
Contra a Corrente
Contra a corrente é difícil nadar.
Difícil e perigoso, como não se cansa de dizer na praia o nadador-salvador.
Mas todos conhecemos gente que não quer outra coisa da vida senão ir contra a corrente, caminhar contra o vento, muitas vezes atirar a pedra na vertical e esperar que lhe tombe na cabeça.
Não é totalmente o meu caso. Já foi mais, atrás no tempo e nos tempos, quando quase só tinha certezas construídas à luz de uma leitura da vida provavelmente justa mas claramente monocolor num mundo que se tem de compreender colorido.
Confesso, no entanto, que de vez em quando, talvez mais vezes do que aconselhável para uma certa comodidade a que se tem direito de aspirar na minha idade, me apetece dar a cara ao vento que sopra contra, e teimar em frente.
Como agora, por exemplo, quando antes de começar me apetece já dizer, meu deus, no que vou eu meter-me!
Hesito, por isso, e que ninguém se admire da minha hesitação.
Escrevo, não escrevo?
Digo, não digo, pergunto eu, a mim próprio sem mais ninguém a quem perguntar, a não ser, talvez, se me dividisse e perguntasse aos vários eus que sou.
O problema é que todos falam na mesma língua e com as mesmas palavras, ainda que discutam entre si e discordem.
Vai a ver-se e, provavelmente, o problema é de falta de moderador, de juiz que sintetize, que pese argumentos e corte a direito doa a qual dos eus a quem vier a doer.
Ou que contente a todos, em pacto de regime que tanta falta nos faz sempre, como sabem, sobretudo hoje em dia.
Na verdade, sei que vou entrar num assunto delicado e que, por sê-lo, deve ser tratado com pinças e cuidados extremos, tendo no centro gente, tendo no centro passados e presentes de gente que viveu já muitas contradições e que nelas se fez o que é hoje, sendo hoje a memória dos passados todos que sofreu.
E tem também a outra gente, amigos lado a lado anos a fio, comungando as mesmas fés, ou próximas, correndo os mesmos riscos, ganhando e perdendo, às vezes no gume da vida, e nesse entendimento se fez também, um pouco, comunhão plena da admiração e da amizade profunda entre seres assim vividos.
Portanto, o risco é grande e talvez mais valesse ouvir o polícia das séries americanas que vemos na televisão, guardando eu também o direito de ficar calado porque tudo o que disser poderá ser usado contra mim.
Sei inclusive que hipotéticos juízes, neste caso como tantas vezes na justiça a sério, nem terão necessidade de processo de investigação, quer dizer, de ler o texto todo que me irá sair e que neste momento ainda nem sei bem o que será senão no fio muito genérico de uma ideia, para me julgarem e condenarem a minha alma aos quintos do inferno.
Ainda assim, vou avançar e depois se verá se publico ou se eu próprio me condeno e deito fora o que tiver produzido.


E quem não se espantará de tal barbárie, sobretudo se sobre gente que combateu ao nosso lado, bravos e abnegados, leais e amigos, crentes na convicção que os preenchia de que estavam do lado certo, qual de nós não espantará, sabendo que sempre nos tocam e agoniam muito mais profundamente os dramas daqueles que nos estão próximos do que os de outros, hipoteticamente maiores mas sofridos por desconhecidos longínquos?
A guerra, por mais que nos queiram convencer os que a amam(!), ou os que fingem admirar na catarse dos heróis que foram ou que gostariam de ter sido, não é um acto natural do homem e só acontece na distorção profunda da consciência colectiva de um povo, no caso de ambição desmedida e colectivamente manifestada por poderes e por domínios, num processo de manipulação ideológica e moral, ou, então, no caso de adopção colectiva da revolta perante a incapacidade absoluta de esperar por justiça negada.
Num processo ou no outro, nos dois casos, existem sempre determinados aspectos que se encontram, quer se trate da bravura no combate, da honra, do respeito pela humanidade dos contendores individuais ou pela negação desse respeito.
Desencadeada, não é muito fácil encaixá-la em regras cavalheiras, e quem tomou parte num lado ou no outro o que quer é ganhar, naturalmente, derrotando (aniquilando) o inimigo.
Não sei dos motivos individuais mais profundos que levaram a que tantos cidadãos das colónias se tivessem juntado às nossas forças, combatendo os irmãos que, mal ou bem, se batiam e davam a vida no caminho na ideia da libertação da terra onde nasceram.
Certamente que serão muitas e muitos, tais razões e motivos, uns entendíveis, conscientemente pensados e decididos, provavelmente nobres na complexidade das questões, e outros, acidentais apenas, inevitáveis, inconscientes e tomados por acaso ou por conveniências aparentes, o que de resto terá também acontecido a muitos que combatiam nas fileiras do PAIGC.
Retomando o que acima já disse, para explicar a pluralidade deste pensamento, posso repetir aqui que, não sendo, hoje, o homem de convicções absolutas que já fui, tenho como toda a gente, valores que agarrei no meu processo de crescimento e amadurecendo, sendo que nesses valores e conceitos cabem algumas certezas sobre a multiplicidade da alma humana, sobre verdades e sobre razões de cada um, verdades e razões que explicam as suas decisões individuais, estranhas, incompreensíveis e até inaceitáveis para quem, de fora, não lhes toma o devido peso.
Há certezas que me enchem de tal modo ainda hoje, que delas não julgo possível abrir mão, por mais que aceite e tente compreender o seu contrário.
Por exemplo!
O orgulho que me dá de ter nascido numa pátria que a determinado tempo do seu romance, foi capaz de sair de si própria, correr riscos e sofrimentos desmedidos, na crença de que haveria formas novas de melhorar o mundo, se fez ao mar, descobriu caminhos e gentes, desbravou terras longínquas, alargou o mundo e ofereceu o seu labor à humanidade.
Por exemplo!
Que passados os séculos que passaram e se aceitam como foram, novas verdades se construíram (ler Camões) no desenvolvimento da moral e dos conceitos sobre a humanidade nova, justamente consequência da realidade desse passado e das novas necessidades do homem. A descolonização era um processo mundial irreversível e muito melhor para todos teria sido reconhecer isso e preparar as mudanças, do que teimar na sua negação, manipulando a ideia de uma pátria cristã, multicontinental e plurirracial, arrastar gentes para guerras prolongadas e destruidoras de passados, de presentes e de futuros.
Por exemplo!
Que sei e sempre soube que o lado em que me bateria nessa guerra, seria o outro, se nessas terras tivesse nascido, branco como sou, ou negro, mas, na referida postura que me anima, não me admira que a maioria dos cidadãos deste País, como eu, tivessem partido para a guerra a matar e a morrer, assumindo ou não a ideologia do Estado e ainda que com dúvidas sobre a razão, nem me admira tão pouco que, mesmo filhos dessas terras tivessem escolhido o nosso lado e nele se tivessem batido.
A hora da passagem do poder do colonialista para os filhos das colónias que se haviam batido por um ideal de libertação, deveria ter sido um tempo de festa e de construção da paz, mesmo de uma paz que pudesse irmanar os dois lados da contenda.
Deveria ter sido e foi, de facto, se falarmos apenas das relações imediatas entre a guerrilha e o exército que a combatia.
A festa fez-se, desde logo nos espaços onde estavam instalados os soldados portugueses, muitas vezes em convívio de tal maneira aberto que observadores exteriores e conhecedores de outros processos, como o Francês e o Belga, se admiravam da amizade ali expressa. Também o foi, mais tarde, na consolidação formal da passagem do poder dos actos oficiais.
Contudo, desde logo se viu que a festa não incluía os cidadãos locais que haviam ficado do nosso lado. Contra esses, o ódio e a raiva falavam mais alto e tomaram aspectos marginais aos verdadeiros sentimentos da paz e da humanidade.
Era esperável tal atitude?
Acredito que se Amílcar Cabral vivesse ainda nessa altura, exceptuando casos extremos de acção violenta que sabemos que existiram no decorrer do conflito, tal festa abrangente teria mesmo acontecido.
Não li do livro de Amadú, senão pequenas notas que saíram no blogue, entre elas o episódio da criança capturada que opôs opiniões do Alferes branco e de Amadu e que mostra deste uma grandeza humana superior.
Irei lê-lo e tenho a certeza de que a sua leitura em nada diminuirá o respeito e a admiração que hoje nutro por ele apenas do que dele tenho ouvido por terceiros e apesar da escassez do convívio.
Provavelmente, ao contrário, tais sentimentos crescerão, então, e me recordarão outros combatentes negros que estiveram ao meu lado nesse tempo duro e de quem guardo grata memória.
Afinal, a natação acabou por fazer-se em águas menos desfavoráveis, creio, e isso é o que pensará Amadu e os seus amigos próximos, crentes também de que um dos grandes bens do homem de hoje é (ou deveria ser), o direito à diferença.
José Brás
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 28 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6268: Bibliografia de uma guerra (56): A Propósito de Até Hoje (Memória de Cão) (José Brás)
Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6309: Controvérsias (72): Uma Página Negra (José Manuel Matos Dinis)