tão pouco que teve de ser racionado pelos doentes e crianças, exclusivamente. 

"Se acrescentarmos as preocupações diárias, o quase invencível desânimo, a vida sedentária, ou para muitos os rudes trabalhos das «hortas» a céu descoberto em clima tropical (ótimas ajudas para a acção dos agentes microbianos), facilmente concluiremos que fatalmente seríamos presa de doença, se não fora a sorte, segundo alguns, ou a ajuda Divina conforme a maioria crê. 

"Também não apareceram moléstias que, não existindo até agora em Timor,r  poderiam ter sido veiculadas pelos soldados (dengue, cólera, febre amarela, tifo exantemático, bilharzíase, per exemplo). 

"Durante o mês de dezembro registou-se em Liquiçá e Maubara o aparecimento de gripe com laringite e angina com carácter bastante transmissível, doenças que o sr. Delegado de Saúde de Liquiçá conseguiu tratar e evitar a sua difusão, lamentando-se o falecimento de duas crianças (filhas de europeus), uma de dois anos e outra de cinco anos de idade." (...) 


(ii) Eis a listagem alguns casos benignos de doenças ocorridos em 1943, 
segundo o relatório da autoridade de saúde:

  • sezonismo; 
  • disenteria bacilar e alguns casos de disenteria amibiana crónica; 
  • gripe; 
  • reumatismo; 
  • anginas; 
  • sarna (devido à falta de sabão) ; 
  • úlceras tropicais; 
  • corizas banais; 
  • parotidites; 
  •  varicela; 
  • alastrim; 
  • cáries dentárias, com ou sem abcesso; 
  • boubas (entre os timorenses); 
  • cólicas hepáticas; e várias neurastenias e histerismos próprios das circunstâncias. 

 (...) "Alguns portugueses que foram forçados a viver no mato durante meses, apresentaram sinais de beribéri:  paresias e insensibilidade ligeiras dos membros inferiores, astenia cardíaca e edemas na face e nos pés (dorso e à roda dos maléolos). Estes sintomas curaram facilmente com o tratamento baseado em alimentação rica em vitamina B1.

"Infelizmente já se registaram óbitos entre a população europeia. Os dois primeiros deram-se em Liquiçá no mês de novembro de 1943: um, devido a tuberculose pulmonar crónica (...); e outro  devido a angina de Ludwig (...), ambos em adultos. 

"Em dezembro faleceram duas crianças, na epidemia de gripe com laringite  e angina, de que acima falei." (...)

   Direcção dos serviços 

 (...)  "Também tive a honra de obter o assentimento de V Exª para a minha proposta da abertura imediata de um curso de enfermagem. Esse curso tem funcionado com bastante regularidade, tendo eu escrito as lições para os alunos a meu cargo,   circunstância bastante útil pois até agora não existia um guia para o estudo dos alunos. Também, acabadas as lições, cada futuro enfermeiro terá um formulário com os medicamentos usuais e já conhecidos por ele o que será de grande vantagem atendendo a que o enfermeiro isolado tem de atuar como clínico 

 "Em Liquiça, o senhor Delegado de Saúde [ dr. Francisco Rodrigues]  faz também um curso semelhante, devendo os exames ser feitos em abril do ano de 1944, no  Hospital Dr. Carvalho 

" Os doentes internados têm sido poucos pelo motivo de os timorenses terem receio dos bombardeamentos, preferindo viver e... morrer no mato. 

"Ao contrário, o posto médico é relativamente bastante frequentado para consulta, curativos e tratamentos ambulatórios dos quais se tem obtido resultados que satisfazem, embora não possuamos o material de penso e desinfetantes convenientes; como felizmente nos restava um pouco de salicilato de bismuto pudemos tratar boubas do pessoal timorense, preparando uma suspensão a 10% em óleo de coco, com magníficos resultados, como há muito tempo foi verificado pelos médicos desta Colónia, " (...)


(iii) O dr. José dos Santos Carvalho diz que, nesse ano de 1943,  foram hospitalizados "44 doentes sendo a média diária de 7", 
 por doenças tais como: 

  • varicela, 
  • parotidite, 
  • sarna, 
  • feridas, 
  • gripe, 
  • úlceras, 
  • blenorragia 
  • e tuberculose pulmonar. 

(...) "Faleceram 3 timorenses (parotidite complicada, 1; gangrena, 1; úlcera crónica, 1); e um chinês (tuberculose pulmonar crónica) . 

"Foi também internada uma mulher em estado de parto que verifiquei ser distócico; por felicidade existia no hospital um fórceps de modelo arcaico, o qual, todavia, não me deixou ficar mal. " (...)

 Secretaria da Repartição 

 
(...) "O arquivo da Repartição perdeu-se em Quelicai. Tendo sido feita, por ordem de V. Ex. a , uma escolha de documentos nos montes de livros e papelada constituídos por arquivos de várias repartições, resultou encontrarem-se alguns respeitantes a esta repartição (pouco importantes), várias revistas médicas e a colecção quase completa do Boletim Sanitário da Colónia que guardei e ordenei. 

"Assim consegui juntar os elementos suficientes para a preparação consciente de um projecto minucioso de remodelação dos Serviços de Saúde em que trabalho há tempos. Também foram encontrados estudos botânicos sobre a Colónia de Timor, que me facilitaram extraordinariamente a elaboração de um trabalho sobre medicamentos vegetais provenientes de plantas de Timor, nativas ou já aclimadas, com o fim de divulgar propriedades terapêuticas dessas plantas, pouco conhecidas, visto que poucas drogas farmacêuticas possuímos." (..,)

 Funcionários 


 (iv) Sobre o comportamento e o movimento dos seus funcionários,  o chefe (interino) da repartição técnica de higiene e saúde, faz o ponto da situação em 31 de dezembro de 1943 (pp. 155/156).  
Resumindo:

  • Dos 4 médicos, 2 tinham morrido;
  • O farmacêutico estava ausente;
  • Dos 16 enfermeiros, 2 tinham falecido, 1 estava desaparecido e 7 estavam ausentes;
  • Dos 31 auxiliares de enfermagem,  19 estavam ausentes,
  • Dos 4 enfermeiros estagiários, 1 estava ausente e outro pedira a exoneração.
Ou seja,  de um total de 52 profissionais de saúde, 34 (c. de dois terços) tinham falecido, ou desaparecido, ou estavam ausentes.

 Conclusões

(...) "O estado sanitário da população é razoável, porém, é muito de temer, por possível e provável, a irrupção de moléstias graves que levem à morte muitos portugueses, se as condições de vida não se modificarem, nomeadamente no respeitante à alimentação e aos meios de combater as doenças. 

"O pessoal dos Serviços de Saúde é suficiente e cumpridor pelo que é de prever que, quando possuir os meios necessários,  deve satisfazer." (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas, título: LG)
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Nota do editor:

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26019: In Memoriam (512): Finalmente foi feita a trasladação do Soldado At Inf Manuel Agostinho Mendonça de Oliveira, o único morto da CCaç 4150, para a sua terra natal, Soutelo de Matos, Pensalvos, Vila Pouca de Aguiar (Albano Costa)

IN MEMORIAM

Soldado At Inf Manuel Agostinho Mendonça de Oliveira (1952 - †1974)
Vítima de acidente com arma de fogo


1. Mensagem do nosso camarada e amigo Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150 (Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de 7 de outubro de 2024:

Ontem, dia 6 de Outuro de 2024, finalmente foi feita a trasladação do único morto que a minha CCaç 4150 teve (fizemos a nossa comissão na Guiné, em Bigene e Guidage), para a sua terra natal, em Soutelo de Matos, uma povoação muito pequena em termos de habitantes, onde esteve até sábado de manhã, sendo depois foi mudado para a capela mortuária de Pensalvos, para que toda a população local lhe pudesse prestar a última homenagem.

Depois de serem realizadas todas as cerimónias religiosas, que já deveriam ter sido feitas há 50, foi em cortejo fúnebre até ao cemitério, onde foi a sepultar em jazigo de família.

Foram feitas as honras fúnebres pelos militares, como tinha direito, por ter falecido ao serviço da Nação.

Também estiveram presentes a Sr.ª Presidente da Câmara de Vila Pouca de Aguiar e da Junta de Freguesia de Pensalvos e várias colegas da companhia que há 50 anos assistiram ao infortúnio do Manuel Agostinho Mendonça Oliveira, ocorrido a 2 de Abril de 1974.

Finalmente fechei o meu ciclo militar, e também fiquei mais leve comigo próprio. Pela missão cumprida.

Transcrevo o discurso feito pelo nosso comandante que também fez questão de estar presente para fazer(mos) a última homenagem.

"Caros familiares e amigos do Manuel Agostinho MENDONÇA Oliveira e seus camaradas de guerra
Digníssimas autoridades presentes
Minhas Senhoras e meus Senhores

Saúdo os familiares e amigos do MENDONÇA, as autoridades locais, os elementos da nossa Companhia que disseram presente e todos os que quiseram associar-se a esta cerimónia.
Cerimónia que acontece com 50 anos de atraso e mesmo assim só possível devido ao esforço e empenho de alguns de nós e algumas entidades oficiais.

Quando era responsável pela Companhia durante a sua formação na Amadora, a minha maior preocupação foi incutir nos homens um espírito de grupo muito forte e dar-lhes a melhor preparação possível, pois sabia que nas condições em que íamos estar, cada um dependia de todos e todos dependíamos de cada um. Tinha uma forte convicção que independentemente de tudo, conseguiríamos sobreviver.

Cada um de nós, quando partimos em 22 de setembro de 1973 rumo à Guiné para cumprir uma comissão de serviço na guerra colonial ou do Ultramar, como se dizia, levávamos na bagagem muitas coisas, mas também uma grande ilusão, uma vontade, um acreditar que um dia voltaríamos a casa sãos e salvos.

Todos nós lá deixámos muito, muito do nosso suor e muitas lágrimas, alguns derramaram o próprio sangue, outros perderam partes dos seus corpos e um, o MENDONÇA, perdeu a vida, naquele fatídico dia 2 de abril de 1974. E o facto de ter sido apenas um, já foi demais.

Neste momento, assaltam-me sentimentos contraditórios: satisfação por finalmente ele vir descansar junto dos seus na terra que o viu nascer, crescer e partir para a guerra, mas também de tristeza e perplexidade por ter sido só hoje o seu “regresso”, o que não permitiu que os seus familiares tivessem feito na devida altura o luto que se impunha.

Tínhamos pouco mais de vinte anos e assistir à morte de um dos nossos não era coisa fácil, não foi coisa fácil e os seus efeitos prolongaram-se no tempo.

Por isso, sobretudo para os seus camaradas de armas, alguns aqui presentes, esta vivência é uma catarse, é, decerto, a melhor oportunidade para fazer a reconciliação com o passado e que as recordações que guardamos sejam de serenidade e não de revolta.

Esta trasladação, que penso ser o nosso último ato oficial enquanto “família militar da Companhia de Caçadores n.º 4150/73”, vai ser o reencontro com a nossa paz interior na certeza do dever cumprido.

Ao soldado MENDONÇA, prestamos hoje a nossa homenagem final. Com o regresso à sua terra, cumpre-se um ciclo de vida e de sacrifício, de história e de memória. Que o seu descanso seja, finalmente, pleno e em paz.

À sua família, que durante todos estes anos carregou no coração o peso da saudade, as nossas mais sinceras palavras de respeito. Sabemos que este momento, por mais solene que seja, não apaga a dor da perda, mas que, de alguma forma, esta trasladação possa trazer uma sensação de conclusão, sabendo que o MENDONÇA repousa agora no lugar que lhe pertence, ou seja, na sua terra natal.

A todos os que tornaram possível a realização desta cerimónia o meu reconhecimento, com uma referência especial aos camaradas da nossa Companhia.

Que fique em paz!
E que os nossos camaradas, entretanto falecidos, também estejam em paz!
Muito obrigado."


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Nota do editor

Vd. post de 23 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25972: In Memoriam (511): Trasladação de Lisboa para Vila Pouca de Aguiar dos restos mortais do Soldado At Inf da CCAÇ 4150, Manuel Agostinho Mendonça de Oliveira (1952 - †1974), vítima de acidente com arma de fogo em Guidaje, a ter lugar no próximo dia 6 de Outubro de 2024 (Albano Costa)

Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois do relato surpreendente do tenente da Armada Real que andou em 1888 na delimitação de fronteiras, pareceu-me necessário voltar à questão do Casamansa, um dos efeitos mais dolorosos provocados pela ambição francesa, ignorantes e obtusos quanto à delicada questão dos povos ali residentes, forçados a entrar num espaço para eles inaceitável. E, como é público e notório, a questão perdura e perdurará. A investigadora Maria Luísa Esteves é mestra na organização do seu trabalho, enquadra de forma simples e incisiva a questão do Casamansa na perspetiva histórica da presença portuguesa, a parte da situação económica, continuamente desfavorável para Portugal, agravada pela presença dos Filipes, pelo analfabetismo político naquela monarquia constitucional em que Alexandre Herculano teve que desancar uma besta quadrada. Creio que o leitor ganhará mais elementos através desta visão de conjunto que este clássico da historiografia oferece, traz mais luz àqueles acontecimentos que o tenente da Armada Real Cunha Oliveira descreveu num relatório sem precedentes, agravado pelo seu desgosto em constatar a indiferença dos políticos portugueses pela Guiné, levado nas conclusões a conclamar: ou se desenvolve a Guiné ou então entreguem-na à França.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Atenda-se ao que escrevem a investigadora e Carlos Cardoso, este então a presidir o INEP:
“Ontem, objeto de disputa entre as potências de então, principalmente entre Portugal e a França, e hoje motivo de reivindicações por parte das populações que o habitam, este território, que perfaz 28,350 km2, ou seja, 1/7 do Senegal, denominado Casamansa, continua a despertar a atenção a historiadores e homens políticos. Com efeito, devido ás suas características naturais esta região cedo foi objeto de preocupação por parte daqueles que queriam ‘descobrir’ África.”

Parece-me também útil relevar da nota prévia: “Portugal e a França, até 1830, tiveram uma posição definida na Guiné. A partir dessa data, a influência francesa acentua-se lentamente após a fundação de uma feitoria no rio Casamansa (…) Para fazer uma descrição tanto quanto possível do Casamansa e da sua importância através dos tempos, fomos buscar elementos aos autores do século XV, XVI e XVII, que se lhe referem, como Luís de Cadamosto, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco Lemos Coelho.”

A autora observa que o grande mentor da defesa dos direitos portugueses ao Casamansa foi o visconde de Santarém, cuja obra Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos Portuguezes na Costa d’África occidental; para servir de illustração à chronica da Conquista de Guiné por Azurara se tornou a base histórica de toda a discussão diplomática. Depois da convenção de 12 de maio de 1886, o que parecia simples e resolvido levou a contendas sucessivas, notas diplomáticas azedas, era difícil saber o que rigorosamente pertencia a cada país. Uma tentativa de ultrapassar o impasse, os dois países aprovaram a constituição de uma comissão mista que se deslocou à Guiné em 1888 (conhecemos o conteúdo desta atividade através do artigo-memorial de Cunha Oliveira, detalhadamente referido aqui no blogue), havia a intenção de marcar as áreas de influência de cada uma das partes. Surgiram obstáculos e divergências, como se observou acima, tudo fora feito pelos negociadores sem ter havido previamente o levantamento topográfico dos locais a delimitar para, sempre que possível, se respeitarem as divisões naturais. Os impasses sucediam-se, organizaram-se missões que 1900 a 1905 se irão ocupar da balizagem das fronteiras, procedendo ao reconhecimento de certos rios, à troca de territórios, à colocação de pilares. Por muito que o leitor se surpreenda, a demarcação da fronteira luso-francesa da Guiné só se pode considerar definitivamente concluída depois dos trabalhos de 1930 e 1931.

Postos estes prolegómenos, a autora procede esquematicamente a dados da presença portuguesa na Guiné: provavelmente quem aqui chegou em primeiro lugar terá sido Álvaro Fernandes, em 1446, segue-se Luís de Cadamosto na segunda viagem à Guiné, em 1456; meio século adiante, no manuscrito de Valentim Fernandes, há uma descrição minuciosa do Casamansa; em 1594, mais notícias se vêm juntar e desta vez dadas pelo capitão André Álvares de Almada numa outra obra fundamental, Tratado Breve dos Rios de Guiné (capítulo VIII ‘Que trata do reino do Casamança e do que nele há’).

Chegados ao século XVII, deparam-se-nos três manuscritos de indiscutível importância – um de 1625, Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde, outro de 1669, Descripção da Costa da Guiné desde Cabo Verde até à Serra Leoa, com todas as ilhas e rios que os brancos assistentes nella navegão, e o último de 1684, Discripção da Costa da Guiné e Situação de Todos os Portos e Rios Della, e Roteyro Para se poderem Navegar todos seus Rios (associado aos nomes de André Donelha e Francisco Lemos Coelho).

Depois da Restauração, o capitão-mor de Cacheu, Gonçalo de Gamboa de Aiala, fortificou Ziguinchor, este vai ser o único porto digno desse nome, até ao século XIX. Apesar do panorama desanimador do movimento comercial no início do século XIX, as relações dos naturais com o presídio eram boas devido à influência da família Carvalho Alvarenga, aparentada com o régulo de Ziguinchor. Alguns portugueses procuravam alertar os responsáveis e demonstrar que a perda da presença portuguesa na região seria uma catástrofe para o país, pois “aquelle rio exporta o dobro do que exportam os outros pontos juntos” e é o “maior rio d’Africa Portugueza”.

Depois desta contextualização, a autora expõe a situação económica da Guiné através dos séculos, como aqui se resume. Expedições de Cid de Sousa (1453), Cadamosto (1455) chega ao Geba; Diogo Gomes terá precedido em 1454 Cadamosto. Recorda-se a capitania em Arguim e como D. Afonso V arrendara os “trautos da Guiné” a Fernão Gomes. É também recordado que o comércio da Guiné estava eivado de grandes defeitos: por um lado, o controlo exercido pela administração régia; por outro lado, a indisciplina dos particulares que se entregavam à atividade mercantil da forma mais arbitrária, e com perda de réditos para a Fazenda.

A presença lusa na Guiné limita-se ao princípio ao litoral e às margens dos grandes rios. Era nestes pontos, quase isolados entre si, que se exercia a influência portuguesa. Em fins do século XVIII não havia uma ocupação efetiva na Guiné. Os franceses estabelecem companhias de comércio em África e, para justificarem a sua presença, inventam a lenda das viagens dos normandos à Guiné no século XIV.

A Companhia de Cacheu formou-se em 1675, de que a Fazenda Real era acionista, ficava com o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Mas era tarde, a derrota da Invencível Armada, em 1588, lançou definitivamente a Inglaterra a caminho da costa da Guiné – vai aparecer a feitoria da Gâmbia, berço da futura colónia inglesa.

Em 1677, os franceses conquistaram aos holandeses a ilha de Goreia e assim começou verdadeiramente a ocupação militar do Senegal. Só pelo Tratado de Versalhes, de 3 de setembro de 1783, a França fica senhora sem mais contestações da região compreendida entre o Cabo Branco e a Gâmbia, enquanto esta e a Serra Leoa pertenciam à Inglaterra. A nossa presença sempre em deterioração. Arguim caiu em poder dos holandeses no tempo dos Filipes, em 1638. Ali tinham permanecidos os portugueses durante séculos, datando de 1461 a ordem de D. Afonso V para se edificar um castelo na ilha.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26010: Notas de leitura (1732): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26017: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (13): Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco) e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 >


"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar." (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

 


1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, pp. 475/484) reproduzimos , com a devida vénia e em jeito de homenagem póstuma ao autor, o relato do seu reencontro, no anexo, em Campolide, do HMP (Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa) com o antigo soldado do seu pelotão, na CART 1690, o Manuel Fragata Francisco. Usámos a versão que   ele que nos deixou na sua página do Facebook, na postagem de 22 de setembro de 2019. (*)

No livro (de 2015) o Fragata aparece sob o nome fictício de Gabriel (pág. 476).

Recorde-se que o soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), "um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate" , foi ferido e feito prisioneiro pelo IN no decurso da Op Invisível, em 19 de Dezembro de 1967. Na mesma ocasião, foi "dado como desaparecido" em companha (na realidade terá sido morto,  e o seu corpo nunca foi recuperado) o alf mil Fernando da Costa Fernandes, natural de Santo Tirso. (Este oficial tinha vindo para a CART 1690, para substituir o A. Marques Lopes, entretanto evacuado parta o HMP, na sequência da mina A/C acionada em 21/8/1967, na estrada Geba-Banjara, que vitimou mortalmente o cap art Manuel Guimarães).

O alferes Fernandes será mais tarde, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda.

(...) "Mas a história toda [do Fragata ] foi-me contada pelo comandante Gazela [do PAIGC, em Bissau, ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês dr. [Mário] Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento, o Fragata foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC - "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra. " (...) (**)

Quanto ao A, Marques Lopes, recorde-se que esteve em tratamento durante nove meses no hospital da Estrela. Voltou para a Guiné, em maio de 1968,  para cumprir mais 10 meses de comissão de serviço, neste casao na CCAÇ 3, que estava aquartelada em Barro, na zona do Cacheu. Foi comandante do grupo de combate "Jagudis",



 Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco)  e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)




Fui depois à junta médica. Era um coronel e um tenente-coronel. Não sabia mas pensei que deviam ser médicos já que chamavam médica àquela junta. O coronel puxou duns papéis. Folheou-os, os dois olharam depois para eles e cochicharam. Devia ser do meu processo, pensei.

– O ouvido esquerdo tem 10% de incapacidade, no direito tem 20%. De resto está tudo bem - ouvi dizerem.

Foi tudo rápido.

O coronel juntou os papéis e disse:

– Está apto para todo o serviço.

O tenente-coronel abanou a cabeça que sim. Levantaram-se os dois.

– Vá ao Depósito Geral de Adidos. Leve isto.

Estendeu-me um dos papéis e vi que era a ordem para me apresentar lá.

Grande fantochada, fui pensando depois daquilo. Mera formalidade porque já tinham decidido que devia regressar à Guiné. Já sabia que os feridos, depois de curados tinham que ir terminar a comissão. Mas é se estivessem mesmo curados, em condições, também sabia isso. O grau de incapacidade por eles apontado não era verdadeiro. Como é que podia ser se o médico que me tratara dissera que o tímpano esquerdo tinha colado mas o direito não, que ia continuar com um buraco? Filha da putice.

Fui para o DGA, Depósito Geral de “Ardidos”, como a malta lhe chamava.

No primeiro dia decidi deslocar-me ao Anexo do Hospital Militar em Campolide para ver o Fragata. Não foi fácil entrar.

– Só os familiares é que podem visitar os doentes  
– disse-me o Oficial de Dia, um alferes.

 – Espera lá. Não sei se és do quadro ou se és miliciano, isso não interessa porque hás-de perceber uma coisa. Eu conheço esse homem há quase dois anos, foi sempre do meu pelotão e, na Guiné, do meu grupo de combate. O tempo que lá passámos tornou-nos da mesma família, fomos unha com carne em situações complicadas. Hás-de imaginar, não? Pergunta-lhe a ele.

Nunca me chegou a dizer se era ou não miliciano. Mas, uma coisa ou outra, nunca tinha estado na guerra, concluí. Senão ter-se-ia aberto logo também, era o normal quando dois combatentes se encontravam. Depois de mais alguma conversa e reticências acabou por ceder. Sobretudo depois de eu lhe dizer que ia voltar para a Guiné.

 
– É pá, vai lá, pronto. Mas, faz favor, se alguém te perguntar diz que és irmão ou primo, ou outra coisa qualquer da família.

Consultou uma lista, disse-me qual era o quarto em que o Fragata estava e indicou-me o caminho para lá.

À medida que ia andando espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-me estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Havia alguns que pareciam melhor, mas vi homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também. Ainda bem que não era para falar com eles que ia. Só de ver já era impressionante. Se tivesse de os ouvir contar como foi, estavam stressados de certeza, devia ser terrível.

Ia tão com intenção de só ver o Fragata que não me passara pela cabeça que, no quarto dele, podia encontrar igual panorama. E encontrei mesmo quando lá cheguei e vi as quatro camas. Fiquei especado à porta, atónito. O Fragata estava com uma perna engessada, numa cama estava um sem mãos e a cara com manchas esverdeadas, noutra um sem pernas e, fora o que me deixara estarrecido, vi numa das camas um tronco de homem com uma cabeça.

 
– Olha o meu alferes!

Foi assim que o Fragata me fez voltar a mim e dar uns passos até à cama dele.

– Como é que estás, Fragata? 

Ainda tinha a voz entaramelada, não me recompusera ainda daquela visão.

– Não estou mal, meu alferes. Tenho braços e pernas. Aqui sou o que estou melhor, como vê.

– Mas o que é que tens?

– Levei uma rajada e fiquei com um joelho todo lixado. Foi naquele sítio onde estivemos primeiro, em Sinchã Jobel, lembra-se? O meu alferes até ficou lá toda a noite.

Disse-lhe que me lembrava. Os outros do quarto ouviam com atenção.

– O meu alferes lembra-se daquela chapada que me deu?

Fora uma vez em que tinha ido ver como estavam as sentinelas da noite no quartel e tinha visto que o Fragata não estava no posto em que devia estar. Tinha ido ter com uma bajuda. Fora ter com ele todo chateado e perguntara-lhe se queria uma chapada ou uma participação por abandono do posto. Ele ficara à rasca e preferira levar na cara.

 
– Era melhor não ma ter dado – continuou o Fragata. – Preferia ter levado uma porrada e mudar de companhia. Já não me tinha metido nisto.

 – Foi o que foi. Não te metias nesta metias-te noutra. Mas ouve lá: o alferes Domingos Maçarico Zé Pedro, que também foi ferido numa operação a esse sítio e foi evacuado, disse-me que os gajos te levaram para um hospital deles. Como é que foi isso?

O Fragata ficou uns segundos silencioso.

 
– Olhe, meu alferes  –acabou por dizer – os mandões proibiram-me de contar mas eu estou-me cagando, quero que eles se fodam. Desculpe, meu alferes  – mera por causa da linguagem. –  A estes aqui e à minha família já contei e vou-lhe contar a si também. Aquela operação foi muito má para nós. Fui ferido, a nossa malta pensou que eu estava morto e não me pôde apanhar. Os do PAIGC,  sim, apanharam-me e quiseram-me levar para o hospital deles mas, como eu não podia andar, tiveram de me levar numa maca até Ziguinchor.

Quando o Domingos Maçarico me contara cheguei a interrogar-me como o teriam feito, não achava que fosse possível. Agora ficara admirado, fora mesmo.

 
– Desde a mata central da Guiné até ao Senegal, cuidado!

–  Foram dez dias a atravessar matas, bolanhas e rios, e a fugir dos nossos também. Nem queira saber o que eu passei.

 
– Imagino, sim, imagino. Não deve ter sido nada fácil. E como é que foste tratado lá?

 – Foi um médico português desertor, o doutor Pádua, que me tratou do joelho. E muito bem. Eu tinha a rótula partida, ele arranjou-ma e pôs-me a andar de muletas. Disse-me que tinha já uma infecção e que teria morrido de certeza se eles não me tivessem levado e tivesse lá ficado.

– Estava lá mais algum português ferido?

– Não. Onde eu estava era só malta do PAIGC, também feridos da guerra.

 
– Só!? E davam-se bem?...

Estava curioso e interessado em saber como era que os feridos pelo lado do Fragata o aceitavam ali com eles.

– Demo-nos bem. Olhe, até fiz lá amigos. O chefe deles, o Luís Cabral, levava-me, às vezes, cigarros e eu dava alguns aos outros. Era malta porreira. E olhe, meu alferes, devo agradecer ao Luís Cabral porque foi ele que conseguiu que a Cruz Vermelha me trouxesse para Portugal. É mesmo um gajo porreiro.

Espanto ouvir isto de um inimigo de um lado sobre inimigos do outro lado. E ver que estes não hostilizavam o outro. Mais uma vez me tinha de interrogar sobre o significado da palavra inimigo naquela guerra. Mais uma prova que o eram à força, que alguém é que queria que fossem inimigos.

Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.

 
– Como é que foste ferido?  –perguntei ao que não tinha mãos.

 – Era o furriel de minas e armadilhas e… já sabe. Estava a desmontar uma armadilha e ela rebentou-me nas mãos.

– Aí o Quim está fodido. Nem uma punheta pode bater – disse o Fragata.

E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.

 
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.

Admirei-me pois não imaginava que a tropa se preocupasse em cuidar desse aspecto com os feridos que ali tinha. Se calhar era um esquema organizado por eles, também podia ser. 

Virara-me para o que não tinha pernas e ia-lhe perguntar mas ele antecipou-se.

 
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC,  levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro  – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.

Fiquei silencioso. Além dos mortos, até tinha entre eles uns amigos, havia estes jovens com a vida desfeita, sem hipóteses do futuro que podiam vir a ter se não os metessem naquela guerra. O Casqueiro sobretudo. Estava ali, rosto fixo sem ouvir nada da conversa deles. Era um homem-saco só podendo abrir a boca para lhe meterem comida e água. Já reparara que devia ter uma fralda, de certeza que era onde fazia as necessidades. As deste muito mais, mas os outros também tinham ficado com grandes limitações. O Fragata safara-se, e graças ao inimigo. À vista disto já não era a estupidez ou as barbaridades como se fazia a guerra que me perturbavam, era a guerra em si, e sobretudo esta sem sentido que deixava tantos sem futuro.

Os outros notaram como eu estava. O Fragata quis amenizar. Era palerma, às vezes, mas era bom rapaz. Eu sabia disso.

– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles  
– disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se.  – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho  – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete!  – os outros riram-se novamente. –  E à noite? Nem queira saber.  Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.

Já vira, já vira a malta inutilizada e traumatizada ali despejada. Aquelas piadas eram um intervalo curto nas suas horas longas de angústia e desespero. Tinha de sair dali.

–  Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?

– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.

 
– É melhor. Conta lá essa do mijo aos camaradas.

Apertei a mão ao Fragata e ao Fragoso, um coto ao Quim e dei uma palmada no ombro do Casqueiro. Este fez um esgar de saudação. Não ouvira nada mas já devia estar habituado a imaginar.

Dois dias depois, no DGA, meteram-me nas mãos uma guia de marcha para embarcar no Uíge e apresentar-me no Quartel-General do CTIG. O embarque era daí a três dias. Ardera mesmo, concluí. Da primeira vez ainda fora embalado na ignorância, mas agora não, já sabia bem como era aquilo, até já vira as consequências. Porque não fazer como alguns fizeram, o Gonçalves por exemplo, dar o salto para França? Andei todo esse dia em que me deram a guia de marcha a pensar nisso.

À noite marquei um encontro com o meu novo contacto. Falei-lhe da ideia de dar o salto mas ouvi-o dizer o mesmo que já o Herculano Carvalho já me dissera. Que era melhor não desertar, que havia trabalho a fazer na Guiné.

 
– Tens guia de marcha para o QG do CTIG, não é? Ali é que é porreiro. Não vais para o mato e, ali no QG, podes conversar sobre a situação com muita gente. É ótimo sítio para tal.

***

Grande navio, não era nada como o Ana Mafalda. Como não ia integrado em nenhuma companhia era só dormir, comer, jogar às cartas, apanhar sol. Ia um grupo em rendição individual e foram todos bons parceiros. Foi uma viagem magnífica.

Desta vez não foi como da primeira, quando tivera de saltar do Ana Mafalda para uma LDG e seguir logo rio Geba acima. Agora desembarquei em Bissau e fui apresentar-me na Repartição de Pessoal do Quartel General.

–  Você vai ser colocado numa companhia do recrutamento da Província que está lá em cima, ao pé do Senegal  – disse-me um capitão.

Abri a boca de espanto. Mas que merda era esta?!

– Mas, meu capitão, eu vim do hospital da Estrela. Não estou em condições de ir para uma companhia operacional.

– É, pá, tem de ser. Há um alferes de lá que teve de ser hospitalizado e é preciso substituí-lo urgentemente.

– Mas eu estou à rasca dos ouvidos. Como é que vai ser?

– Paciência, nosso alferes. Amanhã, logo de manhã, sai uma DO para levar os frescos e o correio, você vai nela. O capitão de lá já está avisado.

– E não posso ir para a companhia onde estava antes?

 
– Você já foi substituído lá há uma data de tempo. Pensa que tinham lá um lugar em aberto para si, é?  – fez um sorriso irónico. – É o que você vai fazer agora, vai substituir outro.

– Mas o que me foi substituir na outra companhia morreu, eu sei…

– E também já foi substituído, é assim. Prepare-se para partir amanhã.

Que merda! Que fazer? Nada, não podia fazer nada. Apenas ficar furioso e desforrar-me com uns uísques no bar de oficiais.  (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo de A. Marques Lopes, 1944-2024) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).

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Notas do editor:


domingo, 6 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26016: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (38): "Vidas por um fio" (II)

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Vidas por um fio (II)

Que bem estava assim de papo para o ar, quando minha mãe entrou no quarto e me disse:
- Meu filho, está lá fora o António e pede encarecidamente que vás ver o seu filho, que está a morrer.

Eu havia chegado nesse momento a Vale de Cambra para um fim de semana, vindo do quartel militar da Amadora onde aguardava o meu embarque para a Guiné. Estava cansado porque os trezentos quilómetros da altura, não eram os de hoje.

Em toda a minha vida clínica, vi muitas vidas por um fio. Mas nenhuma, como esta, se manteve tão enraizada na minha memória. O rapazito, de cinco ou seis anos, estava estendido numa pequena cama, inconsciente, branco como a cal, exangue. Tinha leucemia, segundo o diagnóstico de um pediatra de Espinho. A seu lado, sentada num pequeno mocho, a Tia Alzira esperava o último suspiro para o preparar.

- Amigo António, o seu filho está a morrer e precisa sem mal nem morte de uma transfusão de sangue. Tenho de o levar a qualquer lado.
- Nem pense, Sr. Doutor, o meu filho morre, mas morre em casa.

Foi aí que a minha força de jovem médico e o meu sangue na guelra me deram a crueza para lhe responder:
- Pois se você não mo deixa levar, ficará para sempre como culpado da sua morte.

Numa golfada de lágrimas, o pobre do homem, vencido, cedeu:
- Leve-o consigo, Sr. Doutor, para onde bem entender.

Eu tinha um velho Hillman Minx que era do meu pai.

Já noite cerrada, fui chamar um vizinho, o Urgel, e pedi-lhe que viesse comigo. Sentou-se no banco de trás com a criança ao colo e com a velocidade possível dirigi-me ao pequeno hospital de Oliveira de Azeméis. Contactei um colega que ali trabalhava, mais velho do que eu e que eu conhecia, a quem esmolei um pouco do sangue que por ali houvesse.

- Lamento muito, meu caro colega e amigo, mas não temos uma gota de sangue.

Corri para a minha carripana que eu muito desejaria que fosse um avião e rumei ao velho Santo António do Porto. Pouca gente se deve lembrar da urgência antiga do Santo António, com seus velhos claustros de paredes escuras e frias. O menino, deitado numa maca e embrulhado num cobertor, fez duas transfusões durante a noite. Ao raiar do dia abriu os olhitos espantados. A cal das suas pequenas bochechas tornara-se levemente rósea.

Foi internado na pediatria onde permaneceu nove meses. O diagnóstico de leucemia nunca foi confirmado, mas sim, uma grave doença hemolítica que, muito lenta e progressivamente, se foi compensando.

Hoje é pai de filhos e avô de netos.

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Nota do editor

Último post da série de 29 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25993: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (37): "Vidas por um fio"

Guiné 61/74 - P26015: (In)citações (265): "Entre o Sono e Sonho, Pesadelos", por Juvenal Amado, dedicado a "Manuela"

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 4 de Outubro de 2024:

Caros camaradas
A nossa geração foi moldada por tempos difíceis, mas nada nos preparou para vermos os nossos sofrer com impiedosas maleitas de fim incerto que a vida nos presenteia. 20 meses passados veio a notícia de que o mal disseminado pelo o corpo todo, tinha sido derrotado.

Mais uma vez o SNS na forma do hospital S. Francisco Xavier e IPO foram o caminho para esta vitória sobre o sofrimento e a adversidade. Bem hajam os médicos , técnicos e enfermeiros pelo o trabalho e carinho.
Abraços



ENTRE O SONO E SONHO
PESADELOS


A notícia chegou nas asas negras do desespero
Ouvíamos silenciosos
Expectantes incrédulos
Estaria a falar de ti ou seria um sonho?
A portadora tentava modelar o impacto
devastador da confirmação
A negritude da noite pairava
Apertei-te a mão
Vieram as sessões de quimioterapia
Num acto de coragem rapaste o cabelo
Ali estavas desprovida de adornos
Bela na sua face mais primária
Os vómitos as dores os desânimos
O internamento as transfusões
Regressaste a casa com uma força que nunca julgaste ter
A pele cor de terra
Afundada na neutropenia
A seguir emergias
Reerguias-te do vale de sombras
Para continuar o combate desigual
Perguntavas se terias salvação e sorrias
Orgulhosamente olhaste a morte de frente
O calvário continuou com a rádioterapia
Sem queixume sem pragas
Só doçura só amor pelos outros
Esperas o que Futuro nos trás
És a imagem própria coragem
Tu nunca aceitaste a finidade sem luta
O longo sono pode esperar
Mais uma vez venceste.


“Para Manuela”.
Juvenal Sacadura Amado

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Nota do editor

Último post da série de 26 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25984: (In)citações (264): Naquela época era-nos proibido falar muito sobre a política da guerra em África (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

Guiné 61/74 - P26014: Humor de caserna (76): O Piteira , alentejano de Bencatel, "voando sobre um ninho de cucos, na prova de "slide" em Lamego (José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra", vol. I, Lisboa, Chiado Editora, 2016, pp.43-49)



Lamego > CIOE > Novembro de 1966 >  O futuro "ranger" Piteira, na prova de "slide".

Foto: © José Ferreira da Silva (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  O José Ferreira da Silva, ex-fur mil op esp / ranger,  CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),  é sobejamente conhecido na Tabanca Grande como uma mestre na arte de contar histórias pícaras. E, claro, é um homem afável.

"Histórias Boas da Minha Guerra", em  3 volumes (publicadas sob a chancela da Chiado Editora), são a prova de que os antigos combatentes da Guiné, além de terem de ser bons operacionais, também sabiam escrever,  com piada e talento , sobre muitas das suas peripécias da tropa e da guerra.

O Silva da CART 1689, o nosso mestre do pícaro,  é sempre desconcertante nas histórias "boas" que elegeu da sua vida militar: muitas delas são de antologia, como esta que voltamos aqui a reproduzir, em que o protagonista é "o Piteira, o ranger do Alentejo".  Espero que gostem e comentem. 

Por lapso, o autor chamou "rapel" à prova de "slide". Tomámos a liberdade de corrigir o erro.

 

 Humor de caserna >   O Piteira, "voando sobre um ninho de cucos", na prova de "slide" em Lamego

por José Ferreira

 

O António Piteira, natural de Bencatel, próximo de Borba, era uma força da natureza. Conheci-o em Vendas Novas, durante o Curso de Artilharia. Irrequieto e provocador, vivia sempre em competição, parecendo querer afirmar-se em tudo.

Dizia-se que nas Caldas da Rainha, estando doente, não aceitou o resultado da prova de potência. Foi repeti-la, para baixar mais de 30 segundos.

Como era bom jogador de futebol, foi aproveitado para jogar como ponta de lança no Estrelas de Vendas Novas. Ainda como jogador do Lusitano de Évora, foi treinar ao Sporting e, segundo ele, como não lhe passavam a bola, abandonou o treino chamando-lhes "filhos da p...".

Foi com ele que comecei a gostar do Alentejo e da sua gente. Enquanto no Norte dificilmente nos manifestávamos politicamente, com medo de represálias, ali, com ele e alguns amigos, participei em algumas sessões, marcadamente revolucionárias.

Mais de meio ano depois, em setembro de 1966, encontrámo-nos em Lamego para prestar provas para o curso de "ranger". Curioso que nem ele nem eu desejávamos lá ficar. Por isso, durante as provas de selecção, tudo fizemos para ficarmos em último lugar. Porém, de nada nos valeu essa artimanha e obrigaram-nos a ficar lá. 

Foi logo decidido que seríamos “parelhas”. A organização por parelhas significava que todos os instruendos estavam obrigatoriamente ligados em grupos de dois e que teriam que fazer tudo em conjunto, numa missão de entreajuda total. E, além disso, que qualquer falta cometida por um deles teria que ser “paga” pelos dois, presumindo-se que a “culpa” era de ambos.

Inicialmente, o nosso relacionamento foi muito bom. Todavia, devido às suas aventuras e provocações, passávamos muito do tempo a discutir. Uma das coisas que ele gostava era de exibir as calças da farda de trabalho nº 3,  abertas / descosidas entre as pernas.

Num dia muito frio de finais de novembro, estava anunciada a descida noturna em "slide", desde a torre da Sé para a parada. Pois o amigo Piteira descobriu logo ali mais uma forma de se exibir. Disse-me que deveria ser engraçado descer com o cigarro aceso que, com o movimento da descida, pareceria um cometa. E decidiu que ia fazer isso. 

Claro que, mais uma vez, discutimos, mas ele não me ligou. E, já a subir as escadas para a torre pelo interior da igreja, comecei a afastar-me dele, como forma de protesto. Procurei logo ser dos primeiros a descer, ficando ele a fazer os preparativos da apresentação do tal cometa.

Entretanto, o Comandante chegou, acompanhado, como habitualmente, da sua mulher, ambos garbosamente vestidos de camuflados, cuidadosamente passados a ferro. Ela vinha já preparada, como sempre, para exemplificar como se devia fazer a descida em "slide" a qualquer maricas que acusasse falta de coragem. E o Comandante, sempre de mangas arregaçadas, mostrava a sua valentia, ainda que exibindo pêlos encrespados na evidente “pele de galinha” provocada pelo frio e, por vezes, através da voz entrecortada, devido ao “congelamento” dos maxilares.

Mal vi o Piteira pendurado no cabo do “slide"
, de pernas abertas, calças rotas denunciando o “aparelho recreativo” e o cigarro aceso na boca, larguei a fugir para a mata, escondendo-me na escuridão e jurando que,  desta vez, não iria aparecer para “pagar” juntamente com ele a pena que lhe iria ser aplicada. Ele descia pelo cabo devagar, possivelmente para prolongar o espetáculo. Porém, o Comandante, de megafone na mão, logo exclamou:

– Quem é aquele melro? – E mandou apontar o holofote para cima.

Ohhhh!!! – soaram, em espanto, as vozes da assistência, seguidas de algumas gargalhadas. 

O Comandante perguntou logo de seguida: 

– Onde está a parelha, quem é a parelha?

E foi acrescentando: 

– Desce,  meu melrinho, que já te vamos tratar da saúde.

A sessão de "slide" acabou, e eu silenciosamente, fui-me introduzindo no quartel e meti-me na cama de baixo do beliche (a de cima era dele, porque fumava). Não sei onde ele esteve. O que sei é que, quando todos já dormiam, ele surgiu, apoiando-se aos armários, até chegar junto da cama. Não se aguentava de pé. Aninhou-se e caiu sobre a cama, ao meu lado, sem dizer uma palavra. Fui para a cama de cima.

Sempre que vejo o filme “Voando sobre um ninho de cucos”   (um dos meus preferidos) identifico com o Piteira a personagem irreverente interpretada pelo Jack Nicholson. E quando ele vem para o dormitório, a regressar da sua última dose de tratamento de choque, eu penso: 

 – Lá vem o Piteira, “recosido” pela tareia que levou em Lamego, depois da descida noturna em "slide",

(Seleção, revisão / fixação de texto,  título: LG)