1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2012:
Queridos amigos,
Aqui temos um livro escrito por um Padre Capelão, quase inteiramente dedicado às suas duas comissões na Guiné.
Percebe-se rapidamente porque escolheu o título para a sua obra "Catarse": Não esconde os comportamentos mandões, a falta de apoio que sentiu, em diferentes situações, de outros padres e seus superiores.
Teve manifesto orgulho pela sua missão em Bafatá, transcreve o louvor que lhe foi dado pelo BCAV 1905. Ali se diz claramente que tomou a iniciativa de percorrer toda a ação do batalhão para que a assistência religiosa não faltasse às tropas.
É um homem de coragem, confessa a sua admiração por Spínola e Amílcar Cabral. E pede humildemente desculpa por não ter feito livro mais claro e detalhado, conforta-se com a compreensão dos seus leitores.
Um abraço do
Mário
Catarse: As duas comissões na Guiné do Padre Abel Gonçalves
Beja Santos
Vem nos dicionários que a palavra catarse provém do grego, foi utilizada por Aristóteles para designar o processo de purgação ou eliminação das paixões que se produz no espectador quando, no teatro, assiste à representação de uma tragédia. Com a escola psicanalista o método catártico corresponde ao procedimento terapêutico pelo qual uma pessoa consegue eliminar os afetos patológicos revivendo os acontecimentos traumáticos a que estão ligados. Segundo esta última definição, uma parte substancial da literatura da guerra tem tal finalidade.
O Padre Abel Gonçalves foi nomeado pároco de Valença do Douro em 1958, a seguir passou por várias dioceses até que em Março de 1967 foi incorporado no BÇAC 1911, com destino à Guiné. Revive as suas memórias quase como se tivesse um bloco de notas onde registou impressões e estados de alma (
“Catarse”, por Abel Gonçalves, edição de autor, 2007). Foi praxado pelo chefe da secretaria, fez-lhe tirar fotografias por quatro vezes. Vêm de Tomar para a Rocha do Conde de Óbidos e embarcam no Uíge em 26 de Abril de 1967. Regista que as praças iam nos porões, em condições desumanas.
Celebrava missa no convés, notou grande afluência e respeito. Filho único, o seu principal cuidado foi tranquilizar os pais, quando pôs os pés em terra. Seguem para o Quartel de Adidos, aí começa o treino para operações no mato. Morre um soldado atirador e ele escreve:
“Transido de medo, não sei se da teimosa trovoada, da guerra devorada, do morto inofensivo e sereno ou da obrigação odiosa e cruel de comunicar à família aquela trágica e injusta perda… Parecia que me sentia criminoso por ter de anunciar que já estava morto aquele que vivia ainda num entendimento dos que o amavam. A pior coisa que confiavam aos capelães era esta de anunciar aos familiares a morte de um ente querido”. Nunca se ambientou a Bissau, às conversas com ataques, mortos e mutilados. Descobre, na sucessão dos dias, que um bom punhado de militares tem problemas de saúde, desde a epilepsia à tuberculose.
E rumam para Teixeira Pinto, fica numa pequena residência com chão e cimento junto de uma pequena igreja, era visível o aspeto de abandono. Guarda-lhe a casa e acolita-o nos deveres religiosos um menino chamado Albino. É chamado ao batalhão onde lhe comunicam que vai ser nomeado gerente de messe, recusa, alega que o serviço de assistência religiosa é o seu dever e nada mais. E vai para Jolmete, descreve o aquartelamento com as suas torres feitas de cibes, os abrigos, a falta de gerador elétrico, a iluminação era dada por garrafas de cerveja com uma torcida de pano; a casa de banho é constituída por um bidão, ele vinha com pudores entranhados por 12 anos de seminário, ali tinha mesmo que se expor e vencer o acanhamento, resistiu a frases irreverentes e maliciosas. Celebra regularmente missa no Jolmete, num local rodeado por bidões cheios de terra, comparecem crentes e descrentes. Ali perdia-se a noção do tempo, sofria-se pela falta de correio, pela péssima alimentação, pelo silêncio confrangedor, as noites em expetativa. Volta ao Jolmete, é iniciado em emboscadas e em minas. Um dia, dão-lhe ordem para regressar a Bissau, aproveita para vir de férias, sofre pelo alheamento da sua diocese. No regresso, apresenta-se ao chefe dos capelães, indicam-lhe que vai para Bafatá, tem um enorme setor para prestar assistência, estende-se mesmo ao sector de Bambadinca, inclui o Xime e o Xitole, sente-se em missão de paz, a sua arma era o terço do Rosário.
Descreve Bafatá, está contente com o bom ambiente militar, faz amizade com o 2º comandante do BCAV 1905, Andrade e Silva, e regista com satisfação:
“No BCAV 1905 até me agradeciam uma colaboração franca e amiga. Compreenderam e respeitaram sempre os limites da minha, por vezes, melindrosa missão de capelão na guerra. Nunca me exigiram que fosse informador pidesco. Dava gosto trabalhar aqui”.
Percorre os destacamentos de lés a lés, faz amizade com os padres missionários e mesmo com a Missão da Sagrada Família de Bafatá, que estava a cargo das Irmãs Hospitaleiras Franciscanas Portuguesas, o seu auxiliar era o 1º Cabo Marques, assim apresentado:
“Bondoso, paciente, humilde, simples, sincero, prestável. Só que tinha medo de ir comigo para o mato”.
Visita Bambadinca, o Xime e o Xitole. A viagem para o Xitole foi um calvário, nunca esqueceu o alferes médico, o Dr. Sílvio, seria ele quem comandava o destacamento já que o capitão miliciano, um notário, não queria saber de nada. É o Dr. Sílvio quem lhe receita para o pequeno-almoço umas sopas de vinho fresco, ali estavam os dois, um de cada lado de um bidão de gasolina a beber um vinho muito cristão, teria sido muitas vezes “batizado” pelos lugares onde tinha passado.
Visita sem desfalecimento Camamudu, Catacunda, Fajonquito, Cambajú, Jabicunda, Contuboel, Sare-Cacar, Sara-Banda, Banjara, Sinchã-Jobel, Geba, Sinchã-Dembel, Sinchã-Sulu, Furacunda, Udicunda e Banchi. Comunica com os chefes de tabanca, os régulos e os chefes religiosos. Faz amizade com o capitão miliciano Pires, de Contuboel. Por vezes, regista o pícaro entremeado pelo sofrimento:
“A companhia que estava em Geba, era uma companhia distorçada. O capitão tinha morrido a levantar uma mina. Dos quatro alferes primitivos só restava um, o Fernandes. O capitão atual parecia transtornado quando vinha a Bafatá, num jipe de escape livre, com o barulho que fazia logo todos exclamavam: é o capitão de Geba!”.
Nunca esqueceu o presépio montado pelos militares de Banjara, com a imaginação e arte transformaram bugalhos, paus, latas de coca-cola, pequenas garrafas, gaze, algodão hidrófilo em imagens da Virgem, de S. José, do Menino, vaca, burro e anjos colocados numa fruta improvisada num barril de madeira. Finda a missão do BCAV 1905, o Padre Abel Gonçalves foi colocado no hospital militar, habituou-se a ver sangue por todos os lados.
Regressa no Niassa a Lisboa em Maio de 1969. É colocado na Base Aérea 7, em S. Jacinto, para além da assistência religiosa foi designado professor de deontologia militar e psicologia do voo. Entregam-lhe a sempre espinhosa missão de ir comunicar às famílias a morte deste ou aquele militar. Ao fim de 3 anos e meio de uma vida calma, parte novamente para a Guiné, é colocado na Base Aérea 12, em Bissalanca; fica igualmente encarregado de dar assistência a muitas unidades do Exército, enfim, todos os destacamentos a norte de Bissau até ao Biombo e, para o interior, todos os destacamentos até Mansoa. A Base tinha boa e espaçosa capela, o capelão dispunha de quarto e de um salão para aulas, leitura e estudo.
A tessitura das suas memórias revela que o trabalho é árduo, variegado, sente-se muito bem no relacionamento social. Refere a morte da paraquedista Celeste, acidentes de viação que levavam o capelão procurar dar apoio aos familiares dos sinistrados, nunca esqueceu o Padre Marcos, um simples e bondoso capuchinho italiano que vivia pobremente em Brá, vivia de esmolas, era de uma ingenuidade e franqueza que desarmava toda a gente. O seu passatempo era cuidar de uma horta onde plantou pedaços de tronco de mandioca, caroços de mangueiros, bananeiras e uma figueira.
Gostava de visitar Salgueiro Maia em Pete, e depois refere o agravamento da situação a partir de 1973. Assiste aos comícios do PAIGC em Bissau e os militares transformados em revolucionários. Impressionou-se com a saída dos últimos militares portugueses: os nossos soldados estavam na fortaleza de Amura, perto do cais de embarque e deitavam pelas muralhas abaixo parte das rações de combate que os nativos apanhavam e agradeciam de lágrimas nos olhos.
Assistiram ao embarque com manifesta tristeza. Sem sequer um insulto. Eles sabem que nós, ainda hoje, os temos no coração.
Em 15 de Agosto de 1974, regressa e é novamente colocado em S. Jacinto. Termina, rendendo homenagem a todos os capelães que prestaram serviço na Guiné, confessa que gostaria de ter feito melhor, mas aceita tranquilo a responsabilidade das suas limitações.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 22 de Março de 2013 >
Guiné 63/74 - P11292: Notas de leitura (467): A palavra aos desertores portugueses (Mário Beja Santos)