Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Ponte de Sôr > 5 de novembro de 2016 > Convívio anual da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Foto de grupo: à esquerda, o José Colaço, a seguir a sua esposa, em terceiro o Francisco dos Santos e a sua Emília. O Francisco é também nosso grã-tabanqueiro. Foi 1º cabo radiotelegrafista, E é inspiradíssimo pota popular.
Foto à direita: José [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008: tem 70 referência no nosso blogue.
Luís, para arquivo ou publicação...
Esta é uma das companhias que, por ser das primeiras a ir para a guerra, também está condenada a ser das primeiras a extinguir-se, isto tendo em conta as ausências que se notam nestes últimos convívios, uns por doença, outros com as dificuldades do peso dos anos... para não falar já daqueles que de ano para ano tomam a barca do barqueiro de Caronte.
Este ano só picaram o ponto vinte ex-combatentes. O que nos dá ânimo é que o comandante ainda está activo e marca presença embora apresente as suas queixinhas, os tais lapsos de memória mas ainda dá o seu pezinho de dança. O único ex-alferes que sempre tem marcado presença, este ano já apareceu com o auxílio de umas canadianas.
Segue em anexo um poema que todos os anos faz honra em escrever o nosso poeta, dedicado ao convívio, e uma foto em que estou à esquerda, a seguir a minha mulher, em terceiro o nosso poeta popular Francisco dos Santos e a sua Emília.
1. Em mensagem do dia 24 de Novembro de 2016, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) enviou-nos este artigo sobre o valor atingido por um sonô, ceptro real, da Guiné-Bissau.
O mais valioso tesouro artístico da Guiné-Bissau
Beja Santos
Em 1969, estava eu no Cuor e Avelino Teixeira da Mota em Bissau (era Chefe do Estado-Maior do Comando da Defesa Marítima da Guiné, recebi deste um aerograma em que a dada altura me perguntava se conhecia a existência de algum sonô na região, visto que os Mandingas do Cuor eram Beafadas mandinguizados. E explicava-me que eram os cetros reais Beafadas de que havia notícia desde o século XVII. E adiantava alguns elementos, curiosamente coincidentes com a apresentação que sobre os mesmos fez num colóquio internacional de antropologia, documento que me ofereceu mais tarde. Todas as diligências junto do régulo foram infrutíferas, mesmo em Bambadinca e Bafatá. Um velho, em Bambadinca adiantou que há muitos anos um comerciante alemão que circulava no Xime e no Xitole também procurava semelhantes objetos.
Imprevistamente, ao folhear um catálogo da conceituada leiloeira Christie’s, de um leilão de arte africana e da Oceânia que se realizou em Paris em Dezembro de 2015, deparou-se-me um sonô cuja base de licitação oscilava entre os 10 e 15 mil euros. Não resisto a mostra-vos esta jóia disputada pelos colecionadores mais exigentes de arte africana, são peças que constam dos mais importantes museus do mundo, como o Moma. Dá vontade de rir quando se diz que a Guiné-Bissau está fora do mapa da melhor arte africana.
Deram-me
a honra de um convite para intervir, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM
(Federação Nacional dos Médicos), num debate sobre o Serviço Médico à
Periferia, cabendo-me falar sobre o exercício da medicina antes do 25 de
Abril.
Alguém sugeriu que era útil e interessante fazer um texto com o
essencial da minha intervenção. Ele aí está, todavia liberto de todos os
aspectos técnicos que só serviriam para entorpecer a leitura de quem
não é médico
Pelo texto que se segue, todos ficarão com uma ideia de como era, com algumas variantes, a prática da medicina rural e de todo o interior do país antes do 25 de Abril e, portanto, antes da criação do SNS, por volta de 1989, o qual, em três décadas, como sabemos, se haveria de tornar num dos melhores e mais respeitados do mundo.
Hoje, infelizmente, encontra-se no meio do mais ignóbil processo de destruição, urdido pelo capital privado e pelas forças mais retrógradas que procuram miná-lo por todas as formas e feitio, de modo a poderem dizer que não funciona. Gente que se encontra nos antípodas dos homens progressistas que o criaram e ajudaram a desenvolver, homens de mente sã e avançada, como Miller Guerra, Albino Aroso, António Galhordas, Gonçalves Ferreira, Pereira de Moura, António Arnaut e outros.
11.º Congresso da FNAM
(Federação Nacional dos Médicos), Porto, Hotel Ipanema, 12 e 13 de novembro de 2016
Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista Vídeo com a intervenção do dr, Adão Cruz, (27 m) que nos foi foi facultado pelo próprio
A medicina antes do 25 de Abril
Quando saí da Faculdade tive duas opções de vida: Fazer clínica na minha terra, como “João Semana”, ou aceitar o convite de um colega mais velho do que eu cerca de onze anos, amigo e conterrâneo que residia nos EU, médico hospitalar de medicina interna, para ir para a América. Tinha de escolher uma destas duas opções extremas. Optei pela primeira por duas razões principais: por um lado, tinha a guerra colonial à minha frente e dificilmente poderia sair do país, por outro lado, precisava de ganhar algum dinheiro. Os meus pais fizeram muitos sacrifícios para formarem dois filhos e eu não estava disposto a sacrificá-los mais tempo.
Estávamos no ano de 1964. E assim comecei a minha actividade clínica, em Vale de Cambra, sem estágio nem tese, três anos antes da ida para a guerra colonial da Guiné. Encostei-me a um velho clínico que era um monumento de sabedoria prática e experiência. Foram esses três anos os piores e mais difíceis. Vale de Cambra, um pequeno concelho com uma área de 147 Km2, tinha talvez menos de 15.000 habitantes. Dispersava-se por nove freguesias, algumas delas abrangendo os mais remotos e inóspitos lugares da Serra da Gralheira, com pequenos povoados e populações encravadas em locais quase inacessíveis, com muitas pessoas vivendo na maior ignorância e na mais extrema miséria.
Continuei durante outros três anos, após o meu regresso da Guiné, estes já melhores, pois iniciei na altura o Internato Geral no Hospital de Santo António, para onde me deslocava todos os dias. Este facto, a experiência da guerra e alguma presença em reuniões científicas, permitiram-me uma maior competência, bem como relações pessoais e com o hospital, que me facilitaram muito a minha prestação de cuidados médicos. Não tive, propriamente, contacto com o Serviço Médico à periferia, criado em 1975. Nessa altura já eu tinha obtido a especialidade e fazia parte do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santo António.
Pediram-me para falar da medicina em Portugal antes do 25 de Abril, ou seja, antes da criação do Serviço Médico à periferia em 1975, o primeiro passo, por assim dizer, para o nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e também uma experiência valiosa e ímpar. As duas realidades, o antes e o depois do 25 de Abril, não podem comparar-se. Claro que eu não posso falar do que se passava em Portugal. Posso falar, sim, do que se passava numa parte de Portugal, que, muito provavelmente, com algumas diferenças, era o que se passava em todo o interior do país. E digo interior, porque havia uma significativa diferença com o litoral, onde existiam os poucos recursos técnicos da época. Com efeito, não havia qualquer rede hospitalar digna desse nome, e os únicos hospitais situavam-se em Lisboa, Porto e Coimbra, havendo um ou outro pequeno hospital, aqui e ali, de muito pouca eficácia, quase sempre ligado às misericórdias. De qualquer forma, os cuidados primários de saúde eram um conceito quase desconhecido, sendo notória uma profunda degradação dos poucos serviços de saúde existentes e uma enorme incapacidade de resposta às necessidades mais elementares.
Antes do 25 de Abril a assistência médica não estava assegurada, sobretudo antes do fim da década de sessenta. Competia às famílias, às instituições privadas e à caridadezinha, que a despeito de aviltar a dignidade humana, lá ia remendando as coisas aqui e ali, bem como aos débeis serviços médico-sociais da Previdência fazerem alguma coisa. Mas era sobretudo ao “João Semana”, pilar fundamental da saúde nesses tempos, que tudo se exigia. As áreas rurais dessa época tinham características comuns, o serem pouco populosas, muito isoladas, com uma população envelhecida, profundamente carenciada, com problemas de acessibilidade aos grandes centros que ficavam muito longe e com vias de comunicação péssimas, vivendo de uma agricultura de subsistência, e, portanto, profundamente vulneráveis. A saúde, ou o pouco que se poderia fazer na promoção da saúde era dependente da capacidade económica de cada cidadão, o que levava ao pagamento integral dos cuidados médicos, nomeadamente dos cuidados hospitalares, mesmo públicos. Só tinham direito a cuidados gratuitos, e obviamente de pior qualidade, aqueles que conseguissem apresentar um atestado de pobreza ou indigência passado pela junta de freguesia.
E foi nestas condições de 1964 que eu comecei a viver, de dia e de noite, 24 horas por dia, ao sol e à chuva, todas as peripécias clínicas que levaram um dia minha mãe a dizer-me: rapaz, muda de vida senão morres. Mas foram essas tremendas dificuldades e essas precaríssimas condições, que constituíram para mim uma segunda faculdade. Dizia o meu velho amigo Dr. Teixeira da Silva: você aqui vai ver tudo, desde a queda do cabelo à unha encravada. Com efeito, numa altura em que a esperança de vida era de quase menos 15 anos do que hoje, éramos senhores de todas as especialidades, desde a pediatria à ginecologia e obstetrícia, passando pela dermatologia, oftalmologia, psiquiatria etc. Em termos de material, eu tinha quase tudo o que era possível ter na altura, e muita coisa oferecida por um grupo de amigos: marquesa, mesa ginecológica, espéculos, estetoscópio, aparelho de tensões, otoscópio, oftalmoscópio, sondas e algálias, todo o material necessário a pequena cirurgia. Era frequente a incisão e drenagem de abcessos, a exérese de lipomas e quistos, extracção de unhas encravadas, circuncisões etc. Tinha ligaduras, pensos e desinfectantes variados, material para injectáveis, mala de urgência apetrechada com tudo o que era viável, e ainda fórceps e ventosa que o Dr. Teixeira da Silva me emprestava. Ele tinha também uma velha radioscopia cuja radiação nos deixava, ao fim de 5 minutos, como se tivéssemos apanhado uma descarga eléctrica. Para fazer uma radiografia, um electrocardiograma, qualquer exame mais avançado ou uma cirurgia, só no Porto, o que ficava muito caro. Fora do Porto nada havia, apenas um ou dois pequenos laboratórios de análises em concelhos limítrofes.
As pessoas viviam atormentadas com o medo da doença e viam-se obrigadas a algumas poupanças durante a vida não só para guardarem “um terço para a tarde”, como se dizia, mas também para ocorrerem ao inesperado, ou então tinham de vender terras e gados para pagar uma qualquer cirurgia ou outros cuidados de saúde mais dispendiosos. De uma maneira geral, só chamavam o médico quando viam que a coisa tinha atingido um tal estado que já não era resolúvel por si própria e pelas mezinhas caseiras. Claro que o nosso objectivo era muito mais o do alívio sintomático e a melhor resolução possível da situação, não havendo, por falta de meios de toda a espécie, nomeadamente meios auxiliares de diagnóstico, grandes preocupações de investigação e de diagnósticos precisos e etiológicos.
Uma das actividades para que mais vezes éramos solicitados era a assistência aos partos. Mas só quando a parteira habilidosa lá do lugar via o caso mal parado. Partos no hospital ou na maternidade eram uma raridade. A taxa de mortalidade neonatal andava pelos 25 por mil, a taxa de mortalidade perinatal pelos 40 por mil, a taxa de mortalidade infantil rondava os 60 por mil e a taxa de mortalidade materna atingia os 70 por 100.000. Fiz muitos partos, alguns à luz da candeia e do petróleo, em locais onde nunca passou Cristo, em que a camita de ferro da parturiente era por cima do curral da vaca. Quase todos os partos que fiz, por incrível que pareça, foram partos naturais, embora com auxílio de episiotomias, do fórceps e sobretudo da ventosa, o que a meu ver, pode pôr em causa a actual necessidade de muitas cesarianas.
As gastroenterites, sobretudo em bebés e crianças eram frequentes, e só nos chegavam às mãos em adiantado estado de desidratação que nós tentávamos resolver com a ministração subcutânea de soro, dos dois lados da barriguita, deixando a criança com dois ventres, como um sapinho. Era praticamente impossível canalizar e manter uma veia numa criança daquelas. Em adultos, lá conseguíamos fazer umas infusões com as poucas soluções parentéricas de que na altura dispúnhamos.
Caía-nos em cima tudo o que fosse infecções e todas as doenças infecto-contagiosas possíveis e imaginárias, incluindo tuberculose, febre tifóide, mononucleose, tétanos, muitos casos de sarampo, cuja vacina fora descoberta apenas um ano antes, escarlatina, varicela, coqueluche, reumatismo articular agudo e subsequentes doenças valvulares, meningites e a difteria ou garrotilho que produzia a terrível toxina diftérica. Na difteria, o que mais nos atemorizava eram as situações de obstrução respiratória, produzidas pelas placas brancas da orofaringe. Uma vez estive com o bisturi na mão, decidido a fazer uma traqueostomia (abertura na traqueia) num catraio de cinco ou seis anos, mas optei por fazer outra coisa que não era aconselhável, pois poderia disseminar a toxina, isto é, arrancar as placas da orofaringe. Felizmente correu bem, e a criança é hoje um saudável adulto emigrante na Alemanha. Infecções pulmonares, pneumonias graves, apendicites que nos chegavam algumas vezes com peritonite e que encaminhávamos para um pequeno hospital de que nos valíamos, o Hospital Conde de Sucena, em Águeda. Todavia, falar em ir para o hospital era sempre um problema e uma solução muitas vezes não aceite pelos familiares, não só porque constituía uma espécie de sentença de morte, mas também porque se temia a conta que daí adviria. Então para o Santo António nem pensar, não sei se por ser mais longe, se pela sua envergadura.
Acidentes de trabalho, por vezes com graves feridas e traumatismos, fracturas e queimaduras extensas, tudo situações que nos exigiam grande responsabilidade, muito tempo de tratamento e a aplicação rigorosa de todos os conhecimentos aprendidos na faculdade, que não eram poucos nem frágeis, pois a nossa formação, na altura, foi muito boa. A medicina no trabalho não existia, embora começasse a nascer em conceito. Havia algumas pequenas empresas, sobretudo na área das madeiras, dos lacticínios e da metalo-mecânica, mas o trabalhador era uma máquina como qualquer outra, tendo de ser reparada quando avariava. O trabalhador não tinha quaisquer direitos laborais e era-lhe negada a possibilidade de ser um sujeito activo na construção da sua própria saúde, incluindo o controle de factores que a determinavam positivamente, factores protectores, ou que a punham em risco, factores de risco, quer dentro quer fora do local de trabalho.
Frequentes situações de insuficiência respiratória e graves crises de asma, silicoses, insuficiência cardíaca grave, com edema agudo do pulmão. Ainda nos valíamos dos garrotes e da sangria. Arritmias cardíacas que classificávamos conforme podíamos, sem qualquer registo electrocardiográfico, e que tentávamos reverter quando havia repercussão clínica. Cardiopatias congénitas e outras malformações, sobretudo aquelas que eram mais susceptíveis de diagnóstico clínico. O primeiro diagnóstico que fiz, a “solo”, de uma dessas graves malformações chamada coartação da aorta, foi num rapaz de vinte anos, pouco mais novo do que eu. Foi operado em Lisboa pelo Professor Celestino da Costa, e hoje, ao fim de mais de meio século ainda é vivo e ainda vem à minha consulta. Havia AVCs e enfartes do miocárdio, com diagnóstico apenas clínico, que encaminhávamos para o hospital de Águeda ou Santo António. Ao compararmos o que se fazia na altura perante um enfarte do miocárdio, por exemplo, e o que se faz hoje em termos de cardiologia de intervenção, damos com um abismo apenas preenchido por uma monumental ignorância. No fim de contas, o resultado era o doente morrer ou ficar com o coração gravemente mutilado.
Havia amigdalites muito frequentes e repetitivas, e como na altura havia grande medo do reumatismo articular agudo (RAA), quanto mais cedo extirpássemos as amígdalas melhor. Juntávamos três ou quatro pacientes, e uma vez ou outra vinha um otorrino de Lisboa a Oliveira de Azeméis de onde era natural, e passava pelo consultório, operando-os de empreitada.
Eram frequentes as cólicas renais e biliares, bem como doenças oncológicas terminais, cancros do estômago, cancros pulmonares avançados, com punções pleurais por vezes repetidas, nos confins da serra, para esvaziar o líquido pleural e aliviar a asfixia do doente. Gangrenas, cirroses e drenagens de ascites monstruosas, limpeza e tratamento, às vezes durante meses, de feridas de toda a ordem, nomeadamente feridas cancerosas da pele onde cabia um punho, cancros da boca, do pénis e do ânus.
Para terminar, gostaria de dizer que muita coisa que hoje é quase banal no nosso país, não existia na altura. Fui algumas vezes a Madrid com dois tipos de doentes: asmáticos e doentes com patologias cardíacas valvulares. Tratava-se, obviamente, de pessoas com dinheiro, ou, pelo menos, com posses suficientes para as despesas que não eram pequenas. Quanto aos primeiros, não havia ainda em Portugal a especialidade de alergologia nem a existência de vacinas, pelo que recorríamos ao Instituto La Paz, onde trabalhava um grande alergologista, o Dr. Ojeda Casas, e de lá trazíamos as vacinas. No que respeita aos doentes com indicação de cirurgia cardíaca, que não existia em Portugal, essencialmente implantação de próteses valvulares mecânicas, valíamo-nos do Hospital de Nuestra Senhora de La Concepcion, onde trabalhava um dos mais conhecidos cirurgiões cardíacos da época, o Dr. Gregório de Rábago, o qual operou o meu amigo e colega de consultório, estomatologista, filho do Dr. Teixeira da Silva.
Adão Pinho da
Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68
Cartaz > Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista
____________
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 (1969/74) > Pós 25 de abril de 1974 > Os primeiros (re)encontros, pacíficos, entre as NT e os guerrilheiros do PAIGC (fotos nºs, 1 e 2). Na foto nº 3, vê-se em primeiro plano o Henrique Cerqueiro, saindo em patrulhamento ofensivo com um Gr Comb da CCAÇ 13.
Recorde-se que o Cerqueira esteve, como fur mil, no TO da Guiné, desde finais de novembro de1972 até inícios de julho de 1974, primeiro na 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72 e depois na CCAÇ 13.
Em determinada altura , ou seja, já em data posterior a Abril de 74 e já depois de haver encontros com os combatentes do PAIGC, encontros amigáveis, o nosso comando continuava a enviar grupos de combate em missões de patrulhamento ofensivo, ao interior do mato, tal como no tempo em que a guerrilha estava activa.
A malta, para além de estar no fim da comissão, achava ridículo esses patrulhamentos, pois que começou a ser comum encontramos, várias vezes, a meio do caminho, pequenos grupos de combatentes do "IN" que vinham visitar familiares a Bissorã. (**)
E até tinha alguma graça porque quando nos encontravamos e, após os cumprimentos de cortesia entre os dois "inimigos", era costume nós perguntarmos onde é que eles iam. E eles respondiam que iam "visitar família no Bissorã". Então eles nos perguntavam o que fazíamos nós por ali, em pleno mato e longe do aquartelamento. Nós, em jeito de "gozo", respondíamos que andávamos em busca de "turra". E lá partíamos para lados opostos, cansados e com a sensação de estarmos a ser ridicularizados.
Vai daí, e até ser verificado pelas nossas altas patentes que naquela altura seriamos mais úteis na zona de aquartelamento, a malta de quando em vez lá acampava nas proximidades sem dar muita bronca e assim evitar algum cansaço e quem sabe alguma mina esquecida nos trilhos.
Mais tarde, e devido a alguma "rebaldaria" da época revolucionária que se estava a instalar na população civil, veio a ser muito útil acabar com os patrulhamentos na mata, passando antes a ser feitos dentro da localidade.
Outra das medidas ridículas era, na época de guerra e de quando em vez, o comandante de Batalhão em determinadas operações enfiar-se numa DO-27 [, o famoso PCV, posto de comando volante]... Ía a determinado ponto do local da operação e mandava via rádio a malta se pôr na vertical. Isto e só porque o Comandante não tinha mesmo a noção do risco em que punha a malta ao obedecer a tão ridícula ordem.
Após o aparecimento dos mísseis [Strela] deixaram por completo de fazer esses "voos turísticos" no teatro de guerra. Era por isso que havia alturas em que a malta cá em baixo tinha mesmo que improvisar alguns malabarismos e enganar (?) os senhores estrategas.
Colecção: História Séc. XX
Nr de páginas: 272
PVP /c Iva: 17,90 €
ISBN: 978-989-626-792-6
Formato: 16 X 23,5 X 1,35
Encadernação: Brochada
Editora: A Esfera dos Livros
Autores: Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus
Data: 11 de novembro de 2016
1. Mensagem de Cláudia Silveira, da editora A Esfera dos Livros
Data: 15 de novembro de 2016 às 16:18
Assunto: História Coloniais, de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus
Boa tarde,
Neste seu livro póstumo, os investigadores Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus fazem-nos recuar a épocas de vincada opressão colonial em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé, Goa, Macau e Timor-Leste, numa viagem ao passado que começou no final da década de 1920 e termina em meados dos anos 60.
Ao longo de oito episódios, um por cada antiga colónia portuguesa, os autores descrevem acontecimentos que retratam a violência e a brutalidade de uma dominação colonial insensível aos problemas das populações e mostram ainda de que forma esta postura contribuiu para a formação de uma consciência nacionalista e como acelerou o caminho para a independência dos territórios - ou para a sua integração nos países a que pertenciam.
Algumas histórias são praticamente desconhecidas enquanto outras, graças a novas fontes encontradas pelos autores, têm aqui versões mais completas do que as que eram até agora do conhecimento público. É o caso de um dos acontecimentos mais sangrentos e simultaneamente obscuros da presença portuguesa em África: o massacre nos campos de algodão da Baixa do Cassanje, em Angola.
Cláudia Silveira | Comunicação | A Esfera dos Livros
(i) nascida em Viana do Castelo; (ii) licenciada em História, diplomada em Estudos Superiores Especializados em Administração Escolar, mestra em História Social Contemporânea e doutora em História Moderna e Contemporânea; (iii) investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea (da FCSH da Universidade NOVA de Lisboa);
(iv) consultora do projeto norte-americano ALUKA para a escolha de material dos arquivos portugueses com vista à formação de uma biblioteca digital sobre a luta de libertação nacional em Moçambique;
(v) participante em congressos e conferências, nacionais e internacionais, sobre a problemática das lutas de libertação nacional;
(vi) autora ou coautora de artigos e livros, entre os quais se destacam: A Luta pela Independência (Inquérito, 2ª edição, 1999); A PIDE-DGS na Guerra Colonial (Terramar, 2ª edição, 2011); Memórias do Colonialismo e da Guerra (ASA, 2008); Nacionalistas de Moçambique (Texto, 2010); Angola 61: Guerra Colonial, Causas e Consequência (Texto, 3ª edição, 2011); Purga em Angola (Texto, 8ª edição, 2013); (vii) era casada com Álvaro Mateus.
Álvaro Mateus(1940-2013).
(i) nascido em Moçambique;
(ii) estudante universitário em Lisboa, foi dirigente da Casa dos Estudantes do Império (CEI);
(iii) nos primeiros anos da guerra colonial, promoveu e coordenou um jornal clandestino contra a guerra:
(iv) no início dos anos 70, fez uma reportagem nas regiões controladas pelo PAIGC, na Guiné-Bissau (, na qualidade de locutor e repórter da Rádio Portugal Livre, localizada na Roménia);
(v) regressado do exílio, foi membro, em 1975, da Comissão Instaladora da Assembleia Constituinte e da Comissão Nacional de Eleições; (vi) no princípio da década de 80, participou na formação de professores na Escola Central da FRELIMO e na formação de quadros na Faculdade de Antigos Combatentes e Trabalhadores de Vanguarda da Universidade Eduardo Mondlane;
(vii) ao longo da vida foi quadro político (e militante do PCP até 1987), jornalista e locutor, publicista e tradutor, advogado e professor.
1. Mensagem do nosso
camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART
3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 20 de Novembro de 2016:
Amigo Carlos
Antes de mais faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Acabo de publicar este texto no meu blogue onde há muito não publicava nada, se entenderes que tem algum interesse pública…
Recebe um abraço
António Ferreira
PEDAÇOS DE UM TEMPO
12 - MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM
Quando cheguei à então província Portuguesa da Guiné, a primeira vez que fui comer ao refeitório nos Adidos em Bissau, fui confrontado com algo estranho que eu não imaginava que por lá acontecesse, vários jovens africanos não sei se tropa ou milícia, talvez à espera de transporte para o interior, estavam fora do edifício junto às paredes com latas que tinham sido de coca-cola, leite, fruta ou outras, sem tampa de um dos lados, que era tirada roçando num local rijo para que a parte perfurada caísse, que colocavam nas aberturas que existiam nos blocos de cimento com que eram construídas as paredes dos pavilhões, para que lá de dentro alguém lhe colocassem restos de comida, se algumas vezes era comida normal… outras levava à mistura espinhas e ossos mas que eles não rejeitavam.
Passado um mês de estar em Bissau, fiz a viagem num Dacota até Bafatá e depois em coluna até Bambadinca, onde estive algumas horas à espera de transporte para Mansambo, durante o tempo que lá estive tudo aquilo era para mim um mundo novo, tudo diferente, desconhecido e tão estranho que certamente passei o tempo a olhar em todas as direções. Recordo-me de estar sentado naquele espaço que circundava os pavilhões, onde estavam também algumas mulheres da população, não sei porque estavam ali, talvez à espera de transporte para outra tabanca estavam quase todas com crianças às costas, uma estava a comer uma oleaginosa, coisa que eu desconhecia, olhou para mim já só tinha uma, partiu-a em duas com os dentes, depois disse-me qualquer coisa que eu não entendi, e deu-me metade que mesmo sem saber o que era aceitei e comi.
Certo dia fomos fazer segurança, não sei a quem, ainda éramos periquitos, algures entre Bafatá e Nova Lamego, quando chegamos à tabanca onde fomos “dormir” era já noite e ninguém tinha água, alguém da população trouxe um alguidar grande cheio, a sede era tanta em que bebemos diretamente no alguidar como se fossemos uma manada de animais…
Em Mansambo prometi ao Serifo, o faxina dos condutores, de que eu fazia parte, quando vim de férias à metrópole que lhe levava uns sapatos novos, quando regressei o Serifo já não era o nosso faxina, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos, no dia seguinte apareceu lá no nosso abrigo na companhia de vários meninos com os sapatos calçados todos eles exteriorizando uma alegria contagiante, levava uma galinha que me ofereceu.
Muitos anos já passaram mas jamais esqueci o gesto de solidariedade da senhora que me ofereceu metade da oleaginosa, talvez apercebendo-se de que eu estava completamente perdido… tentando amenizar aquele sofrimento que seria por demais evidente, para quem tinha deixado no hospital a esposa e o filho com poucas horas de nascido e tinha partido para a guerra. A galinha do Serifo e alegria daqueles meninos, ou aquela gente para quem o resto de comida era importante. Nos momentos difíceis com que tenho sido confrontado ao longo da vida, que não têm sido poucos, por estranho que possa parecer, não raramente são estas e outras memórias de situações que lá vivi onde vou buscar muita da força necessária para os enfrentar.
Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 > Da esquerda para a direita, o António José Pereira da Costa, o António Vaz, o Acácio Correia e o Jorge Araújo (ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74). Entre o António Vaz (ex-cap mil art, cmdt CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) e os restantes, graduados da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74), há duas outras subunidades pelo meio, a CART 2520 e a CART 2715...
Como antes da CART 1746, tinha havido a CCAÇ 1550, e como depois veio a CCAÇ 12 render a CART 3494...
Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 > O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné, retirado pelas NT em outubro de 1968...
Conheci ambos, tal como ao Manuel Moreira, no nosso VII Encontro Nacional, em 2012. E a propósito, lembro-me da história que o António Vaz contava do João Guerra da Mata, no dia em que o Spínola, ainda periquito, "aterrou" na Ponta do Inglês:
– Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… – disse, ao aterrar, o brigadeiro Spínola. – Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês – respondeu o alf mil João Mata que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.
1. OAntónio Vaz (19936-2015) já não está entre nós. Morreu vai fazer um ano, na véspera de Natal. (*)
Deixou-nos muitas saudades. Tinha uma grande vontade de viver, e era um belíssimo contador de histórias. Algumas estão connosco no nosso blogue,, infelizmente não tantas quantas ele gostaria ter podido contar.
Penso que a última vez que o vi, fora numa manife, no Terreiro do Paço, contra a troika e a política de austeridade, em data que já não posso precisar, talvez em finais de 2013/princípios de 2014.
Tinha superado um ACV, achei-o combativo e otimista. "Agora vou a todas"!, garantia-me ele, referindo.se às manifes. De vez em quando telefonava-lhe, umas vezes respondia-me, outras não... . Na véspera do Natal de 2015, talvez até no próprio dia em que morreu, tive o pressentimento de o seu telemóvel calara-se de vez... Foi uma estranha premonição. Sabia que ele estava de novo doente, com uma neoplasia,,,
O António Vaz entrara para a Tabanca Grande em 31/3/2012, e timha cerca de 25 referências no nosso blogue. Era lisboeta e, se não erro, trabalhara na antiga Direção Geral das Alfândegas. Casado, tinha pelo menos uma filha e netos, de quem não temos, infelizmente, nenhum contacto.
Quase um ano depois, apetece-me convocá-lo para as nossas fileiras e para as nossas conversas intermináveis, sob o poilão da Tabanca Garnde, versando a Guiné, o Xime, a guerra, o blogue... Fui repescar um poste antigo em que ele evoca a figura do pequeno Seco Camará, ostracizado pela elite mandinga do Xime, e contrapondo-a à figura, mais ambígua e distante, do Mancaman Biai, filho do chefe da tabanaca. Um e outro disputavam a liderança da equipa de guias e picadores do Xime. É interessante seguir o raciocínio do António Vaz e ver como ele toma partido por um deles,
Nunca soube ao certo a etnia do Seco Camará... Sempre o considerei mandinga, mas não tenho a certeza, dada a rivalidade com o clã Mancaman Biai. Ele morreu em 26/11/1970 e está sepultado em Nova Lamego. Os mandingas, no início de 1970, estavam longe de ser a maioria da população do regulado do Xime, sob nosso controlo: no que restava daquele martirizado regulado, estavam recenseados 872 habitantes (745 fulas e 127 mandingas), distribuídos por 4 tabancas: Xime: 250; Amedalai: 160; Taibatá, sede de Regulado do Xime: 228; Demba Tacó: 234. Julgo que os mandingas viviam todos os no Xime. (Fonte: História da Unidade - Bart 2917, BambadincA, 1970/72).
Do nosso blogue o António Vaz disse palavras que nos enchem de orgulho e reforçam a nossa motivação para continuar a trilhar a difícil picada que é este projeto de partilha de memórias (e de afectos):
Seco Cmará em Mansambo (c. 1969).
Foto de Torcato Mendonça (2007)
"A Tabanca Grande é um fenómeno que eu, que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque, que eu saiba, não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blogue presto aqui as minhas merecidas homenagens. (...)
2. Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai (**)
Quando cheguei ao Xime, em janeiro de 1968, na "passagem do testemunho" que a CCAÇ 1550 [1966/67] fez da situação material e do pessoal adstrito (Pel Caç Nat, milícia e picadores), foi-me dito que o picador Seco Camará era o melhor da zona e que, nessa época, já levava 56 minas detectadas, o que para mim, nessa altura, era um número respeitável pois até à data, vindo de Bissorã, não tinha tido contacto frequente com tais engenhos.
Fiquei sabedor e considerei que a chefia do grupo de picadores estava, continuaria, bem entregue. Assim sucedeu durante alguns meses e o Seco era sempre convocado para as operações que pareciam mais complicadas.
Numa delas, em julho de 68, talvez a Op Golpear, com a paragem da coluna veio-me a informação:
– MINA!!!
Ao chegar-me aos ouvidos, avancei para junto do Seco pois fora ele que a tinha detectado e operava. Aproximei-me dele com o cuidado requerido e fiquei a observar o seu procedimento. (Será que a adrenalina que se liberta tem cheiro? O mato molhado parecia-me sempre adocicado mas naquela altura tinha mudado.)
Estava o Seco semideitado no chão e com a "pica" fazendo perfurações quase horizontais no terreno pois achava que este estava mais brando que o normal. Os gestos comedidos, o cuidado imenso e a tensão elevada ao máximo contagiaram-me. Tentava perceber se aquela textura do terreno correspondia ao que pensava ser uma "caminha" de mina.
Não mais esqueço a transformação que nele se operou: o seu semblante e a própria cor mudaram; o Seco estava cinzento de tão pálido que estava. Levantou-se, lentamente dizendo:
– É mesmo mina, capitão!
A minha norma foi sempre "Mina rebenta-se, não se levanta". Arriscava contudo a perca do segredo da progressão mas era assim. Assim se procedeu mas o Seco teve o seu prémio pecuniário.
Vieram mais operações e num delas um alferes nomeado veio dizer-me que havia problema com a escala dos picadores, não queriam que o Seco fosse naquele dia e nos subsequentes porque não o queriam como chefe.
– Grande berbicacho – pensei eu.
As razões que me apresentaram não me convenceram: invocavam que aquele posto – chefe dos picadores – devia ser desempenhado por alguém superior na hierarquia tribal. Prometi que resolveria o assunto depois daquela operação pois não era altura de estar com mais conversa.
O Seco foi como estava determinado mas com os resmungos dos outros picadores que acalmaram, talvez por eu ir nessa operação. Esta como outras foi "sem contacto, com vestígios" e, num dos dias seguintes, falei com o Seco que me disse que ele próprio não estava interessado em viver no Xime e preferia ir para outro lado.
(Eu à época não estava a par de eventuais "trabalhos sujos", já invocados neste blogue, que Seco desempenhara anteriormente. O comandante que me antecedeu [, da CCAÇ 1550,] nada me referiu, embora quando arrumava as minhas coisas tivesse encontrado, na secretária a mim atribuída, um objecto formado por um cabo de madeira com 40 ou 50 centímetros ao qual estavam presos 3 ou 4 pedaços de arame farpado de idêntico comprimento formando um sinistro chicote. Destruí-o, pois não tinha como conduta torturar prisioneiros e achei que tal objecto prefigurava situações que sempre repudiei por princípio. Nos primeiros meses da comissão, em Bissorã, tive de travar, nem sempre com êxito, atitudes condenáveis por parte de milícias que facilmente se propagavam pelo pessoal da companhia.)
Quanto ao Seco, não consegui arrancar-lhe mais explicações e, falando no comando do Batalhão, em Bambadinca [, BCAÇ 2852], consegui arranjar-lhe um sítio para ele morar e que ele seria o "picador do capitão" e que seria convocado de vez em quando, por mim, coisa que lhe agradou.
Depois, falando com os picadores, vim a saber que, embora já desconfiasse, o chefe por eles desejado era o filho do chefe da tabanca, o Mancaman Biai, que desempenhou o papel até ao fim da comissão.
O Mancaman foi sempre uma pessoa reservada, discreta, embora entre o pessoal existisse certa desconfiança que me foi transmitida por diversas maneiras. O mesmo se passava com o chefe da tabanca que, na noite do ataque ao Xime, na passagem do ano de 1968 para 1969, que foi o mais forte da minha época, foi trazido para dentro do "quartel" por haver fortes suspeitas a seu respeito (não esquecer que a morte do furriel Dias, o vaguemestre da CART 1746, e os muitos feridos na emboscada, passara-se um mês antes). As coisas serenaram mas a desconfiança [manteve-se] com altos e baixos.
No dia da minha retirada, já com a LDG atracada no Xime, veio o Mancaman ter comigo, se eu não lhe deixava uma recordação:
– Não, Mancaman, não tenho nada para te dar, mas já dei a ti e ao teu pai a possibilidade de não terem sofrido represálias que, numa certe altura, pareciam mais que prováveis.
Compreendia que as populações estavam divididas com a guerra e que era natural que familiares ou antigos amigos seus vivessem naquilo que à época eram bases IN e que isso era agora a realidade.
– Adeus, Mancaman.
1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494/BART 3873, Bambadinca, 1971/74), com data de hoje, 28 de Novembro de 2016, dando conta do falecimento do ex-Alf Mil TRMS António Fernando Barros Guerreiro, da CCS do BART 3873:
Camarada Luís, Eis uma notícia que ninguém gosta de dar. Faleceu mais um camarada nosso, da Guiné, de Bambadinca e do BART 3873. Nesse âmbito, elaborei uma pequena nota que anexo. Um abraço, Jorge Araújo.
IN MEMORIAM
António Fernando Barros Guerreiro [1948-2016]
Ex-Alf. Milº TRMS da CCS/BART 3873 (Bambadinca, 1971/74)
Camaradas,
A notícia do falecimento do camarada António Fernando Barros Guerreiro (1948.01.26 - 2016.11.25), ex-Alf. Mil. Trms. Inf. da CCS do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74), chegou-me por mensagem enviada pelo Ten. Cor., na situação de aposentado, Henrique A. B. Jales Moreira [ex-Major de Artª. – Chefe da SECOPINF do BART 3873].
Ainda que não tenha privado de forma assídua com este camarada Oficial de Transmissões do meu Batalhão, sempre que me deslocava a Bambadinca, e o encontrava, nos cumprimentávamos de forma amável. A mensagem que acabara de receber foi, por isso, mais uma daquelas notícias que nunca estamos à espera, ainda que faça parte do nosso quotidiano, e que, no âmbito da natureza humana, corresponde à última transcendência de cada um dos mortais.
Por esse facto, tomei a iniciativa de vos dar conta de que esse desenlace aconteceu na passada sexta- feira, 25 de novembro de 2016, tendo o seu corpo ficado em câmara ardente na casa mortuária do Hospital de Évora, de onde saiu ontem, dia 26, para o Cemitério do Espinheiro, em Évora.
Ao acto fúnebre compareceram familiares, amigos e ex-combatentes.
Do ponto de vista militar, em representação pessoal e da CART 3494, esteve presente o camarada ex-Alf. Mil. Acácio Correia e do BART 3873, o Ten. Cor. Jales Moreira.
Após ter concluída a sua comissão de serviço na Guiné, o camarada António Guerreiro, enquanto Engenheiro Florestal, foi Chefe de Divisão da ex-Direcção-Geral das Florestas, tendo transitado em Abril de 1993, por extinção deste Organismo Público, para o Instituto Florestal, como assessor principal, da carreira de engenheiro, com destacamento em Évora.
É-lhe atribuída a coautoria das "Normas cinegéticas para projectos florestais", apresentada no II Congresso Florestal Nacional, realizado na Faculdade de Economia do Porto, entre 7 e 10 de novembro de 1990. A sua comunicação (pp. 533-539) consta no livro de Actas do Congresso.
DESCANSA EM PAZ CAMARADA.
Jorge Araújo, 27NOV2016
************
2. Mensagem do editor CV:
Em nome da tertúlia e editores deste Blogue, apresento as mais sentidas condolências à família do nosso camarada António Guerreiro.
____________
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
Correndo o risco de repetir o que sobre António Carreira
escreveu a historiadora Maria Emília Madeira Santos, deve-se a este
investigador que percorreu toda as etapas da administração colonial a partir
dos 16 anos, que frequentou a Escola Superior Colonial e concluiu com alta
classificação alguns dos estudos que ainda continuam incontornáveis na
historiografia da Guiné Portuguesa, isto a propósito das companhias
majestáticas, do tráfico de escravos e da presença dos portugueses nos rios
da Guiné entre 1500 e 1900.
Dos seus trabalhos etnográficos, a investigação
sobre Mandingas continua a não oferecer contestação e de altíssima
importância se mantém a sua laboriosa investigação sobre a panaria
cabo-verdiano-portuguesa.
Este livro é uma homenagem de cabo-verdianos,
visto que Carreira nasceu em Cabo Verde. É lastimável que o seu nome se
mantenha numa semiobscuridade no tocante às universidades portuguesas.
Um
abraço do
Mário
António Carreira, etnógrafo e historiador, por João Lopes Filho
Beja Santos
“António Carreira, etnógrafo e historiador” é o título da obra que João Lopes Filho editou na Fundação João Lopes, Praia, Cabo Verde, em 2015 e apresentou na Sociedade de Geografia de Lisboa.
Para quem estuda a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau, António Carreira é um nome cuja importância é mais do que relevante. Nasceu em 28 de Outubro de 1905 na Ilha do Fogo e faleceu em 22 de Abril de 1988. Foi para a Guiné com 11 anos. Aos 16, ingressou na Função Pública, onde permaneceu entre 1921 e 1954. Subiu a escada a pulso: foi capataz de estradas, Aspirante dos Correios e Telégrafos, Aspirante do Quadro Administrativo, Secretário de Circunscrição Civil e Administrador de Circunscrição Civil. Frequentou os Altos Estudos da antiga Escola Superior Colonial, tendo concluído o curso em 1949. Em 1950 foi nomeado Delegado Geral do Censo da População da Guiné. Em 1953, foi condecorado com a medalha de serviços distintos e relevantes no Ultramar pela sua brilhante atuação em serviços importantes da Administração Pública e pela publicação de estudos de índole etnográfica de indiscutível valor.
Reformado da Função Pública em 1954, passou a trabalhar na Casa Gouveia. Foi no exercício dessas funções que o seu nome ficará associado aos acontecimentos de Agosto de 1959, o chamado massacre do Pidjiquiti. Comenta a propósito o historiador Carlos Reis: “O Dr. António Carreira era essencialmente o responsável pelo massacre do cais do Pidjiquiti, enquanto gerente da Casa Gouveia, de acordo com as informações que tínhamos e que, só anos mais tarde se veio a saber não serem exatas. Hoje, sei que o facto de ele ter participado à Polícia que a carga da casa comercial que dirigia não estar a ser movimentada porque os estivadores tinham decidido entrar em greve, é algo que qualquer pessoa comum, naquela época, também faria se estivesse no seu lugar”.
Vinte anos mais tarde, Carreira reconhecia que, “os governantes da Guiné têm-se manifestados hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora eu não me sinto com nenhuma responsabilidade direta no caso (…) o que para mim se aparenta curioso é que nunca tivessem apontado os autores materiais do caso: o Comandante Militar, o Comandante da PSP e os restantes agentes do Governo”.
Reformado após uma longa dedicação profissional, Carreira passou a residir em Lisboa, onde se dedicou à investigação científica. Em 1962, passou a fazer parte da equipa do Prof. Jorge Dias, no então criado Centro de Estudos da Antropologia Cultural. Carreira exerceu docência na qualidade de professor convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Frequentava o Centro de Cartografia Antiga onde ia visitar o seu diretor a amigo, Teixeira da Mota. Aprendeu a falar Fula, Mandinga e Manjaco, o que lhe facilitou a elaboração de trabalhos no campo da etnografia, com destaque para: Mandingas; Costumes Mandingas; Vida, religião e morte dos Mandingas; Mandingas da Guiné Portuguesa; Vida Social dos Manjacos; Subsídios para o estudo da língua Manjaca; Mutilações corporais e pinturas cutâneas dos negros da Guiné Portuguesa; Movimento natural da população não civilizada da circunscrição de Cacheu e censo geral da população não civilizada, em 1950.
Realce-se a ligação de Carreira à etnografia, através do seu envolvimento na criação do Museu de Etnografia a convite de Jorge Dias. A partir de 1956, Jorge Dias mudou-se para a Escola de Administração Colonial, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas. Foi no contexto do desenvolvimento académico da disciplina de Antropologia que fez uma viagem até à Guiné, onde conheceu Carreira através de Teixeira da Mota. O ponto de partida deste museu foi feito com base em recolhas no decurso das missões de estudo das minorias étnicas do Ultramar Português. Em 1962, Jorge Dias criou o Centro de Estudos de Antropologia Cultural, tutelado pela Junta de Investigações do Ultramar. Era uma equipa de luxo, composta por Jorge Dias, Benjamim Enes Pereira, Fernando Galhano e Ernesto Veiga de Oliveira. Jorge Dias incentivou Carreira a recolher objetos africanos no contexto do processo museológico. Tudo indica que Carreira regressou da sua primeira missão de recolha e estudo a Angola, em 1965, com uma coleção composta de 1194 peças. Em 1972, realizou-se a exposição “Povos e culturas”, era a primeira manifestação pública do Museu de Etnologia. Carreira trabalhou ativamente neste projeto, contribuindo com cerca de 3500 peças.
Voltando um pouco atrás, recorde-se que desde 1964 Carreira publicou no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa artigos de história e etnologia sobre a chamada Costa da Guiné e sobre o arquipélago de Cabo Verde. Em 1965, terminou um dos seus livros mais apreciados, “Panaria cabo-verdiano-guineense”.
A sua bibliografia referente à Guiné mantém-se ao melhor nível, deve-se a Carreira importantes estudos sobre “As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro”; igualmente nesta linha publicou “Notas sobre o tráfico português de escravos", tem um título de grande importância, “O tráfico de escravos nos rios da Guiné e ilhas de Cabo Verde (1810-1850): subsídios para o seu estudo”; um dos seus últimos livros é um trabalho incontornável: “Os portugueses nos rios da Guiné: 1500-1900".
Dele, escreveu a historiadora Maria Emília Madeira Santos: “Pode dizer-se que a História de África, em Portugal, recebeu de António Carreira o impulso decisivo que ainda hoje continua a fazer-se sentir nos estudos dos jovens historiadores, nas temáticas de encontros científicos e nos objetivos dos atuais centros de história de África. Foi António Carreira que teve a coragem e a inspiração de colocar, pela primeira vez em português, os africanos escravos ou livres, no centro de gravidade da História de África e da História do Atlântico”.
____________
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > s/d > s/l > Patrulhamento ofensivo no subsetor de Bambadinca, talvez nas imediações de uma tabanca, do regulado de Badora. Foto do álbum do fur mil op esp Pel Rec Info, Benjamim Durães.
1. “Acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo
2. Emboscar-se perto do quartel
3. “Andar às voltas” para fazer tempo
4. Evitar o contacto com o IN (não abrindo fogo)
5. Provocar o silêncio-rádio
6. Alegar dificuldades de ligação com o PCV [ponto de comando volante, geralmente em DO 27]
7. Enganar o PCV sobre a posição das NT
8. Outros problemas de transmissões
9. Sobrevalorizar o nº de baixas causadas ao IN
10. Falsas justificações para perda de material
11. Reportar “enganos” do guia nos trilhos
12. Deixar fugir o guia-prisioneiro
13. Liquidar o guia-prisioneiro
14. Simular problemas de saúde
15. Regresso antecipado ao quartel por alegados problemas de saúde
16. Falsificar o relatório da ação
17. Começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista
18. Outras formas II. Este tema acaba por ser sugerido pelo nosso camarada António Duarte, num recente comentário que fez ao poste P16762 (*):
António [João Fernandes] Duarte, ex- fur mil at art, CART 3493 / BART 3873, e CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xime, 1971/74; economista, bancário reformado, formador com larga experiência em Portugal e Angola na área das operações bancárias. Esteve na CCAÇ 12, de novembro de 1972 a março de 1974, em rendição individual.
Impressionante a dor que se percebe no texto da mensagem enviada. Aquela referência de que teria "acampado" antes do objetivo, se não estivesse presente outra unidade, menciona uma prática corrente, (pelo menos no meu tempo dez 71 a jan 74).
Curiosamente não me recordo do assunto tratado no nosso blogue.(**)
Já agora recordo uma emboscada que a CCaç 12 teve perto de Madina Colhido, em 1973, onde apanhámos, com surpresa, para as duas partes, um grupo do PAIGC, que supostamente iria atacar o Xime.
Parámos praticamente, logo que o último homem da coluna deixou de avistar o quartel. Iam dois pelotões. A operação era para ser feita através de "rádio". Explicando melhor, à medida que o tempo ia passando, informava-se o aquartelamento da nossa falsa posição, "percorrendo-se" todo o itinerário.
Riscos deste procedimento, era os obuses fazerem fogo para locais onde estava a nossa tropa.
Suponho que até ao nível de capitão todos percebíamos o tema, pelo que nada de grave aconteceu... que seja do meu conhecimento.
Abraços a todos e renovando a memória dos camaradas que tombaram nesse malfadado dia [26/11/1970].
António Duarte
CArt 3493 e CCaç 12
(Mansambo, Bambadinca e Xime, 1971/74)
_________
(...) [Você] sabe tudo [o] que fiz para evitar a tal op[eração]… Sem a CCAÇ 12 talvez tivesse “acampado” [sic] em Gundague Beafada. Não existia estrada [Xime-Ponta do Inglês]…. Era tudo mata densa… Qual dispositivo [?!]. Aceito que o estado maior do CACO [sic] tenha feito relatório [, incriminando-me,] porque não denunciei [a] discussão c[om] Anjos [sic] [, 2º cmdt do BART 2917]. (...)