quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)




Elementos icónicos da primeira página, na Net, da Fundação Gil Eanes, com sede em Viana do Castelo...  (Reproduzidos com a devida vénia)...

No romance "Neste mar é sempre inverno", o navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira chama-se "Angelisse" (pp. 155 e ss). Nome fictício, claro, para designar o Gil Eanes... (que representava para a tripulação dos navios da "frota branca", o que de certo modo representava, para nós, na Guiné, o Hospital Militar de Bissu)... 

Hoje o Gil Eanes é um navio-museu que merece a nossa visita...


[À esquerda: Imagem da capa do livro de Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" > Ficha técnica: ed. autor, agosto de 2014, Aveiro. Depósito legal: 379001/14. Tiragem: 500 ex. 262 pp. Capa de José A. Paradela. O livro pode ser pedido através do mail: paradela.tiberio@gmail.com ]


Mais algumas notas da minha leitura do livro do TibérioParadela (*):


Já desde 1927, do tempo da  Ditadura Militar, havia legislação que veio  promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornafr mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927). 

Uma dessas medidas era a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira. 

Noutros casos, os mancebos apurados para o serviço militar podiam beneficiar de adiamento até aos 26 anos. Além disso, a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados... Em suma, a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlãndia era um desígnio nacional...

Pode todavia perguntar-se se havia algum paralelismno entre a vida a bordo e a tropa (e a guerra colonial) ? Nas notas que tomei, assinalei algumas notórias semelhanças, físicas, simbólicas e culturais:

(i)  Os pescadores, em geral recrutados pelo capitão do navio (ou por recrutadores a seu cargo, e por conta do armador), eram divididos em duas categorias em função da antiguidade (que, tal como na tropa, era um "posto" ou dava "estatuto"): os maduros (com uma ou mais campanha na pesca do bacalhau, em geral de seis meses); e os verdes, diríamos nós os "periquitos"... Competia aos maduros praxar os verdes, mas ao mesmo tempo apadrinhá-los, enquadrá-los, apoiá-los...

"O primeiro bote [dóri] a ser alcançado foi o número 8, o Fangueiro. (...) Sendo a primeira vez que arriava no bote, talvez de algum medo lhe estivesse a pulsar o coração. Quando o Nova Esperança passou à sua ilharga, o verde Fangueiro parou de alar, endireitou-se e rodou, todo ele, na contemplação da sua grande casa ali que, como se o ignorasse, se afastava sorrateiramente" (p. 87).

Mas não ficavam isolados os "verdes".. Por perto havia sempre um "maduro" que enquadrava,  supervisionava e, de algum modo, protegia:

 (...) "Não muito longe dali, o ti Armando Poveiro, o seu maduro, tinha-o debaixo de olho como as feras têm as suas crias. Não só para [o] proteger,mas também para o ensinar... e incitar" (p. 87)

(ii) As alcunhas, tal como na vida militar... Todos ou quase todos têm alcunhas,  em geral ligadas à sua proveniência geográfica ou terra natal, ou a alguma particularidade biográfica;

"Cá em cima, o Nazareno, o Farol [ilhavense,] , o Mira, o Poveiro, o Penicheiro, o Esquimó e também o Francisco, aliás, o Serrano" (p. 74)...

"O Francisco já se tinha apercebido de que as alcunhas tinham uma relação directa, nuns casos, com as terras de origem, noutros com o aspecto físico. O Nazareno, o Mira, o Penicheiro, o Poveiro, o Esquimó, o Chino. Outro tomara a alcunha da mãe, era o Gila. O Francisco estava agradado com o seu crisma. Ser da serra parecia que agora lhe dava um orgulho que nunca tinha sentido por não ser motivo para isso nascer-se no meio de cabras e de cumes" (p. 53).

(iii) O navio era a "grande casa", a caserna, o quartel, onde também havia segregação socioespacial... Por exemplo, não era habitual, os oficiais (capitão e imediato) entrarem, a não ser em situações excecionais, na área reservada ao pessoal (pescadores e moços de convés)... 

No bacalhoeiro "Nova Esperança", esse espaço, de "entrada reservada", chama-se rancho (que, segundo o gossário publicado no fim do livro, é o "espaço interior debaixo do castelo da proa", integrando a cozinha, refeitório e dormitório, p. 262).

Um dia, em que os homens andavam na faina na pesca (cada um com o seu dóri, e os devidos apetrechos), o velho Imediato lembrou-se de ir cozinha e pediu ao cozinheiro um café para ser servido no rancho, que o autor descreve sugestivamente nestes termos:

"Quando entrou no rancho o velho Oficial sentiu-se envolvido por um bafo agradavelmente morno mas acre de vinho e  cachaça. Noutro espectro odoroso, o fumo do cigarro feito na hora, o chulé e os restos de hálitos  não tratados. Tudo isto flutuva no ar havia uma hora, desde que os pescadores tinham partido para a faina" (p. 70)...

E onde não faltavam os calendários eróticos, com lindas raparigas com o corpinho à vela, tal como nas nossas casernas na Guiné, calendários que no caso de um navio balançam de maneira ritmada, "numa dança lasciva, sensual, convite à volúpia estonteante,  interminável" (p. 72)...

Perante o raparo do cozinheiro ("Não sei se eles [,os pescadores,]  iam gostar"), o velho Imediato comentou:

"Eu sei que os soldados não gostam que o Oficial de Dia lhes entre na caserna. Normalmente fazem-no mira de que haja algum desalinho para depois desferirem o castigo. Eu não vim aqui para isso, cozinheiro. Vim, simplesmente para tomar um café ao pé de si. Tenho uma enorme admiração pelos pescadores, mas não tenho menos por si, cozinheiro (...) Você sabe que a comida é motivo de muitas discórdias e guerras (...) (p. 71).

(iv) O mar é o mato... E só ao fim de quarenta dias depois de partirem de Lisboa, é que os homens do "Nova Esperança" , agora a caminho da Groenlêndia, voltam a pisar terra, neste caso o mítico porto de St. John's... 

"Bastaram quatro [dias] no porto de St. John's para lhes retemperar os corpos e tonificar os espíritos, porque pisaram terra firme, encontraram amigos de outros barcos, deambularam pelas ruas da cidade, farejaram o odor dos perfumes das mulheres nas lojas e centros comerciais desafiando as suas sexualidadesd reprimidas" (p. 106)...

(v) Mas o mar (e a pesca à linha do bacalhau) também é a solidão e a violência (dos conflitos, da fúria do mar, da dureza da vida a bordo, do risco de acidente e de naufrágio)... Haveremos de falar disso noutro poste, com mais tempo e vagar...

"Um homem sozinho, assim, num bote, no meio do mar, sente a paixão da liberdade e, ao mesmo tempo, o peso do abandono. É o que eu sinto. Mas o pensamento ninguém mo tira! A minha pobre Rita!"... [Fala do Tio Quico, o mais velho, que tem um filho em França, na emigração, e outro, o mais novo, apanhado na fronteira, recambiado para a tropa e agora nas Áfricas...] (p. 42).

(vi) Refira-se também a importância do correio...

"Agora têm pela frente cinco dias sem faina de pesca [a caminho da Groenlândia]. Só navegar. (....) E nas horas de descanso, sentados nas locas ou deitados nos beliches, a relerem as cartas que tinham recebido das famílias e amigos em St. John's" (p. 106).

(Continua) (**)

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Notas do editor:


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