domingo, 24 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11306: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (30): 31.º episódio: Memórias avulsas (12): Acção psico-social

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 18 de Março de 2013, enviou-nos mais uma história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS

12 - PSICO-SOCIAL

Turismo de guerra foi o que fiz por quase todo o Norte da Guiné, particularmente na zona do Oio e pelas matas que rodeavam Morés, que acabei por não visitar, dado que me mandaram regressar à Metrópole. Poderiam ter tido a hombridade de perguntar: "Queres ir ou ficar?"

Demais a mais até porque só ainda ali estava há 20 meses e agora já me tornara um verdadeiro profissional especialista na arte do atacas ou te defendes.

Teria assim oportunidade de visitar tal local, onde constava existirem grandes árvores queimadas por cima, por via dos T6, que de quando em vez largavam por ali, umas bombitas inofensivas e que apenas serviam para acordar quem ali procurava refúgio depois de ter aterrorizado e fugido das nossa tropas, para além de também destruírem as casas dos passarinhos que ali nidificavam.

O motivo por me não quererem mais, julgo dever-se ao facto de pensarem que eu era açoriano.
Dizia-se que onde estes estavam, acabava a guerra, sendo vulgar ouvirem-se os gritos do inimigo:
- Fujam, fujam, não embosquem esses gajos... são dos Açores.

Passeei por Mansabá, Manhau, Bissorã, Pelundo, Jolmete, K3 e QG com visitas de pacificação acidentais, por Teixeira Pinto, Cacheu, Bula, Binar, Mansoa e Quinhamel.

Conheci tanta gente boa, de várias etnias, com quem partilhei, solidariedade, ajuda, estima ao próximo, amor à próxima, respeito e consideração, "coisas" que eu já tivera recebido e que por isso mesmo sabia agora praticar.

Equipamento básico para um bom desempenho de turismo de guerra

Nascera eu, em 1942, época da II Grande Guerra e jovenzito conheci "a maldita" (vulgo fome), mas cedo nos ensinaram a dar a volta.

Faltando o melhor, sempre haviam umas frutas que comprávamos sem falar com os donos... uma túberas que colhíamos nos pinhais... uns coelhitos bravos que caíam nos "ferros" e que assávamos em brasas de lume... uns peixinhos do rio que tadínhos, invadiam o interior das garrafas a que havíamos cortado o fundo para que entrassem e que depois como não conseguiam sair, devorávamos quais jaquinzinhos fossem... uns ovos que sacávamos dos ninhos... uns pardalitos que levavam com uma pedra arredondada e disparada pelas nossas fisgas... enfim, não faltando o engenho, lá nos íamos amanhando.

Relembro também a Intendência. Era uma loja para onde íamos fazer turnos de duas horas e a partir das sete da tarde até às nove da manhã do dia seguinte, hora a que então começavam a distribuir senhas que davam direito aos pobres poderem adquirir, ou um quilo de arroz... d'açucar... farinha... pão.
Mas do que eu mais gostava, (a partir de 1946 e seguintes) era de quando a minha avó, me mandava comprar cinco tostões de capilé, para adoçar um "café" que ela fazia com boletas (da azinheira) e grão rebuscado.
Tudo torrado, esmagado e fervido, constituía o meu pequeno almoço, antes da escola.

E gostava de ir, porque para lá levava um púcaro de esmalte até à taberna do senhor Firme e com ele deveria regressar com, pretensamente o equivalente aos 50 centavos antes referidos, lá dentro, só que como eu ia sorvendo umas pinguitas, chegado que era, só lá restavam três tostões.

No fundo, sempre eram cem os metros entre a tasca e a nossa moradia de soalho de terra (o que nos obrigava a limpar os pés quando entrávamos na rua). Ali vivíamos sete pessoas em vinte metros quadrados e quartos separados com mantas. A luz era a do candeeiro a petróleo ou das velas. O telhado deixava passar a chuva para alguidares de barro.

Alonguei-me, dispersei-me?

Quis apenas que compreendessem que ser solidário implica algumas vezes, que nos debrucemos pelo que passámos e pelo que nos fizeram, o que não quer dizer, que tais dificuldades sejam condição para praticar o bem, mas como se costuma dizer "quem sabe da poda é o podador".

Recebi mais do que dei, senão reparem, neste tão comovente convite:
- "Nôsso Furié" deixa que si for minino seja Veríssimo?

Vinha tal pedido, da esposa grávida, dum dos meus camaradas, soldado futa-fula.
Pensei recusar... vi que triste seria para aquela moçoila e acedi vaidoso e foi assim que lá ficou em Farim um... minino de apelido, Veríssimo.

(continua)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11269: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (29): 30.º episódio: Memórias avulsas (11): O porquê do abandono do K3

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caríssimo Veríssimo

Sou uns anitos mais novo do que tu, nasci já depois do fim da guerra, pelo que não assisti, directamente, aos problemas que daí resultaram, embora ouvisse bastantes relatos sobre as dificuldades e modos de vida.
Algumas das 'aventuras' que relatas também as 'pratiquei', como ir às uvas 'gratuitamente', aos pássaros, armadilhas para os coelhos, assaltos a aviários, etc., e por isso gostei dessa parte das tuas recordações, as quais, na minha opinião, não destoam do conteúdo do artigo porque é sempre bom 'perceber' o 'antes' para se entender o 'presente', nesse caso compreeender melhor o porquê dos melhores 40 meses.
Quanto ao teu 'turismo de guerra' foi o que te calhou. Foi esse, como podia ter sido outro. Todos iguais e todos diferentes.

Abraço
Hélder S.

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Não te alongas-te, nem te dispersas-te, contas-te a verdade dos tempos de fome, com que fomos criados na década de quarenta do século passado!.
Um abraço, Tony Borie.