48 - Avião amigo ou inimigo!?
No decurso da guerra colonial na Guiné, a presença de um avião no céu podia engendrar diferentes interpretações na cabeça das pessoas cá em baixo, dependendo do lado da trincheira em que se encontravam. Do lado da trincheira portuguesa, junto dos aquartelamentos, o avião apresentava-se com uma cara amiga e era sempre bem vindo, uma providência divina que tanto podia trazer correio, comida, ou salvar vidas em zonas isoladas e de difícil acesso no mato.
De todos, o mais conhecido terá sido, sem sombra de dúvidas, o helicóptero dos olhos de vidro (Alouette III), cujo som, inconfundível, no meio de todos os ruídos terrestres, começava por nos entrar furtivamente aos ouvidos em forma dum ligeiro zumbido de insecto voador, transformando-se paulatinamente num put-put-put em crescendo para de seguida inundar o espaço com o seu bruaaa infernal que envolvia e barafustava tudo e todos na voracidade das suas potentes hélices, agitando e revolvendo a massa de ar a sua volta.
Aiihh!.., o medo que sentíamos por aqueles que se atreviam a aproximar-se de uma dessas máquinas em movimento. Que dizer do impressionante cenário de ver o Gen. Spínola a descer ou a entrar num desses helis, o corpo firme e hirto como o poilão gigante das nossas savanas, chefe militar e homem-grande que encarnava as nossas ilusões de guerra e de paz. E que dizer, ainda, da espectacular e inesquecível descida de um grupo de tropas especiais (Marcelino da Mata?) de uma coluna de helis em pleno voo, rumo ao Oio. Bravura inabalável de uma juventude indómita ou simples ‘cretinice’ de jovens inocentes!?...
DO 27 em Guileje / Foto de José Neto (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné |
Já os aviões a jacto [, Fiat G91,] eram mais matreiros, conseguindo sempre fintar-nos pois, quando o som se anunciava repentino e levantávamos os olhos para o céu já eles estavam fora do alcance da nossa visão, mostrando, da forma mais insolente, a negrura do seu traseiro que cuspia fogo e fumo prateado. O destino era invariavelmente o nordeste da Guiné, Canquelefá, Pitche, Buruntuma, onde o inimigo teimava em infiltrar-se perniciosamente.
Para os que se situavam doutro lado da trincheira, o avião, em geral, era sinónimo de terror e constituía o maior perigo com que se podiam confrontar no meio do mato cerrado ou, pior ainda, numa zona aberta como as lálas e bolanhas. Atravessar uma bolanha, naqueles tempos de guerra, podia ser tanto ou mais difícil do que atravessar as águas do Geba ou do rio Corubal a nado.
Todavia, também existiam situações intermédias e menos conhecidas como por exemplo de pessoas que não se situavam em nenhuma das duas trincheiras ou se situavam numa mas que, ao mesmo tempo, por razões diversas eram obrigadas a frequentar, com certa assiduidade, o outro lado da trincheira, em território considerado de zona inimiga.
Os fulas em geral e os fulas forros em particular (magricelas e com pele mais clara), onde quer que se situassem, entravam sempre nesta situação particular e dúbia de não se conformar com as restrições e/ou imposições absurdas da guerra que complicavam, sobremaneira, a prática da sua principal actividade económica que era a pastorícia. E conscientes da impossibilidade real de fazerem compreender aos comandantes e chefes de guerra brancos que a criação de gado bovino não se compadecia com o sedentarismo dos arames farpados e que a divisão do território e a criação de zonas de segurança complicava a vida dos ganadeiros fulas, que frequentemente eram obrigados a violar, de forma escamoteada e silenciosa, as restrições impostas pelas hierarquias militares.
Assim, ainda crianças, éramos preparados a contornar estas ordens de forma a penetrar nas áreas proibidas onde o pasto era mais abundante e favorecia os nossos animais, sobretudo na época das chuvas (de Junho a Novembro). A preparação consistia em ensinar crianças dos 7 aos 12 anos a identificar os possíveis perigos ai existentes e as formas de os abordar.
Relativamente aos perigos do tipo animais ferozes (a onça e o leão) ou a presença de militares (fossem guerrilheiros ou milícias do lado português) a técnica era fugir primeiro e verificar depois, fugir ao menor movimento dos animais e mais tarde verificar o que teria sucedido.
O ruído, o cheiro, o estado dos animais, os excrementos, as marcas no chão e nas folhas das árvores eram sinais que nunca mentiam. Mas, também, acontecia, fugirmos em consequência de um alarme falso motivado pela presença de um animal menos perigoso, como as cobras, giboias ou babuínos que espantavam o gado.
Fiat G91. Foto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné |
Mais complicado em tudo isso eram, certamente, os aviões que apareciam de repente e aos quais não havia formas de comunicar para que soubessem que não éramos os “bandidos” que eles procuravam e que a nossa presença ali, em território inimigo, se explicava pela simples razão de que éramos pastores e vivíamos do pasto e estávamos a lutar pela sobrevivência dos nossos animais, única riqueza do nosso povo. Nesses casos, a nossa única esperança era que, mesmo que o avião nos tivesse visto, o que era uma forte probabilidade, não tivesse motivos suficientes para voltar atrás e perscrutar e muito menos para assumir uma posição de ataque contra nós, pobres pastores presos na lógica destruidora de uma guerra sem fim. O que se recomendava fazer nesse caso era procurar um abrigo qualquer, um buraco de baga-baga ou então dissimular-se nos arbustos, ficar quieto e esperar. Sobretudo não olhar para cima porque, diziam, a testa podia reflectir a luz do sol e denunciar a vossa presença.
Em virtude desta situação dúbia e muito complicada e ao longo da guerra perderam-se muitas cabeças de gado que as populações não podiam reclamar junto das autoridades militares tanto do lado da guerrilha como do lado português, e que muitas vezes era considerado “butin de guerre” pelas razões aqui expostas. Algumas vezes as perdas eram inestimáveis podendo incluir os próprios pastores, surpreendidos em plena floresta, porque se as milícias do lado português contentavam-se com o espólio dos animais, os guerrilheiros procuravam levar não só os animais mas também os jovens pastores a fim de engrossar as suas fileiras.
Heli Al III. Foto de Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné |
Notas:
Tradução das palavras em língua fula:
'Djarama abion' = obrigado avião.
'Djarama djoma abion' = obrigado ao dono do avião (tradução directa) o que em português quererá dizer - obrigado aos (nossos) pilotos de avião.
Bafatá, Maio de 2015
Cherno Abdulai Baldé
************
Observ - As fotos que não são do nosso blogue, foram enviadas pelo Cherno Baldé, seleccionadas da Net, sem indicação da fonte.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses