sexta-feira, 20 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14391: Notas de leitura (694): Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Temos falado de tudo: das nossas fotografias, da nossa correspondência, das nossas lembranças, dos nossos vivos e dos nossos mortos.
Ao tempo em que combatemos até tínhamos cartas fiáveis, dos anos 1950, as povoações que não encontrávamos tinham-se volatizado entre 1963 e 1964, mas tinham existido.
Os mapas imperiais, com especial relevo a partir do século XIX, referiam as etnias predominantes e os mapas para uso escolar reproduziam-nas por vezes com omissões e besteiras de bradar aos céus. Tome-se como exemplo este mapa que, estou absolutamente convicto, encerado e com réguas, estava pendurado na parede da minha escola primária. E temos que questionar o silêncio dos estudiosos e dos curiosos, como é que engolimos todas estas disparidades e incongruências.
A quem aproveitam? Cabe-vos responder.

Um abraço do
Mário


O Mapa pode ser ampliando clicando em cima


Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados

Beja Santos

O nosso blogue tem várias riquezas, que vão desde os mapas, passam pelo acervo fotográfico e chegam aos testemunhos, únicos e irrepetíveis. Possuímos todas as cartas daquela Guiné onde combatemos, e a sua fiabilidade é indiscutível, vieram a seguir os soviéticos e o seu mapeamento tem erros de palmatória, hoje servem para pouca coisa. No que toca à história, temos um alfobre que vai desde a Sociedade de Geografia de Lisboa às inúmeras publicações que esta instituição alberga, bem como o Arquivo Histórico Ultramarino e centros de estudos africanos de algumas universidades. Posso testemunhar que quando andei à procura de cartas pouco ou nada conhecidas, encontrei na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa e pude usar no Roteiro que escrevi com Francisco Henriques da Silva a Carta da Guiné Portugueza de 1902 e a Carta Hydrographica da Guiné Portugueza de 1844. Para o meu livro em preparação sobre a história da Guiné, graças à amável deferência daqueles solícitos técnicos dessa biblioteca já tenho imagens que não foram divulgadas ao público.

Comprei há dias num leilão um mapa de Portugal Insular e Ultramarino, coordenado por J. R. Silva, creio que na escola primária que eu frequentei havia uma versão encerada, é seguramente um mapa ou do fim dos anos 1940 ou elaborado em plena década de 1950. Se formos ao Google é possível encontrar mapas muito semelhantes, por exemplo de 1934, vê-se à légua que se trata de versões escolares. O que para mim é um mistério é ausência de estudos de índole científica (antropologia, sociologia…) sobre o que esses mapas dizem, se eram conformes às realidades que diziam transmitir. Queria só recordar que em tempos fiz referência a uma brochura que era distribuída na Feira Popular de Lisboa, então em Palhavã, em 1945, em que o que ali se mostrava era pouco mais do que a Guiné dos presídios e praças, do século XIX. No Leste, nem uma só uma menção a populações fronteiriças, nem uma palavra sobre o Boé ou o Gabu. Geba tinha mais importância que Bafatá; escarrapacha-se o nome de Sambel Nhantá, no regulado do Cuor, nesse tempo já não existia; toda a região do Corubal era puramente omitida, como o Xime; a região Centro-Norte não mencionava Mansoa, Bula, Bissorã ou Mansabá quando, a este tempo, eram já vilas com algum desenvolvimento; não há uma referência à cidade de Bolama no arquipélago dos Bijagós; no Sul, falava-se de Bolola, certamente por influência do passado e não há uma só menção a Catió, Fulacunda, Bedanda ou Gadamael, que de facto existiam.

Vamos agora ao mapa da Guiné, coordenado por J. R. Silva, não tenho dúvidas que estava na minha sala de aula, era ali que se exaltava o Império. Pois faz uma grande diferença, e para muito melhor, do mapa da Feira Popular de 1945. Já existe o Gabu, já se fala de Nova Lamego, Buruntuma e Sonaco, bem como de Pirada e de Canquelifá (na versão de Cam Quelifá). Quem olha para o mapa vê um predomínio de Mandingas e com menos relevo aparecem Futa Fulas, ora na verdade as diferentes etnias Fulas tinham nestes anos de 1950 já uma expressão predominante. Há nomes de regulados totalmente anacrónicos. No que toca à região de Bafatá, há menção dos regulados de Joladú, Gussará, Xime, Bololi, Cossé, Corubal e junto ao Senegal Sam Corlá (noutra versão Sancorlá). Aqui predominam os Fulas Pretos e refere-se a presença de Futa Fulas, o que é inverosímil na medida em que os Mandingas e os Balantas tinham já grande expressão. No Sul, revela-se a presença dos Nalus, nessa altura já em grande apagamento. Na região de Cacheu destacam-se os Manjacos e depois os Brames, estes eram praticamente inexpressivos. Na fronteira Norte, na parte Oriental, são referidos os Felupes, Baiotes, os Banhuns e os Cassangas, não que não fosse verdade a sua presença neste território, mas o predomínio era Felupe e depois Balanta.

Isto para dizer o quê? Que não é possível estudar história e dar-lhe verossimilhança sem clarificar estes mapas entre o século XIX e o século XX. Não o fazendo, estamos a ficcionar um mosaico étnico, depois desproporcionado aos relatos dos governadores, aos testemunhos dos militares e às cartas que escrevemos para as nossas famílias, pelo menos.

Em resumo, apela-se aos estudiosos da Guiné-Bissau e de Portugal que olhem para estes mapas e cartas confrontando-os com o que se escreveu nos livros de história, pondo dentro do território os seus verdadeiros territórios. A despeito de impetuosas migrações que houve na Guiné, particularmente no século XIX, houve etnias que perderam relevo, caso dos Beafadas, dos Nalus, dos Brames e dos Cassangas, e o peso dos Balantas não surgiu da noite para o dia, decorre de uma evolução e de uma capilaridade na ocupação do território. O resto passa pela beleza de olhar para estes mapas e supor que estavam próximos da verdade… O que é pura fábula. Mas que eram bonitos, eram, esta Guiné era a exótica babel cantada por plumitivos dos anos 1930 e 1940. E era assim que se confundia a Guiné fabulosa e a sua terra ardente com a Guiné das suas verdadeiras gentes.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)

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