terça-feira, 17 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14380: Meu pai, meu velho, meu camarada (44): Meu Velho, meu Amigo e meu Camarada (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.

Meu Velho, meu Amigo e meu Camarada.
Pai, honrarei sempre os teus princípios militares e civis.

Francisco Saúde, o meu saudoso pai, nasceu no dia 5 de janeiro de 1914 e faleceu no dia 19 de setembro de 1983. Aldeia Nova de São Bento, em pleno Baixo Alentejo, foi a urbe que o viu nascer e morrer. Faleceu a desfazer a barba e numa manhã quente de verão quando o sol já brilhava com intensidade.

A sua morte deixou a família atónica. Um enfarte agudo no miocárdio foi o seu drástico fim. Tinha eu, na altura, 33 anos e o meu pai 69. Porém, jamais dei conta de um pequeno problema de saúde que tivesse fustigado a vida do meu Velho, meu Amigo e meu Camarada.

Olho, atentamente, a sua Caderna Militar, uma relíquia que guardo religiosamente no meu baú das recordações, e leio o documento já amarelado que diz, em síntese, que Francisco Saúde foi incorporado no dia 8 de Abril de 1935 no Regimento de Infantaria nº 17, em Beja, sendo a sua especialidade atirador.

Numa folha adiante, uma outra nota que refere: “Tirou no sorteio o número duzentos e cinquenta e oito”. “Passou à disponibilidade em 1 de Setembro. Presente para instrução complementar em 2 de Outubro de 1939. Voltou à situação de disponibilidade em 15”.

Acontece, que em termos de ocorrências extraordinárias, existe uma outra nota: “Notado como refractário nos termos do nº1 do artigo 189 do R.S.R. Licenciado nos termos do artº 155 do R.S.R. de 1911, desde 8 de Abril de 1935”.

Refractário! Porquê? O meu Velho, meu Amigo e meu Camarada sempre me disse que a questão militar a que foi submetido prendeu-se “como uma doença a que fora submetido aquando da sua apresentação no Regimento de Infantaria nº17 no dia indicado, sendo que a sua ausência militar foi considerada faltosa”.

Assim sendo, está explicada a razão pela qual o exército lhe aplicou tamanha “coima”. O meu pai contava que esta infração não lhe retirou mérito, pois acabou por ser “impedido” de um capitão que lhe cedeu as suas honras.

O tempo era de Guerra Civil na vizinha Espanha. Estava-se no segundo período da década de 1930. As nossas fronteiras, segundo o meu pai comentava, eram patrulhadas a pente fino pela tropa portuguesa.

E foi justamente nesta fase em que prestou serviço militar que integrou um grupo de jovens soldados do RI 17, Beja, que permaneceu no terreno durante algum tempo. A sua missão, segundo dizia o meu Velho, era impedir as avalanches de gentes que fugiam ao terror da guerra civil de Espanha e se passassem para o outro lado da fronteira. Uma história verídica que o meu Camarada contava com mágoa. Dizia-me, em surdina, que foram muitos aqueles que se fizeram à terra lusa enquanto o sentinela de serviço fingia dormir, ficando a estrada em aberto a caminho de um novo rumo. 

Visível era a premente ansiedade da população a contas com uma famigerada e desumana “guerra às bruxas”. Os franquistas não davam pausas. Resumidamente o conflito deflagrou após um fracassado golpe de estado de um sector do exército contra o governo democrático que havia sido conquistado.

Entretanto, o general Francisco Franco, cabecilha do golpe, reorganizou os militares rebeldes o que levou à instauração de um regime fascista em Espanha. O dia 1 de outubro de 1936 foi o início de uma ditadura que se prolongou até 20 de novembro de 1975, data da sua morte, com 82 anos.

Regista-se que o meu Velho, meu Amigo e meu Camarada teve a oportunidade em assistir a uma franja de uma guerra civil com contornos maquiavélicos, e onde o evidente desespero de pessoas que procuravam a paz e o sossego, entrementes sonegados, eram devolvidas a um conflito interno que teimava em não dar tréguas.

Esta prosa possui o condão, julgo, em conjugar efeitos de duas guerras diametralmente desiguais. Isto é, a nossa guerra na Guiné entre 1963 a 1974, e uma outra civil, Espanha, que o meu pai conheceu nos anos 30.

Fica, para mim, a certeza: Pai, honrarei sempre os teus princípios militares e civis porque fomos, afinal, homens que vivendo em épocas diferentes, fizemos parte de contingentes que conheceram os horríveis conteúdos que a guerra, não obstante a dimensão dos flagelos onde estivemos inseridos, nos impôs.



Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


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