terça-feira, 1 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15064: Memória dos lugares (317): Zambujeira e Serra do Calvo, concelho da Lourinhã: mais duas terras que prestam uma justa homenagem aos seus combatentes


Foto nº 1



Foto nº 2

Lourinhã >  Zambujeira e Serra do Calvo > 31 de agosto de 2015 > Homenagem aos combatentes da Zambujeira e Serra do Calvo >

Em dia de festa (foto nº1: o arco festivo mais alto da região), passei por lá e fiquei agradavelmente surpreendido com este painel de azulejos de homenagem aos combantentes da guerra do ultramar (Foto nº 2),  destas duas terras, hoje pegadas,  e que fazem a sua festa anual em conjunto. Acabei de tirar estas duas fotos à hora do jantar, ao lusco-fusco. Desconhecia a existência do  monumento. Vou tentar saber mais pormenores.Sei que fica junto à Associação Grupo Desportivo, Cultural e Recreativo de Zambujeira e Serra do Calvo, em Zambujeira, e foi inaugurado em 5 de outubro de 2013.

O painel representa a despedida e o embarque de soldados para o ultramar, no T/T Niassa. A quadra do lado esquerdo diz o seguinte: "Adeus terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar / Não me chorem mas alegrem / Que eu hei de regressar".

Da Serra do Calvo, é o meu amigo de infância, que reencontrei ontem: esteve em Moçambique, durante a guerra colonial, e vive hoje no Brasil.  É autor de "Diário de um combatente: nas sendas da floresta" (Lisboa, Chiado Editora, 2013, 422 pp., preço de capa 14 €).

Sobre o autor, Silvino Pereira,  Chiado Editora tem a seguinte nota biobliográfica:

(i) é natural de Lourinhã onde sempre viveu, mas com visto de residência no Brasil há 5 anos;
(ii) foi combatente na guerra do Ultramar, em Moçambique, nos anos 1968 - 1970;
(iii) como aposentado, tem por hobby a escrita - gosto adquirido desde muito novo, patente nos diversos artigos da sua autoria publicados em jornais regionais;
(iv) além do "Diário de um combatente", escreveu e publicou nesta editora o romance "Destinos Cruéis", onde  tenta reproduzir a vivência da sociedade portuguesa, essencialmente, nas décadas de 60 e 70, cuja história se desenrola na Europa, África e América.
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15063: Os nossos seres, saberes e lazeres (113): Un viaggio nel sud Italia (4): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Com este passeio meteórico à Costa Amalfitana, despeço-me da Campânia, a viagem pelo Sul de Itália irá prolongar-se por Tivoli, um recante esplendoroso a que a UNESCO fez reconhecimento, e depois Assis, um dos sonhos da minha juventude, Giotto é um dos meus mestres indiscutíveis da pintura e há depois o ambiente dos lugares de S. Francisco.
Deste passeio de que hoje vos falo Amalfi foi ponto alto, ainda se respira o cruzamento de culturas entre o Ocidente e o Oriente, não é por acaso que estamos no Mediterrâneo Central.
Parto com vontade de regressar, Herculano, Nápoles e Caserta continuam nos meus imperativos. Não parto desapontado com a Costa Amalfitana, é demasiado trabalhada para meu gosto, sem detrimento de toda aquela pedra florestada a derramar-se para o mar tranquilo.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (4) 

Beja Santos

Um dia na Costa Amalfitana

Entre os vários itinerários possíveis para sair do porto de Salerno, para percorrer Amalfi, Positano, Capri e Sorrento, escolhi ir direto a Positano, depois Capri e Sorrento e ter Amalfi como penúltima paragem. Tudo de barco até Amalfi e regresso a Salerno de autocarro. Mal sabia eu a armadilha que estava a preparar para aquelas horas entre Amalfi e Salerno, numa estrada estreitíssima, permanentemente com ravinas a pique. Parecia o terror dos filmes. É o preço da inexperiência. E vamos ao passeio.



Não há turista que não diga, desvanecido, que a costa palpita com belezas incomparáveis, com os seus terraços de verde luxuriante, as casas suspensas, tudo entremeado com uma natureza selvagem, ardente e romântica (até parece linguagem de folheto turístico). Aproximamo-nos de Positano, e ninguém pode desdenhar quanto impressiona esta cenografia teatral, a cor do mar, um cíclame, e lá em cima as casas polícromas esparramadas pelas vertentes. Positano teve passado ilustre, competiu com a República de Amalfi pela supremacia do comércio marítimo no Mediterrâneo, no século XVIII. Teve a sua grande importância no Reino das Duas Sicílias, hoje é procurada pelo pitoresco e pelas praias. John Steinbeck, um dos seus visitantes ilustres, não escondeu a emoção que o lugar lhe provocou.


E de Positano rumámos para Capri, alguém lhe chamou “um dos pontos magnéticos do Universo”. Com ou sem exagero dos encómios, é uma das ilhas mais famosas do mundo e atribui-se-lhe o magnetismo à combinação da terra, mar e luz. Dispõe de grutas e farilhões, a costa é recortada, emerge dos abismos e a vegetação empina-se pelas rochas. Esta foi a Capri que li no livro de Axel Munthe e mais tarde em Malaparte, que deixou vila moderna num projeto arquitetónico excêntrico. Se saí e andei por ruas empinadas em Positano, deambulando por lojas de toda a sorte, chamarizes turísticos, aqui preferi ficar a olhar, quedo e mudo, sei que Capri tem sido cenário de muitos filmes, que um dos seus primeiros grandes admiradores foi o imperador Tibério, que aqui passou os seus últimos anos de vida. Nada de me meter em autocarro, táxi ou funicular, só olhar, procurar absorver esse milagre da natureza. O escritor Ivan Turgueniev desabafou: guardo a imagem de Capri até morrer. Gostei mas é uma beleza que não se me cola à pele.



Prossigo viagem, caminhamos para Sorrento, outro cenário natural maravilhoso convertido num dos lugares turísticos mais famosos de Itália. Vamo-nos aproximando desse imponente promontório que cai a pique sobre o mar, em terra sente-se que estamos numa zona pura de atrações turísticas, um pouco em contradição com o pitoresco da costa, vinha à procura dos testemunhos clássicos e medievais, das arquiteturas do Renascimento e do Barroco, o que encontrei foi o uso extravagante de uma posição exclusivamente dominada pela hotelaria e por recantos transformados em bilhetes-postais. Mas não hesitei em fotografar o autor da belíssima canção “Torna a surriento”. Para que conste.




E pronto, é o momento mais empolgante do meu dia, aqui respira-se a mesma serenidade do azul do céu e do mar, parece que foi tudo escavado à mão, sai-se do porto, percorre-se uma rua e é aquele baque do coração quando surge de chofre uma grande praça que tem no alto de uma escadaria a majestosa catedral, galvaniza pela dimensão humana, é o ponto alto de um verdadeiro palco, com belezas naturais ao fundo. Percorrem-se as ruas entre faunas de montanha e há vestígios seguros dos faustos dessa república marítima que viveu momentos de esplendor entre os séculos X e XII, com o seu comércio marítimo a apontar para o Oriente. Subi e desci porque queria gozar da posição panorâmica da catedral, abrir e fechar os olhos perante esta impressionante policromia, os seus esmaltes e mosaicos e o seu tímpano dourado. Àquela hora a catedral tinha fechado e assim perdi a visita ao Claustro do Paraíso e ao seu precioso museu diocesano. Ficará para a próxima, jamais poderei riscar Amalfi do meu coração. E agora vou-me meter num autocarro de pesadelo.



Enquanto esperava o autocarro, refletia sobre estes compactos que os turistas arranjam, tipo um dia na Costa Amalfitana. O tanas! Não fui a Ravello, nem a Praiano nem a Vietri, onde me interessava visitar o Museu de Cerâmica.
A viagem de autocarro começou por me divertir, tive lugar à frente e acompanhei as peripécias do condutor naquela estrada exígua para conseguir avançar no trânsito delirante. O pior foi quando me apercebi do declive para o abismo, aquelas centenas de metros, e entre nós e o abismo uma rede simbólica, entrei em agonia, foram duas horas a olhar para a berma esquerda, via arquitetura nos socalcos e ouvia os outros turistas delirantes com o espetáculo paradisíaco da costa até Salerno.

Despeço-me com algumas saudades, para a próxima vou até Herculano, Nápoles merece uma estadia, ficou por visitar o Palácio Real de Caserta, sonho de Carlos de Borbon, dizem que é esplendoroso. Vou arrumar a trouxa depois do último passeio pela Via dei Mercanti. Amanhã vou de passagem até Roma, a viagem prossegue para Tivoli, ali tenho património da UNESCO, Villa Adriana, mandada construir pelo imperador Adriano no século II depois de Cristo, Villa d’Este com todo o fascínio das suas fontes e jogos de água e Villa Gregoriana e o seu parque, por cima da acrópole romana. É a antepenúltima etapa, depois Assis, mais um olhar apressado sobre Roma e o regresso a Lisboa.

(Continua)

Texto e fotos: © Mário Beja Santos
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Nota do editor

Poste anterior da série de 26 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15040: Os nossos seres, saberes e lazeres (112): Un viaggio nel sud Italia (3): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 29 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 18.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

18 - De 22 a 25-7-1973 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/22 – Forças da 2.ª CCAÇ patrulharam a região de NHACOBÁ e LENGUEL sem terem detectado qualquer sinal da presença IN na região.


Das minhas memórias:

22 de Julho de 1973 – (Domingo) – Patrulhamento com missa. 

Caminhámos dentro da mata durante bastante tempo e julgo que a saída de Cumbijã deve ter sido bem cedo, pois que a meio da manhã tínhamos atingido o objectivo e inspeccionado a zona que me foi indicada. Eram percursos e objectivos nunca antes efectuados pelo meu grupo, e não sei se alguma vez por outros. A caminhada na mata foi normalíssima, igual a tantas outras, mas acabámos por desembocar num lugar estranhíssimo, que me causou algum desconforto, próprio da insegurança e da acuidade máxima dos sentidos. Ainda antes de atingirmos a orla da mata sentimos no ar um cheiro a maresia que nos deixou um pouco atónitos, pois na nossa frente, em campo aberto, nada indicava a proximidade de um desses braços de mar tão frequentes na Guiné, mas completamente estranhos para nós. Os odores marinhos, o dia cinzento, um chão estranho e um silêncio incomodativo, conjugavam-se para criar uma atmosfera e um cenário quase opressivos, como se indiciassem um perigo escondido ali algures. Decidi instalar o grupo na orla da mata e ir lá frente investigar sozinho. À minha frente, em campo aberto, tinha o que me pareceu uma lala, uma faixa estéril talvez com sessenta a setenta metros de largura e no limite da qual corria paralelo um cordão de pequenas árvores, a denunciar a presença de um riacho, não deixando ver nada para além dele. Havia que ir espreitar. Ao aproximar-me reparei que ao longo desta fiada de árvores havia paralelamente um uma leira muito uniforme e compacta de plantas que me davam um pouco abaixo dos joelhos e que, a uma certa distância, parecia um campo de trevo. Atravessei em direcção ao riacho por cima desse tapete muito verde e ocupei-me a observar o leito quase oculto no negrume das sombras. Para o outro lado das árvores e da vegetação cerrada, não consegui ver nada. Voltando para trás reparo, espantado, que o caminho que fiz pisando o tapete verde, parecia um corredor de um vermelho muito vivo. Fiz sinal para um dos furriéis se aproximar e partilhar comigo aquela visão estranhíssima. Ficou tão espantado como eu. Simplesmente porque aquelas plantas de folhagem miúda eram vermelhas por baixo, só se dando conta disso ao pisá-las.

Ao afastarmo-nos do riacho reparámos que à nossa direita se estendia uma bolanha com todo o aspecto de ter sido cultivada. Mas como é que, quando saí da orla da mata em direcção ao riacho, não a vi? Só percebi ao entrar na bolanha: todo o terreno tinha sido nivelado pela cota mais baixa, ficando ocultado pelo terreno poisio e irregular do lado da mata, muito mais alto. Dentro da bolanha completamente seca, chegava-nos com a aragem o cheiro a salgado com mais intensidade, mas em nenhum momento consegui vislumbrar a origem. Ao fundo da bolanha a visão era limitada pela fiada de árvores do riacho e outra vegetação de pequeno porte e nada se via para além dela. Nem eu naquela zona arriscava indagar mais longe. Até porque, em todo o tempo em que ali estivemos, tive sempre a sensação desconfortável de andar a espiolhar o quintal do vizinho. Já sozinho, ainda tentei encontrar vestígios ao longo da bolanha mas nada vi. Pelas medas pequenas de palha de arroz quase em decomposição, espalhadas um pouco ao acaso, percebia-se que tudo estava abandonado há muito.

Regressei para junto do grupo na mata decidido a pormo-nos rapidamente a milhas dali, mas encontrei no caminho um grupo de seis ou sete soldados, afastados do pelotão e sentados contra a pequena ribanceira do terreno mais elevado. À medida que me aproximava em passo acelerado, vi que estavam todos muito compenetrados e com ar solene, olhando para mim sérios mas sem intenções de se levantarem. Intrigado, só ao parar frente a eles percebi que estavam a ouvir missa – era domingo -, através de um pequeno “transístor” colocado no chão no meio deles com o som reduzido. Perguntei apenas se faltava muito para acabar, ao que um deles respondeu que devia estar quase no fim. Disse-lhes que se levantassem logo que acabasse, para eu dar ordem de marcha. E fui esperar e descansar um pouco na mata junto do grupo. Depois foi o regresso a Cumbijã, com algumas almas mais lavadas.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/23 – Forças da 1.ª CCAÇ durante a acção “OURIQUE” patrulharam a região de SAMENAU, TUNANE e R. DÉBEL. Na região de SAMENAU ouviram umas rajadas de AAutm (armas automáticas). Dada a impossibilidade de atravessar a bolanha do R. CUMBIJÃ, bateu-se a região com Artª., cessando as rajadas.

- Realizou-se uma coluna extraordinária entre Nhala e Buba para evacuação de um ferido. (da H. U. do BCAÇ 3852).

JUL73/25 – Forças da 2.ª CCAÇ durante a acção “ORIUNDO” patrulharam a região do R. GONHEGEL sem contacto.

- Pelas 17h30 GR IN não estimado flagelou o Destacamento de CUMBIJÃ durante 10 minutos com 9 granadas de canhão S/R 82, sem consequências.


Das minhas memórias: 

25 de Julho de 1973 – (quarta-feira) – Flagelação a Cumbijã: minha 1.ª vez aqui e 4.ª ao todo.

Cumbijã, tanta vez alvo de flagelações, foi flagelada nesta data e outra vez no dia 30. Pela hora referida na História da Unidade, julgo ser a data em que, pela 1.ª vez, fui apanhado no aquartelamento durante uma flagelação. Era o 4.º ataque para o meu registo “curricular”. Mas o que ficou para sempre na minha memória, não foi a flagelação em si, mas um episódio um pouco bizarro e enigmático, que me deixou assim numa espécie de desconsolo piedoso.

Conversávamos despreocupadamente encostados ao balcão do bar, julgo que se chamava “Flor do Cumbijã”, cada um com o seu copo na mão, quando caiu a primeira granada, lá para os fundos do aquartelamento e longe do arame farpado. A primeira reacção foi largar o copo e correr para a vala mais próxima, sem medo nem precipitações, ainda duvidoso de que fosse mesmo um ataque. Mas não tardou a segunda granada, a terceira e as seguintes, cada vez mais próximas do arame farpado, para um lado e para o outro do aquartelamento. Saltei para dentro da vala, creio que era quase no meio aquartelamento, junto ao Comando e outras dependências, e já lá estava o Major D. M. com o Capitão de Operações e outros. Já dentro da vala e ao virar-me para a frente, o lado do bar, fiquei estupefacto ao ver ainda encostado ao balcão o Cap. B. C. com o seu copo de gin na mão, como se não fosse nada. Surpreso, por momentos alheei-me dos rebentamentos e a minha mente vagueou à procura de uma explicação para aquela atitude, recusando a ideia de uma bravata despropositada, que não condizia com a personalidade que lhe reconhecíamos, ou de uma postura suicida, mas não encontrando mais nenhuma explicação. Fiquei meio sem reacção, podia ter tido alguma iniciativa mas estava bloqueado. Porquê aquilo? Não lhe conhecia problemas que merecessem um tal despreendimento da vida, ainda mais na frente de todos. Mas, o que sabemos nós do foro íntimo dos outros? E de nós mesmos? Vamo-nos revelando conforme o meio e as circunstâncias inusitadas, ao ritmo em que as vamos ultrapassando. Que sei eu?

Despertou-me do devaneio, o berro do Major, “Capitão B. C. venha imediatamente para a vala!”. Ele, impávido, fitava-nos de lá onde estava, enquanto levava o copo à boca, com uma expressão que não era de desdém nem superioridade, mas de uma serenidade que não batia certo com o momento. Pareceu-me ver-lhe aflorar um sorriso mas, por certo, foi impressão minha. Entretanto o Major insistiu para que saísse dali e ele, aos poucos, foi-se aproximando de nós, sempre com uma expressão natural, nem apática nem enfática. Não estava a desafiar nem a provocar, apenas mostrava desprezo pela vida, com naturalidade.

Não recordo se chegou a entrar na vala, até porque uma das últimas granadas caía agora do lado da estrada, fora do arame farpado, e tudo acabava por essa tarde sem que houvesse sequer feridos. Entretanto os camaradas da artilharia, que haviam começado a resposta à flagelação quase no início desta, continuaram a disparar o obus por mais algum tempo e o último disparo foi também o ponto final naquela tarde de sobressalto.


Histórias marginais (1): Abelhas assustadoras. 

Por um destes dias saímos pela estrada nova, não asfaltada ainda, em direcção a Nhacobá para depois nos embrenharmos na mata num patrulhamento que já não recordo. Era apenas o meu grupo de combate e caminhávamos em fila indiana, guardando grandes distâncias, pelo meio da estrada. A via paralela à estrada, mais baixa e de terra batida, só se podia usar após picagem e nessa ocasião não era necessária. A tarde estava tão amena e solarenga que a disposição de todos era óptima, parecia até que íamos para um passeio. Uma grande recta com a mata alta de ambos os lados e próxima da estrada. Parecia que estávamos no Bussaco. A verdade é que, desde o princípio, tivemos a percepção de que tudo iria correr bem, e quando isso acontecia, tudo corria bem mesmo. Excluindo os percalços...

Indo entre os primeiros homens, vi que o da frente parou, recuou uns passos e o segundo fez o mesmo. Depois viraram-se para trás e, hesitantes, fizeram-me sinal. Apreensivo, fui à frente saber o que se passava mas, ainda distante, comecei a ouvir uma zoada intensa e que aumentava à medida que me aproximava dos dois homens da frente. Chegado junto deles, de novo virados para a frente e muito temerosos, vi com espanto uma nuvem de abelhas tão compacta e volumosa, que fazia uma grande sombra na estrada a cerca de dois metros do chão. A nuvem de abelhas, - não lhe posso chamar enxame porque seriam muitos enxames -, cobria quase toda a largura da estrada e, embora fervilhassem em reviravoltas loucas fazendo uma zoada de meter respeito, mantinham-se estáticas em relação à estrada. Nunca tinha visto nada assim nem voltei a ver, embora tropeçasse muitas vezes ainda em enxames de abelhas. Estávamos a vinte ou trinta metros das abelhas e recuámos um pouco mais para aguardar a evolução daquele imprevisto, ou eu ter de decidir o que fazer.

Nesse compasso de espera fui avaliando as hipóteses e, uma a uma, fui-as descartando. Estava a ficar num impasse e elas continuavam ali. Mesmo que tivesse uma granada de fumos, não a utilizaria naquelas circunstâncias, pois isso poderia desencadear o ataque delas em vez de as afugentar. Ocorreu-me a história que me contaram em Nhala do único burro que lá havia e que morreu com um ataque de abelhas. Acho que tive um estremecimento. Mas também não podia comunicar ao Comando que estava bloqueado com uma nuvem de abelhas, por parecer ridículo e porque eles não compreenderiam. Passar na faixa de terra batida adjacente à estrada estava fora de questão porque teríamos de fazer uma picagem à minha responsabilidade e, ainda assim, não teria garantia de passar ao lado das abelhas sem que nos atacassem. Juntei o grupo e decidi o seguinte: vamos passar um a um, lentamente, o mais agachados possível e sem movimentos bruscos. Os que aguardam mantém-se quietos assim como os que passam para o outro lado. Se as abelhas atacarem durante a passagem, deitar de barriga para baixo, imóveis e com a cara protegida. A distância segura manter a vigilância para a mata.

Pela reacção da maioria do grupo, nada convencidos, pareceu-me que com melhor ânimo aceitariam a ordem para um golpe de mão. Sentindo que era meu dever passar à prática as instruções que lhes comunicara, avancei eu para aquele turbilhão vivo e aterrador, que persistia ali. Quico enterrado na cabeça até às orelhas, golas para cima e mangas para baixo, avancei. Não tenho vergonha de confessar que, já sob a nuvem de abelhas e com aquela zoada de entontecer, embora calmo, levava o sangue gelado. Mas não aconteceu nada e eu afastei-me, sempre na defensiva, até quase as deixar de ouvir. Virei-me para trás e fiz sinal para que avançasse o seguinte. Passámos todos, embora a operação demorasse mais do que eu supusera.

A descompressão que se seguiu foi tal que parecia que caminhávamos para uma festa, mesmo se quase em silêncio. De tal modo que, já não muito longe de Nhacobá, encontrámos uma granada do nosso morteiro 60 por rebentar na berma da estrada e eu, com alguma irresponsabilidade tendo em conta a zona em que estávamos, pu-la de pé com “pinças” num monte de terra da berma e tentei acertar-lhe de longe com dois tiros de G3, falhados, quem sabe se para meu bem... O problema é que eu sabia como era delicado manusear aquele tipo de granada na situação de encravamento do dispositivo de percussão: falara-se disso quer em Mafra, quer em Tancos. Já não recordo bem mas suponho que me resignei a deixá-la assinalada na berma para, numa oportunidade melhor, a accionar com um petardo. Também já não recordo o nosso destino nesse patrulhamento, nem o regresso a Cumbijã mas, tenho a certeza, não voltámos a ver as horríveis abelhas em tal situação. Tivemos outros casos, - que mais tarde talvez conte -, mas nunca mais vimos nada parecido. Felizmente.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15050: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (17): De 8 a 21 de Julho de 1973

Guiné 63/74 - P15061: Parabéns a você (955): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15047: Parabéns a você (954): António Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15060: Notas de leitura (753): "Diário dos Caminhos de Santiago", do nosso camarada Abílio Machado, português e minhoto, com costela galega, ex-alf mil, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72... Um livro que nos ajuda a aprender a envelhecer de maneira saudável, ativa e produtiva... (Luís Graça)

1. A obra:

Título: Diário dos Caminhos de Santiago

Autor: Abílio Machado

Número de páginas: 358

Editora: Edita-me
[Rua Barata Feyo, 140, sala 1.10,
4250-076 Porto]

Ano: 2013

Ilustrações (capa e interior): Miguel Teixeira

Tamanho: 235 x 153 mm


ISBN 987-989-743-011-4

Preço: 15 €

Excerto da obra


2. Nota biográfica > Abílio Machado

Abílio Machado nasceu em janeiro de 1947, em Guardizela, Guimarães, numa família humilde, sendo o mais velho de oito irmãos.

Frequentou a escola primária de 53 a 56.

Aos 10 anos ingressou no seminário, o que terá marcado a sua personalidade e o interesse pela vida cultural.

Abandonado o seminário, vai para Coimbra, em 66, onde segue a vida académica, no curso de Direito. Fez o serviço militar obrigatório de 1969 a 1972, tendo sido mobilizado para a guerra colonial, na Guiné, de 1970 a 1972 [, CCS/BART 2917, Bambadinca].

Trabalhou como delegado de informação médica durante 31 anos. Aos 60 anos aposentou-se.

Em 1985, dinamiza um grupo de jovens desafiando-os para cantarem as janeiras e... desde aí a música como que fez acordes com a amizade mantendo-se uma presença constante na sua vida.
Narrador de histórias, amante da boa gastronomia, a sabedoria é um acento tónico no seu dia a dia, que gosta de partilhar como bom conversador.

Não guarda para si o que aprende e com frequência o ouvimos transmitir histórias deste e doutros mundos. 

Amante da natureza e dos homens, com a teimosia que lhe corre nas veias, iniciou-se como peregrino a Santiago em agosto de 1993, após - segundo diz - uma conversa tida com o Santo.

Os motivos culturais, do espírito, a curiosidade histórica fizeram com que se apaixonasse por estes caminhos e não mais parou, somou ao registo do olhar, as palavras salpicadas da alma, no seu exponente máximo de sentido crítico e sensibilidade... 

A 10 ade gosto de 1993, “a torre da velha igreja exultou, batendo as nove badaladas...” e os primeiros caminhos de Santiago surgem enternecidos e eternizados, por vontade e por paixão, estreando-se na literatura com os seus diários, pincelados de um humor característico.

Redescobre-se um narrador que estava adormecido. O seu destino era mesmo este e isso o deve a um santo...

A natureza e os caminhos foram os seus cúmplices... e no silêncio das folhas quase se ouve o resvalar das pedras... avancemos, rumo a Compostela!

Fonte: texto e fotos: Edita-me [com a devida vénia].


3. Comentário de L.G.:

Já aqui temos falado do Abílio Machado, nosso camarada e amigo de Bambadinca (CCS / BART 2917, 1970/72). E sobretudo a propósito de música. Ele é um dos fundadores, em finais de 1985, na Maia, de um notável grupo musical, o Toque de Caixa, de que saíram, além de inúmeros espetáculos ao vivo,  dois CD,  Histórias do Som (1993) e  Cruzes, Canhoto (2010).

 O seu gosto pela música, as suas excecionais qualidades humanas, o sentido da camaradagem, a afabilidade,  o gosto pelo convívio, o "espírito coimbrão", a irrequietude intelectual... eu já os conhecida de Bambadinca: o "Bilocas", como era tratado carinhosamente, esteve connosco em Bambadinca, entre maio de 1970 e março de 1971. Alf mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72, fizemos lá uma bela amizade: ele, "baladeiro", tocava viola, mas era um "periquito", um alferes de secretaria, e nós, operacionais, já calejados da guerra, "pretos de 1ª classe", da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá...

Quando digo nós, refiro- me a mim, ao Humberto Reis, ao Tony Levezinho, ao Zé da Ilha (José Vieira de Sousa), o GG  ( Gabriel Gonçalves, o nosso cripto), e outros, noctívagos, que gostávamos de cantar, beber, conviver, de preferência, pelas horas altas da noite... Ele era dos poucos alferes, para além do Zé Luís Vacas de Carvalho,  que nos acompanhava nessas noites de insónia,  de copos e de tertúlia... Como se o bar de sargentos de Bambadinca (e os nossos quartos...) fosse uma república coimbrã...

Perdi-o de vista até 2007.  Foi a música e, claro, o nosso blogue e a Guiné, por mão do Humberto Reis e do Benjamim Durães, que de novo nos aproximou... Em boa hora!...  O que não conhecia do Abílio era o gosto pela escrita e a paixão pelo sagradlo e pelo profano, onde se incluen os caminhos de Santiago, o "matamouros"...

Mandou-me em março passado, uma cópia do seu livro, o "Diário dos Caminhos de Santiago", com a seguinte dedicatória:

"Para o Luís, velho amigo, com quem, noutras guerras, os caminhos da vida me fizeram encontrado. Com a amizade do Abílio Machado, 9/3/2015".

No "meu querido mês de agosto" de 2015, tentei pôr as leituras em dia, e um dos livros de praia e de cabeceira, que li de um fôlego,  foi justamente o "Diário dos Caminhos de Santiago". De maneira obsessiva, empenhada, determinada, o "português e minhoto" Abílio Machado, com costela galega, meteu-se nas suas tamanquinhas, e de cajado na mão, começou por fazer o "caminho português" (Vila Nova da Telha / Santiago de Compostela), entre 10 e 16 de agosto de 1993, o ano do Jubileu...

Treze anos depois, já reformado da indústria farmacêutica, retomou os caminhos de Santiago, sem nunca se esquecer do seu "vade mecum", o caderninho de notas ou diário de caminhante: caminho aragonês (Col de Somport / Puente la Reina, 2 a 9 de abril de 2006); caminho inglês (Ferrol / Pontedeume / Betanzos / Ardemil / Santiago,  13 a 18 de abril de 2009); caminho de Finisterra ou Fisterra (Santiago / Negreira / Oliveiroa / Muxia / Fisterra, 16 a 20 de agosto de 2010) e, por fim, caminho de Navarra ou caminho de Prisciliano (18 de maio a 17 de junho de 2011).

A minha primeira reação foi de "inveja": como eu gostaria de ter estado, não no lugar do caminheiro, mas a seu lado... E depois, não menos emocional, a de admiração e de regozijo. Passei ainda a ter mais orgulho deste amigo e camarada da Guiné que foi capaz de realizar um sonho e superar-se a si próprio... Porque a vida e o sonho são como os caminhos de Santiago... "A onde ira o meu romeiro /, Meu romeiro a onde ira, / Caminho de Compostela, / Não sey se la chegara"... O provérbio é galego, a citação, logo no início do livro, dá o mote, e mostra o tamanho do desafio.

Tomei uma série de notas, a lápis, nas margens do livro, que quero compartilhar com o autor e os seus leitores, atuais e potenciais. Fica para um próximo poste. Quero apenas registar, agora,  quanto me agradou a escrita, viva, fresca, solta, criativa, muitas vezes "caligráfica". O tom é o do bom humor, da ironia e da auto-ironia: nos caminhos de Santiago, também há saudações provocações e piropos brejeiros... As referências, no texto,  historiográficas, geográficas e toponímicas são muito úteis, sem nem nunca serem pesadas como nos trabalhos académicos da gente erudita (...e chata). O Abílio foi um fantástico caminheiro, quase sempre solitário, mas que fazia antes o seu TPC, o seu trabalho de casa. Aprendi muito com ele.

Parabéns, "Bilocas", amigo e camarada, pela capacidade de sofrimento, superação e realização, e pelo teu trabalho, literário, que passa a ser uma referência útil e até obrigatória para os futuros romeiros de Santiago.

Já desafiei a Alice para pegar na trouxa e zarpar: ela é muito mais caminheira (e gaiteira) do que eu,.. Confesso que o teu exemplo é contagiante... Mais importante: é a prova provada de que os "camaradas da Guiné" podem, apesar da idade e o do contexto societal depressivo, aprender a envelhecer de maneira saudável, ativa e até produtiva. Afinal, o(s) caminho(s) de Santiago, para além do mito e da realidade, é(são) sobretudo um estado de espírito, sem deixar(em) de ter o requsito da boa forma... física!

Um grande alfabravo fraterno. LG

PS - Falei esta manhã, através do telemóvel, com o Abílio, que estava em Albufeira, fazendo de avô baboso (e talentoso) de dois netos gémeos, da sua sua filha Rita (que é diretora de 2 hoteis  em terra de mouros). A música agora pode esperar e o Santiago também. Diz-me que vai falando com o santo, e que ainda não cumpriu a promessa (ou a penitência ?) toda,., Antes dos 70 anos, ainda vai ter que pamilhar, desta vez com companhia, o difícil mas deslumbrante caminho do norte, que segue entre mar e montanha.

Também confirmei, com ele, o ano em que voltou á Guiné, por terra, de jipe: foi no início de 2013. Tenho o relato em papel, falta-me o ficheiro digital e algumas fotos.

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15058: Notas de leitura (752): “O Guardião”, por Fernando Antunes, Edição de Setembro de 2011 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15059: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (7): Bedanda


1. Parte VII de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (7)

Bedanda

Em Bedanda a companhia era de africanos com excepção da maioria dos graduados. Fui encontrar, imaginem, o Zé Cavaco que é meu conterrâneo. O mundo é pequeno. Apenas fui tapar um buraco durante um mês. Alguém que foi de férias ou que chegou ao fim da comissão. Quem sabe se doente! Pode ser que um dia saiba mais coisas através do Zeca. Sei que o Comandante era o Capitão Ayala Boto. Nesta unidade havia um padre.


Bedanda era um lugar onde os ataques se davam. Num dia de trovoada precisamente no momento do estalar do primeiro trovão sofremos um ataque ao arame. Nas férias antes de vir para este aquartelamento adquiri um gravador de bobines com muita música gravada em casa dos meus amigos Marino Lemos e Maria Teves e estávamos a ouvir boa música clássica quando esse ataque se deu.


Ficamos hesitantes uma fracção de segundo sem saber se era a guerra ou se era trovoada. Mas eram as duas coisas ao mesmo tempo. Larga pés para que vos quero a caminho das valas. Porém as fotos não passam dum momento de boa disposição, treinando, imaginando um ataque.

Mas a guerra tem muitas facetas sendo uma delas a Marinha que pela Guiné andava a desminar rios. E aconteceu enquanto lá estive. O rio Cumbijã que banhava aquela zona foi minado e tivemos sorte porque foi na altura da maré vazia que alguém deu por isso. Era por ele que as LDG’s ou LDM’s abasteciam, via marítima e fluvial, o aquartelamento. Assim vieram os peritos tratar do assunto.


Nesse mesmo rio fui uma vez com o sintex fazer uma caçada ao crocodilo pois disseram-me que esses hidrossáurios apareciam por ali. Apanhei um. Alguém da milícia prontificou-se para tirar a pele e prepará-la para um colega do Porto a levar para ser tratada e que depois ma enviaria de retorno. Até hoje. A carne de crocodilo acho que foi o preço de preparar a pele. A pele de crocodilo dava para fazer malas e sapatos, na altura, e que custavam muito dinheiro. Na altura o exército estava com falta de capitães e arranjou maneiras de cativar civis para esta tarefa.



Que era perigoso andar por ali, era, mas quando somos novos não medimos bem as consequências. A guerra apresentava-nos muitas surpresas e tudo podia ter acontecido. Apanhar material de guerra ao inimigo também aconteceu.


Os nossos obuses não eram rebuçados nenhuns e cada bujarda levava 45kg. E lembro-me uma vez que fui fazer um patrulhamento para uma zona de aldeamento onde andavam pessoas não controladas por nós,  combinando com o artilheiro o lançamento destes rebuçados para pontificar a pontaria do obus. Sei que vi do lado de lá do rio pessoas a andarem de canoa e outras pessoas que ali viviam.



Por vezes o abastecimento dos alimentos nem sempre eram feitos por LDG’s e em alternância os aviões deixavam esse precioso bem cair de paraquedas.


Ir de férias era muito bom, nem que fosse o tal artigo do RDM que nos dava 5 dias. Sair do mato e no meu caso estar em Bissau era fugir do inferno e chegar ao paraíso. Chegava a Bissau completamente descontrolado, desnorteado mas sabia que estava melhor do que no mato. Já não me lembro como sabíamos que era num dia marcado mas o certo é que íamos de avioneta para Bissau. Sei que nos instalávamos no hotel e depois era passear por Bissau. Comprar uma bebida, normalmente cerveja, era o ritual normal e que vinha acompanhado sempre dum pratinho de camarão. Os serões eram passados no QG onde se jogava bingo e saíam bons prémios, como frigoríficos. Estes no mato trabalhavam a petróleo. Foi no QG que encontrei o Capitão Albergaria que conheci em casa do Marino Lemos. Muito isolado e retirado. Lembro-me de ter conversado com ele. Aqui em Bissau ouviam-se todas as histórias passadas em todos os aquartelamentos. O hospital era o centro de todas as notícias más que aconteciam no mato. Soube que muita tropa dos comandos morreram e muitos dos que tiraram a especialidade comigo em Lamego. Era tropa de intervenção juntamente com outra como fuzileiros, rangers, etc. Lembro-me vagamente de ter estado em casa dum militar cuja mulher estava em Bissau.

No mato o tempo era difícil de passar e para distrair um pouco íamos até à tabanca. Éramos rodeados de muito miúdos pois entrar em diálogo com a população não era fácil pois existia sempre uma desconfiança. Outra maneira de viver e estar ocupados por outro povo que não os deixava estar livres e a fazer a sua vida não era fácil.


Outra distracção era o futebol que nos abstraía de tudo o que era guerra. Fazíamos boas partidas deste desporto.


Dentro do quartel as mais diversas situações proporcionavam as mais diversas conversas cavaqueiras ora amenas ora tristes mas tínhamos um médico, o Bravo, com o qual passávamos horas de boa disposição pois ele tinha jeito para as anedotas ou histórias.


Outras vezes vestia-me à civil para fazer crer que não estava no mato.


Por vezes dava uma voltinha fora do arame farpado, também, para distrair.


O General Spínola visitava as suas tropas sem prévio aviso. Metia-se num helicóptero e foi o que nos aconteceu por altura do Natal.


Um certo dia tive uma surpresa. O meu colega Silva que me enviou para Bedanda veio fazer-me uma visita.



Em Bedanda passei por um mau momento em que o meu estado psicológico não foi dos melhores.

Publicado por Tibério Borges
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Nota do editor

Postes da série de:

8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

5 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

15 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15006: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (5): Invasão a Conakry e, Entre Cacine e Cameconde
e
23 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15031: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (6): Gadamael Porto

Guiné 63/74 - P15058: Notas de leitura (752): “O Guardião”, por Fernando Antunes, Edição de Setembro de 2011 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Antunes assina um relato minucioso do que viveu no BART 2924, que operou na região de Quínara. Destaca-se a admiração profunda que nutre pelo segundo comandante da unidade e mais tarde primeiro comandante, hoje general José Figueiredo Valente. Fica-se hesitante se é melhor confiar no seu relato ou na história do BART 2924. Tendo sido sargento de informações e operações teve acesso a toda a documentação da guerra, daí poder ser essencial estudar a evolução deste setor da região Sul a partir destas duas fontes. É um cronista animado e confiante. Daí perceber-se o seu orgulho ao publicar na contracapa o louvor que lhe foi conferido por Spínola, em Setembro de 1972.

Um abraço do
Mário


O Guardião, por Fernando Antunes

Beja Santos

Logo na dedicatória se fica a perceber o tremendo vínculo de admiração que une o autor desta narrativa a quem o comandou no BART 2924, sediado em Tite: “Ao general José Fernando Valles de Figueiredo Valente, um homem íntegro, ao qual pudemos confiar, de boa-fé, a nossa vida, foi meu comandante na Guiné, o Guardião”. Edição de Setembro de 2011.

Partem em 23 de Setembro de 1970, Fernando Antunes é furriel, irá desempenhar as funções de Sargento das Operações, junto do Comando do Batalhão. Nos dados curriculares que apresenta, depreende-se que é mobilizado por motivos políticos, diz que estudou na Escola 12 do Bairro Alto, onde encontrou Domenico Conte, com quem estudou até ao 7.º ano. E adianta: “Separados, por um evento político em Coimbra, os estudantes fazem uma partida ao presidente Américo Tomás e todos os estudantes são chamados para o serviço militar obrigatório. Vai parar à guerra da Guiné. Ao 2.º ano do ISE acaba os seus estudos académicos”. Chegados em 28 de Setembro a Bissau são despachados por LDG para Bolama, é a primeira unidade que vai fazer a instrução de aperfeiçoamento operacional na antiga capital da Guiné. As instalações que o aguardam estão completamente degradadas, um edifício da Casa Gouveia, assim descrito: no rés-do-chão tem quatro casernas que por certo pertenciam às cavalariças; uma cozinha sem sistema de água ou esgotos, ali se fazia o rancho para todos; os duches são doze torneiras de água instaladas no pátio; os quartos improvisados têm beliches com três e quatro andares; a retrete é uma vala de quatro metros; o primeiro andar tem um varandim, uma sala e dois quartos onde se instalaram os três elementos do comando; a instalação elétrica é quase inexistente; não há equipamento de frio para conservar os alimentos. Bolama é uma cidade morta, a sua atividade económica está circunscrita ao arroz. Logo na primeira noite eclode uma intoxicação alimentar, o 2.º Comandante logo lidera a operação, o médico da unidade é rotulado de “uma dor de alma”, são os médicos Piu Abreu e Sá e Melo quem aguentam a borrasca. O Comando tem três oficiais superiores, o Primeiro Comandante que neste relato fica praticamente na sombra é dado como “um homem franzino e debilitado pelo vício sôfrego do tabaco”. Há evidentemente o Major Valente, que é tratado com todos os encómios e o Major Malaquias, assim descrito: “É um homem alto e forte, com uma presença serena, e quando aborda qualquer assunto fá-lo com ponderação e sabedoria e tem uma cultura acima da média”.

Feito o IAO, o BART 2924 vai para Quínara, a Frente de Luta do Quínara, para o PAIGC. O terreno operacional que lhes cabe é descrito minuciosamente: há a espinha dorsal de S. João-Nova Sintra-Fulacunda, que divide o norte do sul do setor; a norte situam-se os quartéis de Tite e de Jabadá; para sul sai o caminho que serve o aquartelamento a Nova Sintra. Utilizam-se dois itinerários, a picada de Tite-Enxudé e a de Nova Sintra-S. João, que é aberta quando o quartel de Nova Sintra recebe reabastecimentos por via fluvial. Uma pequena picada liga o centro de Jabadá à margem do rio Geba. Quínara foi inicialmente chão Beafada, ao tempo a etnia Balanta representava mais de 50% da população. O PAIGC é junto dos Balantas que encontra maior apoio. Fernando Antunes escreve a orgânica do PAIGC na região Sul, dispositivo militar e civil. São os quatros civis do PAIGC que dão instrução ideológica. O setor teria dez escolas do PAIGC. Refere a diretiva emanada de Spínola “Razão Confiante”, aplicação dos princípios constantes do programa “Por uma Guiné melhor” e a diretiva “Grande Razão” orientada para o reordenamento da zona de Bissássema. Ficamos a saber quais as tarefas da unidade e o dispositivo colocado em Tite, Bissássema, Enxudé, Nova Sintra, Fulacunda e Jabadá: mais de 800 militares, incluindo 200 efetivos dos pelotões de milícias. Segundo o autor, as instalações de Tite, Fulacunda e Jabadá eram aceitáveis, as de Nova Sintra degradantes e deficientes. Regista o estado psicológico a que chegara a unidade que foram render, o BCAÇ 2867, destaca vários oficiais que foram evacuados por doença do foro neuropsiquiátrico.

Logo em 1 de Janeiro de 1971 tem lugar o reconhecimento do local onde iria ser implantada a tabanca reordenada de Bissássema. Em Fevereiro chega a 1.ª Companhia de Comandos Africana, comandada por João Bacar Djaló, as refregas vão ter lugar, o PAIGC mostra-se agressivo, começam as flagelações. O autor ajuda fazer nascer o jornal de caserna “A voz do Quínara”. Em Março, realiza-se a operação “Desejada Oportunidade”, haverá acampamentos destruídos, o IN retira temporariamente, emboscará os comandos africanos em Jufá, tabanca de controlo IN, os comandos perdem a cabeça e descarregam sobre a população. A ação psicossocial começa a dar frutos, em todo o setor, muitos civis apresentam-se. Em Maio, realiza-se um encontro preparatório do “II Congresso dos Povos da Guiné”, nesse mês Tite é atacada. Escreve: “O IN teve a ousada estratégica de, utilizando de longe a artilharia, manter os guerrilheiros, os apontadores de RPG bastante perto do aquartelamento, perto do arame-farpado, sujeitando ao perigo de morte as centenas de guerrilheiros, a hipotéticos erros da sua artilharia, o que demonstra um destemor nunca manifestado até hoje”. É mencionado o potencial de guerra que cabe aos efetivos do PAIGC capitaneados por Nino Vieira. Os meses passam, foi criada a rádio Tite com emissões diárias de uma hora, com música pop da atualidade.

Fernando Antunes destaca uma conversa que teve com um dos participantes da Operação Mar Verde, o comando africano acha que valeu a pena pela libertação dos camaradas prisioneiros, o resto foi uma total desilusão pelo insucesso. Estamos em Outubro de 1971, o Comandante Valente planeou ações de surpresa, e uma delas, a ação “Novidade” resulta a captura do presidente de comité conhecido por Pascoal Có, mais tarde abatido quando tentava fugir. O Comandante Valente é promovido a Tenente-Coronel, agora é o Comandante efetivo da unidade. São inauguradas as escolas de Enxudé e Bissássema. Em Dezembro de 1971 é constituído o grupo especial de milícias, todos da etnia Balanta. Há mais população a regressar. A estrada alcatroada Tite-Bissássema, a despeito das minas do IN, apronta-se. Pela primeira vez, em Março de 1972, Jabadá sofre um ataque diurno. Para surpresa do leitor que procura seguir atentamente este relato de quem se documentou com a história da unidade, fica-se a saber que o PAIGC se vai reunindo com a população sujeita a duplo controlo, intimida-a a não fornecer informações às tropas portuguesas. A estrada asfaltada é inaugurada em Abril. Nasce a cooperativa agropecuária em Bissássema. O Ministro da Defesa comparece à inauguração da estrada asfaltada Tite-Enxudé. O grupo especial de milícias tem os seus roncos, destaca-se a captura do comandante Tamba Bazooca. E em Agosto chegou a hora da despedida. Findou aqui o relato. A admiração pelo guardião é irrestrita, o pai adotivo e o irmão mais velho e todos no BART 2924.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15048: Notas de leitura (751): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 30 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15057: In Memoriam (238): Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares (1947-2015), ex-1º cabo escriturário da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). O funeral é amanhã, às 10h20, em Oliveira do Douro, Vila Nova de Gaia... (Fernando Andrade de Sousa, Trofa / José Fernando Almeida, Óbidos)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Da esquerda para a direita: primeira fila:

(i) elemento que não identifico mas que é da CCAÇ 12;

(ii) Francisco Magalhães Moreira (alf mil op esp, cmdt do 1º Gr Comb);

(iii) António Manuel Carlão (alf mil  at inf, cmdt do 2º Gr Comb);

(iv) Abílio Soares, 1º cabo at inf (já falecido, vivia em Lisboa) (inicialmente confundido com o Tibério Gomes Rocha, sold cond auto, vivia em Viseu, falecido em 6/12/2007):

e (v) Arlindo Teixeira Roda (fur mil at inf,  3º Gr Comb);

na segunda fila, de pé:

(vi) guarda-redes (elemento não identificado:  seria o 1º cabo quarteleiro, ou de manutenção de material, João Rito Marques, que vive no Sourto, Sabugal?);

(vii) Fernando Andrade de Sousa (1º cabo aux enf, vive na Trofa);

(viii) Arménio Monteiro da Fonseca (sold at inf, vive no Porto);

(ix) Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares (1º cabo escriturário, vivia em Miranda do Douro, faleceu em 29 de agosto de 2015];

(x) Manuel Alberto Faria Branco (1º cabo at inf);

e (xi) um outro  elemento que também não sei identificar. [Vd. composição orgânica da CCAÇ 25690 / CCAÇ 12].



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > c. 1970 > Não, não é uma sessão de cinema, no refeitório das praças (ou sala de convívio das praças, a avaliar pela mesa de pingue-pongue)... É um simples projeção de "slides" ou diapositivos... Tudo servia para ajudar a passar o tempo, embora não fosse habitual esta mistura de "classes" (oficiais, sargentos e praças)... Recorde-se que o nosso exército era "classista" e, em aquartelamentos como o Bambadinca, com razoáveis e desafogadas instalações, a regra era a da estratificação socioespacial, ou seja, nada de misturas... O artista principal, neste caso, é o alf mil at cav José António G. Rodrigues (2), natural de Lisboa, e já falecido, comandante do 4º Gr Comb da CCAÇ 12; à sua direita reconhecemos o cap mil inf Carlos Brito (hoje coronel reformado, vivendo em Braga), cmdt da CCAÇ 12 (1), o alf mil op esp Francisco Moreira (5); à sua esquerda, o alf mil at inf Abel Rodrigues (3) e o 1º cabo escriturário Eduardo Tavares (4).

Fotos : © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. []Edição e legendagem: LG]


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Pessoal da CCAÇ 12 destacada no reordenamento de Nhabijões... Da direita para a esquerda: os furriéis milicianos Sousa, Reis, a dedilhar o kora balanta (?), e  Henriques [, Luís Graça, fundador deste blogue]; no acordeão, o nosso 1º cabo escriturário Tavares, de seu nome completo Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares; em segundo plano, com a viola, outro militar da CCAÇ 12, presumo que um dos nossos soldados condutores auto, podendo até ser o próprio Manuel da Costa Soares, que viria a morrer no dia 13 de Janeiro de 1971.
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todoos direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Mensagem, enviada hoje, às 0h15, pelo nosso querido amigo e camarada José Fernando Gonçalves Almeida [, ex-fur mil trms, da CCAÇ 25690 / CCAÇ 12, técnico reformado da RDP, vive em Óbidos, sendo um dos habituais organizadores dos convívios do pessoal que passou por Bambadinca entre 1968 e 1971, com destaque para a CCS/BCAÇ 2852 e CCAÇ 12];

Boa Noite,  Henriques

O Sousa informou-me que faleceu o Tavares,  escriturário da CCaç 12. Após doença prolongada.
O funeral realiza-se em Oliveira do Douro [, Vila Nova de Gaia], na segunda feira dia 31, pelas 10h20.

Se puderes envia um aviso para a Caserna.


Um abraço
Fernando Almeida

2. Comentário de LG:

Recordo o Tavares como um bom camarada que partiu connosco no Niassa, em 24/5/1969, e regressou no Uíge em 17/3/1971... Eras uns escassos 70, entre quadros e especialistas metropolitanos, os que fomos formar a CCAÇ 12, com praças guineenses... O Tavares tocava acordeão (ou concertina?), e era o braço direito do 2º srgt Piça, na secretaria da CCAÇ 12.

Tenho dele a imagem de um militar aprumado, dedicado, correto, camarada do seu camarada, amigo do seu amigo.

Para a família enlutada, vai o nosso abraço fraterno e solidário na dor. Como diz o Levezinho, é mais um dos nossos que parte. E que deixa saudades.

LG
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Guiné 63/74 - P15056: Agenda cultural (421): Exposição de Fantin Latour e Manuel Botelho - Meeting Point - De 26 de Junho a 26 de Outubro de 2015, no Museu Calouste Gulbenkian - Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015, a propósito da exposição de Fantin-Latour e Manuel Botelho, no Museu Gulbenkian:

Queridos Amigos,
Encontro mais insólito é difícil de prever.
Um categorizado pintor do Segundo Império, Fantin-Latour, é confrontado com os temas da guerra colonial, pelos olhos de Manuel Botelho, o artista que mais se tem dedicado a fotografar, a aguarelar e pintar armas, viaturas despedaçadas, citações de aerogramas, guiões das unidades, fazendo instalações com base em material que adquire na Feira da Ladra, correspondência que o inspira. A Guiné é o seu veio seminal, sem ambiguidades.
Recomendo esta visita ao Museu Gulbenkian, entre a esplendorosa arte oriental e os marfins medievais, duas realidades distintíssimas da natureza-mortas dialogam, e com um êxito assombroso.

Um abraço do
Mário


Desfrute e agonia na provocação de naturezas mortas: 
Fantin-Latour e Manuel Botelho em confronto no Museu Gulbenkian

Beja Santos

Helena de Freitas é uma estudiosa da arte que tem o franco pendor para explorar aproximações e analogias entre épocas, movimentos artísticos e motivações nas diferentes obras que são expostas, gosta de provocar um falso conflito estético e explorar todas as hipóteses de leitura, aposta nos achados curiosos que essas tensões suscitam (ou podem suscitar).

Está patente, de 26 de Junho a 26 de Outubro, no Museu Gulbenkian uma exposição que inclui uma pintura de Fantin-Latour e três fotografias de Manuel Botelho, o artista plástico português que mais intensamente se tem debruçado sobre a guerra colonial que travámos em África. À partida, um zero de semelhanças entre o pintor do Segundo Império, um artista avesso a roturas radicais e que trabalhou para uma clientela de aristocratas e grandes burgueses que apreciavam obras convencionais como esta natureza-morta, como observa a crítica de arte Raquel de Henriques da Silva, salientando o contraste entre o fundo escuro e o branco esquinado e inteiro da toalha, sobre o qual se dispõem, com naturalidade ritualizada, as cores perfumadas das cores e dos frutos. Talvez o único contraste é uma faca que avança para nós, mas é bem possível que ela esteja ali para introduzir uma breve perturbação da ordem que estimula e agrada. Esta harmonia parece chocar com o que há de bélico, manifestamente excessivo nos sinais da agressividade, naqueles despojos arremessados na mesa, a exalar os odores da caserna: dinheiro, sabe-se lá se referentes a quantos e quais jogos da batota, garrafas de vinho, facas e baioneta, beatas de cigarros, moedas, tudo num vendaval de desolação e de fim de festa, a simular um compasso na guerra, onde desconhecemos os protagonistas. Como dialogar a amenidade da pintura de Fantin-Latour com a violenta caserna de Manuel Botelho, ademais aparece exposta uma obra alusiva aos guiões militares portugueses, e um guião é um símbolo da coesão de unidade, à sua sombra partilha-se o heroísmo, a bravura ou os historiais da morte em combate?

A crítica Raquel Henriques da Silva diz que se passa com facilidade de Fantin-Latour para Manuel Botelho e esgrime com a argumentação de Roland Barthes: “A essência da imagem é a de estar toda de fora, sem intimidade, e, contudo, mais inacessível e misteriosa que o pensamento do foro interior. Sem significação, mas apelando para a profundidade de todo o sentido possível; e revelada e, todavia, manifesta, possuindo essa presença-ausência que faz a atração e o fascínio das sereias” (A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70). Não partilho deste ponto de vista quanto à facilidade, o confronto das obras reside principalmente em que o pintor francês é um académico exímio, harmónico, exibe com desenvoltura os dotes que o requisitaram no público endinheirado como um pintor de bom gosto e não conflituoso. Manuel Botelho é um experimentalista, procura de há muito explorar um caleidoscópio de possibilidades: em aerogramas, em simulações de tensão militar extrema, mostrando a frio diferentes espingardas e metralhadoras, numa tal encenação que é praticamente instantâneo o chamamento da destruição. As suas aguarelas com viaturas destruídas são a melhor acusação muda que até hoje vi sobre a guerra colonial. Aqui, as fotografias são apresentadas como ração de combate, pode este título aturdir o visitante menos preparado, mas é mesmo uma ração de combate este somatório de jogos visuais. Mas corroboro que a crítica tem razão que Latour e Botelho se visitam ao espelho da beleza, onde Latour revela mestria na polpa e na textura dos frutos, tudo está ali com ar de consumição, e a iluminação é prodigiosa, em Botelho temos a mesma iluminação prodigiosa e toda a inquietação ausente em Latour, o pintor francês é um mensageiro da boa atmosfera burguesa, Botelho é um denunciador de que houve uma guerra sobre a qual continua a não se ousar explicar a sua génese e as profundas razões do seu desfecho, por vezes tão trágico.

A comissária da exposição venceu um estranho desafio, e é muito possível que quem se depara com estas ostensivas dissemelhanças entre os dois artistas acabe por refletir com mais argumentos sobre a natureza da paz e da guerra – os estados em que assentam as aparentemente contraditórias naturezas mortas da exposição.



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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14941: Agenda cultural (420): Sessão de motim organizado, e com consequências preocupantes, imprevisíveis, em 29 de Julho, pelas 18h30, na FNAC Colombo, a propósito do livro "De Freguês a Consumidor - 70 anos de Sociedade de Consumo, História da Defesa do Consumidor em Portugal" (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15055: Libertando-me (Tony Borié) (32): O Sonho Americano (2)

Trigésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 24 de Agosto de 2015.




“American Dream”

Capítulo II

Estamos a falar do Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, que nós agora chamamos “Capitão Gancho”, a tal personagem que comandou a primeira frota de três navios vinda da Europa, financiada em parte pelos despojos do navio português “Madre de Deus”, capturado ao largo dos Açores, que foi considerado na altura a maior pilhagem do século, e que foi o fundador da colónia de Jamestown, no agora estado de Virginia e que, talvez sem saber, iniciou o tal “Sonho Americano”, pois foi ele que liderou a frota de colonos que estabeleceu o primeiro assentamento permanente de pessoas vindas da Europa, principalmente ingleses, no Novo Mundo.

Foi ele quem escolheu o local de Jamestown, levou a exploração inicial da pequena área, a que chamava “King James”, que foi negociada pacificamente com os índios, mas como havia poucos recursos, ele ia tirando a fome aos colonos com quatro viagens de reabastecimento, numa delas, durante um furacão, naufragou nas ilhas de Bermuda, o Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, a quem chamavam o “Capitão Gancho”, como homem audaz, com mais 150 colonos, conseguem construir duas novas embarcações, mais pequenas que o normal navio usado na época, mas mais rápidas, (que mais tarde seria o tipo de embarcação que dava apoio aos seus saques e abalromentos a outros barcos, principalmente Portugueses e Espanhóis), libertando-se das ilhas, regressando de novo à colónia de Jamestown, no continente americano.

Era um navegador excelente, severo mas compreensivo, era um capitão de mar, um corsário, lendário líder de homens, que em quase 40 anos de viagens de mar fez algumas longas, comerciais para o Extremo Oriente, para a Companhia das Índias Orientais, levando os primeiros embaixadores ingleses para a Pérsia e Índia, lançando assim as bases para a evolução do Império Britânico, travando lutas ferozes, abalroando e saqueando alguns navios Portugueses e Espanhóis, onde também fugiu a muitas lutas, principalmente contra as “Carracas Portuguesas”, de que falaremos adiante, mas como corsário que era, a palavra sobrevivência era muito importante, apesar de usar meios de luta um pouco avançados para a época, mantendo sempre um ou dois segundos navios ao largo, um pouco mais pequenos, mas mais velozes, tipo plano “B”, sem participarem na luta. Vendo que não podia vencer, fugia, mas sobrevivia, desempenhando um papel importante, ajudando na evolução da Inglaterra a partir de uma ilha isolada da sociedade, para uma grande potência marítima com a expansão de colónias ultramarinas, que em última análise se tornou o Império Britânico, que durante muitos anos tomaram conta do mar do Caribe. Ele, juntamente com outros corsários ingleses, vulgo “piratas”, foram saqueando os barcos Portugueses e Espanhóis que tentavam regressar à Europa, carregados com verdadeiras fortunas, foram enriquecendo a monarquia Inglesa, fornecendo assim apoio financeiro para a futura colonização Inglesa da América do Norte.


Mas voltando à colónia de Jamestown, cumprindo ou não ordens do reino e dos comerciantes de Londres que o financiavam, ajudou sempre os colonos da colónia de Jamestown, pois pelo menos durante os primeiros cinco anos, que foram muito difíceis, ele manteve a colónia, lutando sempre pelo reabastecimento dos colonos, trazendo mesmo novos colonos para Jamestown, alguns, talvez prisioneiros dos barcos Portugueses e Espanhóis, supervisionou a construção da solução inicial de paliçada, armazém, igreja ou a doca. Com a sua capacidade de liderança, conhecimentos de navegação, marinharia, experiência e habilidade para negociar com os índios, ele, por muitas vezes, resgatou a colónia de Jamestown da extinção.

As suas viagens posteriores para as Índias Orientais, além das suas lutas, onde atacava quase todos os navios estranhos, em particular os Portugueses, confirmou a viabilidade da negociação por mar, com o Leste e os grandes lucros comerciais que a Inglaterra poderia esperar destas expedições. Nas suas viagens para a Índia, lançou as bases para o risco do mar, com a conclusão com êxito das viagens em alguns navios menores, os tais mais pequenos e velozes, que nas suas lutas de abalroamentos, saques e pilhagens, faziam parte do tal plano “B”, construídos a partir das ilhas de Bermuda, com madeira de cedro, e que levou diretamente à fundação da colónia de Bermuda, que continua a ser um protectorado britânico até hoje e um dos os últimos do Império Britânico.

Uma característica marcante da carreira de sucesso do “Capitão Gancho”, é que ele era um plebeu, com pouca educação formal. Muitos dos primeiros líderes de viagens inglesas de exploração e colonização eram filhos de famílias inglesas ricas, muitas vezes donos de grandes propriedades, vários destes líderes tiveram educações avançadas, alguns na Universidade de Cambridge, mas o Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, a quem também chamavam “Capitão Gancho”, tinha alguma educação pois uma carta que escreveu ao conde de Salisbury, secretário da Companhia Virgínia de Londres, indica que ele escrevia bem, usando ornamentos e fases estilistas da época.

Temos que realçar o facto de que o “Capitão Gancho” foi escolhido para liderar uma grande expedição Inglesa, apesar de sua falta de educação formal ou vantagens de nascimento, é uma prova de sua capacidade de liderança e, ao alto nível de respeito que ele ganhou de todos os empresários de Londres, que desenvolveram a Companhia da Virgínia.

Além disso, a sua escolha para liderar as viagens para Virgínia, onde estava localizada a tal colónia de Jamestown, com base em sua experiência e capacidade, em vez do seu estado social, exemplificou a erosão gradual da estrutura social medieval e a evolução dos valores da Renascença na Inglaterra. Os homens eram cada vez mais escolhidos para posições de liderança com base nos seus atributos e experiências individuais, em vez de “canudos” e títulos, como acontecia na época, principalmente nos países do sul da Europa, em que o senhor duque, conde ou visconde, que pertencia à família real, podia ser uma pessoa com poucos recursos, tanto físicos como mentais, mas era o senhor que mandava, sacrificando, colocando numa frente de batalha um povo, onde havia pessoas com dotes de força, inteligência e audácia muito superiores à pessoa que era o seu comandante.

(continua)

Tony Borie, Agosto de 2015
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Nota do editor

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