1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª
CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 4 de Março de 2015:
Camaradas Luís Graça e Carlos Vinhal.
No próximo dia 16 de Março faz 42 anos que parti de Lisboa com o meu Batalhão rumo à Guiné.
Acho que é boa altura para começar a relatar os episódios mais marcantes da minha passagem por aquelas terras, e por aquela guerra.
Finalmente dispus-me a compilar e organizar memórias perdidas em caderninhos, e a registar outras que me vão surgindo do arquivo nebuloso da memória, mas que na época não tiveram merecimento de registo, por desvalorização ou falta de tempo.
Sempre soube que um dia havia de fazer isto, mas nunca pensei que me atreveria a publicar a resenha íntima daquela fracção da minha vida, tão pequena, tão sofrida e, simultaneamente, tão marcante na formação e maturidade da pessoa que sou hoje.
A ideia inicial era escrever algo semelhante, mas para deixar aos meus descendentes. Não queria que, um dia, soubessem apenas que o avô esteve algures em África numa qualquer guerra e desesperassem por não disporem de datas, factos, histórias, impressões, etc. Caso se venham a interessar, como é evidente.
Sei, por experiência própria, o quanto é desesperante essa falta de informação biográfica de um nosso ascendente, ainda mais quando esse ascendente teve uma fase da sua vida análoga à nossa. Foi o caso do meu avô paterno, de quem apenas soube que esteve em Angola – e mesmo este dado não é seguro –, como soldado.
Era eu pequeno, contou-me um dia, para meu divertimento, que a escova para calçado que tinha nas mãos fora feita pelos pretos em África e que estes eram terrivelmente fortes: subiam com ligeireza grandes penhascos com as armas e mochilas dos soldados às costas, e estes, quando chegavam lá acima, sem carga nenhuma, estavam exaustos. Só isto.
Quando, já crescido, comecei a ter curiosidade pela razão da sua mobilização e pelo que aconteceu na sua campanha africana, ele já tinha morrido. Então, sempre que via aquela escova de calçado, era assaltado pelas saudades do meu avô e pelo sentimento de culpa por nunca lhe ter pedido que me falasse mais dessa fase da sua vida. Mas porque não deixou ele uma única nota escrita, uma carta, uma fotografia?!
É claro que, pela sua data de nascimento, tenho uma ideia do que o levou a África, naqueles conturbados tempos da 1.ª Guerra Mundial, mas não é suficiente. Para saber mais, teria de fazer uma investigação morosa e desencorajante. A que nunca me atrevi. Fica assim.
Vou narrar a minha pequena “odisseia” começando pelo embarque para a Guiné, a viagem, a passagem por Bolama, etc., mas, como estas situações já foram sobejamente tratadas e retratadas no Blogue, vou tentar não ser maçador, aflorando apenas as que me parecerem mais incomuns e as minhas impressões pessoais, embora mantenha todo o resto no meu diário. Nesses casos sinalizarei as omissões de texto com (...), para se perceber o porquê de uma ou outra descontinuidade.
Gostava, ainda, de deixar aqui um abraço e a minha homenagem a todos os camaradas que calcorrearam, antes de mim, os mesmos chãos, picadas, trilhos e matas, de Buba a Aldeia Formosa, de Mampatá a Nhacobá. Porque a “guerra deles” foi bem mais dolorosa e trágica do que a “minha”, mesmo se considerar que fiz apenas um ano e meio de comissão, não podendo saber o que me esperaria no tempo restante; e mesmo se considerar que nessas regiões passei momentos difíceis, que houve mortos e feridos, flagelações e emboscadas, minas e estradas cortadas, enfim, tudo considerado, mantenho que foram mais duras e trágicas as suas comissões.
Se discordar de mim, quem comigo lá esteve, recomendo que leia os escritos do Zé Teixeira, do Manuel Traquina, do Mário Pinto, do Vasco da Gama, do Idálio Reis, do Rui Alexandrino Ferreira no seu livro “Quebo”, e, possivelmente, de outros mais.
Só tive consciência disto através do nosso Blogue e, depois, visitando outros blogues que fui conhecendo. Lendo também os muitos livros que possuo sobre a Guerra Colonial. Soube também, com espanto e choque, de outras inúmeras tragédias, de heroísmos anónimos, da sobrevivência tipo “um dia de cada vez”, por todo o restante território. Conhecia, e mal, os casos mais sonantes. Todavia, eu estive lá! Quantos mais estiveram lá, tendo regressado com a visão da guerra circunscrita à sua zona? Claro que se ouvia muita coisa, mas nada de concreto, porque a informação não passava. Imagine-se, então, o conhecimento que terá daquela guerra, a generalidade da nossa população. Não admira que, já nos anos 90, ouvisse este insulto de um colega de trabalho: "Comparando com o Vietname, os combatentes na Guiné, não passavam de soldadinhos de chumbo!".
António Murta
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Lisboa - Cais da Rocha Conde de Óbidos, meio da tarde de 16 de Março de 1973 – Partida do Batalhão de Caçadores 4513 no navio Uíge rumo à Guiné.
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA - GUINÉ, 1973-74
1 - Embarque para a Guiné - 16 de Março de 1973
16 de Março de 1973 (sexta-feira) – Embarque para a Guiné
Estava repleto o navio e os militares alcandoravam-se nos locais mais improváveis, para além de escadórios e da amurada, na ânsia de serem vistos pela multidão de familiares que acenavam do cais. Era uma cena já de todos conhecida, militares e famílias, que ao logo dos anos a viram – e temeram – pela televisão e pelos jornais. No que me toca, e depois de ter perdido de vista o meu pai no cais, apoderou-se de mim uma fria indiferença. Estava ali a começar uma odisseia, uma aventura no desconhecido, mas que haveria de ter um fim, que só podia ser o regresso. Recordo estas sensações porque as preparei antes e me agarrei a elas no momento crucial. Apesar disso, foi no instante em que o bojo do navio se desencostou lentamente do cais, que tive o momento mais penoso e cruel. Não tinha pensado nesse detalhe tão significativo: o brevíssimo instante da separação. Estava quebrado, definitivamente, o fiozinho que ainda me ligava a casa, aos familiares, ao meu país e a uma esperança tola de que, até ao último instante, acontecesse algo de extraordinário, um cataclismo, uma morte bombástica, sei lá..., morreu o Amílcar Cabral e não aconteceu nada, mas podia morrer o Marcelo, cair a Ponte Salazar e o barco ficar ali encalhado!... Nada. Não aconteceu nada. Afinal, estávamos irremediavelmente a partir. E não tinham partido milhares de outros antes de mim? Voltei à realidade. Certo de que a partir desse instante estaria apenas entregue a mim próprio até que tudo terminasse. Soltas as amarras, todas, zarpámos mesmo. Adeus, até ao meu regresso!
Com dois ou três roncos cavernosos e lúgubres, o navio fez-se lentamente ao meio do Tejo e desceu para a foz. Cada vez eram mais imperceptíveis os acenos no Cais da Rocha.
(...)
Começava uma aventura que, para muitos, tínhamos consciência disso, não teria regresso. E assim aconteceu. Mas neste momento difícil das nossas vidas, a atenuar a dor da separação rumo ao desconhecido, havia uma coisa muito importante: a curiosidade por África, pelas suas gentes, pelos locais exóticos, pelo clima adverso mas diferente, enfim, pela oportunidade de explorar um continente que ocupava o nosso imaginário desde os bancos da escola, com os nossos exploradores africanos a incitarem-nos à imitação. Pessoalmente, formei esse imaginário muito antes da escola primária, através de um livro que a minha mãe possuía e que me dava a ver. Era o “Almanaque das Missões” (?), cheio de imagens de pretinhos e missionários de branco, jeeps em jangadas a atravessar rios desmedidos. Que saudades tenho desse pequeno livro. Dizia a minha mãe: - "O pretinho da Guiné partiu a caneca, não bebe mais café". Ganhei, assim, uma paixão por África e chegava a sentir nostalgia por uma terra onde nunca tinha estado.
À passagem pelas Canárias impressionou-me o cenário belíssimo das ilhas mergulhadas num crepúsculo vermelho. Fiz um desenho rápido a lápis de cor, mas perdi-lhe o rasto. Foi mansa a viagem. E confortável, para quem, como eu e demais oficiais viajávamos em 1.ª classe. O Uíge era um paquete com boas condições, como um grande hotel flutuante, onde não faltavam “garçons”, empregadas solícitas, bons salões, bares, enfim... (...)
E nos porões, mais próprios para transportar gado, como se acondicionavam os soldados? Eu mesmo tinha sido incumbido de fazer a inspecção ao navio acompanhado de um dos meus furriéis dias antes do embarque e não gostei dos porões, mas tudo não passava de um proforma e tinha de assinar, até porque, no restante estava tudo muito bem. Fui ver. Quis inteirar-me do modo como ocupavam aquilo, ouvir as suas necessidades, ajudar no que pudesse. Entrei noutro mundo. Abjecto, fétido, insalubre. Não admira que, lá mais para a frente, com a aproximação de clima mais quente, muitos preferissem dormir na coberta do navio, onde, pelo menos, respiravam melhor. Durante o dia era onde todos permaneciam, entre jogos de azar e convívio nem sempre pacífico. Tirando passar alguns momentos em conversa com eles, animando-os, mais nada podia fazer. Era aguentar, que a viajem só duraria seis dias.
20 de Março de 1973 (terça-feira) – Jantar de despedida
Estava quase no fim a viagem e isso era marcado por um jantar de despedida. Não muito diferente dos outros jantares, teve, todavia, algo indefinível que o tornou mais solene. (...) A ementa, impressa a bordo, dizia assim:
"O Capitão de Bandeira, Comandante, Oficiais e restante tripulação do navio apresentam as suas despedidas aos Exmos. Oficiais, assim como a todos os componentes do Contingente Militar desejando muita saúde e as maiores felicidades.
Paquete “Uíge”, 20 de Março de 1973"
Seguiam-se as páginas com a lista completa dos oficiais (e sargentos?) a bordo. (Não sei o que me passou pela cabeça para, muitos anos mais tarde, ter digitalizado a capa da ementa e pequenos fragmentos daquela lista e ter destruído todo o resto).
Paquete Uíge, 20 de Março de 1973, Jantar de despedida.
Eu sou o rapaz da esquerda, aí no pequeno corte (foto abaixo). À minha esq.ª está o Alf Torres da 1.ª CCaç (Buba), e à dtª, com a cara sobreexposta, o Alf. Mota da 3.ª CCaç. (A. Formosa). Do outro lado da mesa, dois Alferes do QP.
22 de Março de 1973 (quinta-feira) – Chegada a Bissau
Acordei e senti logo uma estranheza que me sobressaltou. Era o silêncio total. Costumava acordar com o ronronar distante, cavernoso, dos motores do navio. Parámos, pensei. Será que chegámos à Guiné? Dei um salto da cama e fui abrir a cortina da vigia mas, o que vi, deixou-me ainda mais estranho. Julgava que veria um porto, um cais para encostar, mas não, estávamos no meio do mar e à minha frente uma pequena faixa de terra que, pela distância a que nos encontrávamos, não dava para avaliar. Vesti-me e saí precipitadamente, sentindo logo um calor a que não estava habituado. Dirigi-me à amurada a olhar lá para diante aquela faixa de terra rasa, uns poucos edifícios e palmeiras dispersas. Só depois reparei que era quase o único a olhar, espantado, para aquela primeira visão africana, quando alguém, desinteressado, me disse:
- "É a Ilha do Rei, Bissau é do outro lado!".
Desloquei-me para o outro lado do navio, olho em frente, e lá estava Bissau, ainda distante mas já ali. Eram 9h50 locais, 11h50 de Lisboa. Reparei, ainda, que o resto dos passageiros já devia estar ali na amurada desde manhã cedo a observar. Alguns faziam comentários mas, se calhar a maioria, conjecturava em silêncio. Os rostos, curiosos, eram de ânsia e apreensão.
A cidade de Bissau vista dali do navio parecia muito rasa de edifícios, e subia ligeiramente a partir do cais. Tudo o mais, quer olhássemos à esquerda ou à direita, parecia uma fita verde quase ao nível das águas, para trás da qual nada mais se via. O navio continuou fundeado ao largo entre a Ilha do Rei e a cidade. Todo o dia foi passado a bordo e era suposto aí permanecermos até ao transbordo para as lanchas da Marinha que nos levariam a Bolama, nosso primeiro destino. Mas à noite, já atracados à ponte-cais que liga ao porto propriamente dito, convencemos o comandante do Uíge, com a intervenção influente do Cap. B. C. – que conhecia Bissau visto ter feito na Guiné o estágio do seu curso de capitão, antes de regressar à Metrópole para se integrar no nosso Batalhão – convencemos o comandante, dizia, a deixar-nos sair para uma pequena exploração e, se possível, beber uns copos.
Eram precisamente 23h55 quando, pela primeira vez, pisei terra africana.
Sem prazer nem desprazer, embora com alguma curiosidade. Mal tinha dado umas dezenas de passos na ponte-cais e eis que me deparo com uma cena tão lúgubre que jamais esqueci: no ângulo que fazia a ponte-cais com o porto, na escuridão quase total, e nas águas paradas muito abaixo do plano em que me encontrava, vi um amontoado de barcaças imóveis, carregadas de vacas. Numa delas, entre as vacas de pé e sobre montes de cordame, estavam várias urnas dispersas. Fiquei deveras impressionado com a cena macabra, como se fosse a primeira nota de que não estávamos num destino de férias. Logo na primeira vez que punha os pés em terra!... Soube depois que estas barcaças fazem fretes de apoio às Forças Armadas e fornecem os aquartelamentos do interior de quase tudo, incluindo munições. E caixões.
Prosseguindo para a cidade à procura de um bar aberto, mesmo tendo em conta que já passava da meia-noite, surpreendeu-me e desagradou-me a quase ausência de pessoas na rua, o marasmo e a miséria: estivadores que mais pareciam indigentes, dormiam nos bancos da avenida marginal, no chão, nos vãos das portas... Alguns embrulhados em panos ordinários. À nossa passagem pareceu-me ver nas caras dos poucos acordados, indiferença ou hostilidade. Não que esperasse cumprimentos ou festa de recepção, mas, sinceramente, pareceram-me hostis. Só as montras dos estabelecimentos me deixaram bem impressionado. Passaria muito tempo até vir a saber que no comércio de Bissau havia uma diversidade de produtos muito superior ao que se encontrava em Lisboa e a bons preços. E que se compravam aqui livros e discos que, na Metrópole, eram simplesmente proibidos. Mas a oferta era mais vasta: materiais fotográficos, armas de caça, alta-fidelidade, louças, bebidas, quinquilharia chinesa, enfim, quase tudo. Muitos compraram aqui a sua primeira máquina fotográfica das melhores marcas japonesas.
(Continua)
Texto e fotos: © António Murta
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