
Queridos amigos,
Havia um sentimento profundo subjacente a esta jornada açoriana, era uma autêntica peregrinação de saudade, sem detrimento do que sempre deslumbra cada vez que aqui se arriba. Um amigo franqueara as portas de sua casa em pleno Vale das Furnas, não havia que hesitar um local de encantamento, havia mesmo necessidade de passeios pedestres e de horas de recolhimento em leitura frutuosa.
Em termos de saldo, só notas positivas, dentro da afabilidade até se voltou a visitar as estufas de ananás, cobertas de vidro caiado, com os seus alboios para regular a temperatura, de alguém a explicar as etapas sucessivas daquela morosa cultura, pois o ciclo completo dura 18 meses.
E, como num passo de mágica, minutos depois fomos depositados no aeroporto.
Adeus, até ao meu regresso.
Um abraço do
Mário
À sombra de um vulcão adormecido (5)
Beja Santos
O viandante tomou um autocarro (a “urbana”) e veio a Ponta Delgada, há amigos a visitar, sítios a rememorar, cabem dentro do termo da saudade. Esta fachada situa-se na Rua do Frias n.º 101, aqui viveu o último dos poetas do Orpheu, Armando Cortes Rodrigues, é hoje a sede do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Aí para Fevereiro de 1968, o poeta convidou o viandante para jantar, recebeu-o numa indumentária excêntrica, volumoso, encantador, dotado de um vozeirão de sílabas soltas, canalizou a conversa para usos e costumes micaelenses, o poeta seguramente passará à história como grande etnógrafo, sem hesitações. À saída ofereceu dois livros, um deles impressionou muito o viandante, era a correspondência dele com Fernando Pessoa, foi através da leitura destas cartas que ficou a saber que o autor de "Mensagem" vivia permanentemente em apuros financeiros. Impossível deixar no limbo tal jantar e tal serão.
Era necessário vir fazer uma consulta no Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada, casa de grande conforto e com funcionários altamente prestáveis. Finda a leitura, preferiu-se a escada ao elevador, deparou-se esse painel de azulejos e, sabe-se lá porquê, lembrou-se o viandante do mar dos Açores.
Em frente à Biblioteca e ao Arquivo há um aprimorado jardim, tem no centro um monumento alegórico a Antero de Quental, o que naquele caso importava era visitar o jardim antes que desabasse uma carga de água. Atraído por tanta pétala no chão, desconhecedor do nome da árvore, perguntou ao jardineiro. “Senhor, é uma macaqueira”. Já procurou no dicionário, nada aparece para o esclarecer. O assunto também não tem importância, os dicionários também não trazem a palavra bagacina, o que é de todo incompreensível, bagacina é o que não falta por todo o solo açoriano. Saúde-se a macaqueira por nos oferecer este tapete digno de uma importante procissão.
O casco histórico de Ponta Delgada tem destas surpresas, aqui estacionou muita fidalguia, antiga do tempo dos povoadores e de extração mais recente, como o liberalismo. Diante destas armas, deu o viandante a meditar na fidalguia de caráter, a de grandes princípios, e pronto lhe veio à mente um nobre fidalgo republicano, Manuel Arriaga cujo civismo devia ser ministrado nos bancos da escola, o exemplo modelar de quem servia e não se servia, insensível às tentações do uso indigno do poder.
As últimas recordações vão para os Arrifes, sede do BII 18, sigla para o Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, foi aqui que o viandante aterrou e deu duas recrutas, foi gerente de messe até ser despedido por ser sovina e estar indisponível para cavalarias altas, quem não tem dinheiro não tem vícios, se em Mafra descobrira que podia puxar pelo corpo e estava preparado para as futuras grandes canseiras, aqui descobriu, quase atónito, que saber liderar é um misto de ciência e dom e da prática de cuidar. Por isso sorria feliz, dava e recebia confiança, imbuído de respeito e aprendiz curioso destes padrões culturais que os recrutas transmitiam. Olhando estas fotografias, o que daria o viandante para abraçar estes homens, cinquenta anos depois.
Sabe-se lá por que escrutínio um dia foi chamado ao comandante e dada a ordem de preparar o discurso do juramento de bandeira, a parada repleta, os ilustríssimos convidados abancados na tribuna, os familiares em redor, era preciso dizer coisas como dever, amor à Pátria, e algo mais. Foi o que se tentou fazer, sem quaisquer cedências ao jargão propagandístico. De acordo com a opinião alheia, tudo correu bem e sem subserviência.
Os Arrifes eram uma freguesia populosa e com pobreza indisfarçável. Logo da primeira vez que esteve de oficial de dia, o cabo rancheiro perguntou se podia distribuir a sobra das batatas. O aspirante a oficial miliciano pediu explicações: “Estão lá fora as crianças que aqui vêm a esta hora, levam batata, ou massa, às vezes couves, são sobras e agora não temos aqui no quartel nem porcos nem galinhas”. Foi ver as crianças e tocou-lhe a sua candura e o olhar famélico. Mandou abrir latas de atum, distribuir pão e peças de fruta, conduta que lhe podia ter custado caro. A criançada saiu dali mais aconchegada, e ao fim do dia de instrução, prestes a regressar a Ponta Delgada, era sacramental perguntarem-lhe se amanhã não estaria de oficial de dia…
Última recruta, última fotografia de conjunto, a partir de agora o destino é incerto para todos nós, com este corpinho fomos todos parar à guerra. Prometemos um dia voltar à fala, o que não aconteceu. A importância, para o viandante, é olhar com ternura esta fotografia e o que ela encerra. E ponto final. E aqui acaba a viagem, mostra-se um bilhete-postal dos arrifes daquele tempo, o viandante mandou à sua mãe, fala de alegria, de boa saúde e de muito entusiasmo. Alegria e entusiasmo que tanto o ajudaram ao longo da vida.
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18232: Os nossos seres, saberes e lazeres (249): À sombra de um vulcão adormecido (4) (Mário Beja Santos)