1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2017:
Queridos amigos,
Nesta fase do levantamento que estou a fazer à documentação do BNU na Guiné (Bolama e Bissau) fica-me a arreigada convicção de que é impossível fazer um estudo da economia da Guiné desde o início do século XX até à independência sem consultar estes relatórios emitidos de Bolama e Bissau. Por múltiplas razões: o cadastro dos clientes, as empresas e os seus empréstimos, as falências, as mudanças de negócios, o BNU como acionista de diferentes empresas, como a Sociedade Comercial Ultramarina, o conhecimento das atividades de António da Silva Gouveia, etc.
Neste texto junta-se uma primorosa carta do gerente de Bissau ao governador do BNU em Lisboa acerca de um safardana que era o Dr. Pinto. Doravante, será impossível talhar a vestimenta do funcionário colonial inescrupuloso sem trazer este desassombrado documento a público.
Atenção, avizinha-se nova revolta dos Bijagós. Consta na história oficial que foi a última sedição.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (19)
Beja Santos
Estamos em 1934. A nível internacional, vemos a Guiné representada na Exposição Internacional Colonial de Paris. O BNU da Guiné é perguntado sobre o que se pode oferecer e responde que muito pouco, o mercado é pobre, tal como a arte (julga-se). Seja como for, o jornal “O Comércio da Guiné” não deixará de referir a representação da colónia, ressaltando que se deu uma ideia exata das possibilidades e realizações da Guiné Portuguesa. Havia um stand, nas vitrinas estavam expostos os tipos de mancarra, de milho, café, coco, óleo de palma, copra e borracha, sobretudo.
“Com as referidas amostras a Guiné apresenta o catálogo dos tipos comerciais habitualmente exportados, sendo possível a todos aqueles que se interessarem pelo assunto encontrarem no escritório de informações as estatísticas que poderão definir a exata situação e posição do valor deste rico mercado exportador”.
Em Abril desse ano, o gerente de Bissau responde ao governador do BNU sobre uma queixa apresentada pelo médico José Vitorino Pinto que se queixara por não lhe terem dado uma avença médica:
“Conhecemos razoavelmente o Dr. Pinto; mas, com franqueza o dizemos a V. Exa., não o julgávamos capaz de mentir tanto. O Sr. Dr. Pinto, chefe da repartição de saúde desta colónia, médico e major, mentiu a V. Exa., julgando que, mentindo, lhe seria fácil auferir mais 800 escudos por mês. Todo o mundo sabe que na colónia que o Sr. Dr. Pinto por dinheiro é capaz de ir até ao impossível. Nós, apesar de tudo, não o julgávamos capaz de torcer tanto a verdade, por 800 escudos. Calculávamos, é certo, que o Sr. Dr. Pinto se dirigisse a V. Exa., pedindo que lhe fosse dada a avença médica, invocando fundamentos extraordinários, porque sabemos que ele é capaz; que mesmo se queixasse magoadamente de nós, embora sem dizer a razão porque não demos a avença ainda o compreendíamos; mas que mentisse com tal descaro e por 800 escudos, é que nos deixou surpreendidos, por se tratar de um indivíduo que, além de ser médico e chefe de uma repartiçã, usa galões de major.
Nunca nesta agência e nas que temos gerido se guardaram lugares a médicos do quadro avençados. Os médicos do quadro estão sujeitos a transferências de conveniências de serviço, e era desprestigiante para o médico substituinte e melindroso para o gerente dizer-lhe que quando o substituído regressasse a avença lhe seria entregue. Era de presumir que ela não fosse aceite nestas condições e o prejudicado seria o banco por ter de pagar mais caro o seu serviço clínico durante a ausência indefinida do privilegiado. Mas, mesmo que assim não fosse, o Sr. Dr. Pinto embarcou para a metrópole, pela Junta, como gravemente doente, sem o estar – todos o sabem –, com o propósito firme de não voltar à colónia, e encaixar-se no lugar de chefe de serviços de saúde do Ministério das Colónias, ficando ali anichado à espera do tempo que lhe falta para a reforma.
Chegou a Lisboa e, para conseguir os seus fins, obteve da Junta apenas 30 dias para se tratar, apesar de ter saído da colónia em estado grave…
Fez o que lhe foi possível, mas como em Portugal o regime de compadrio vai acabando, o Sr. Dr. Pinto não conseguiu o nicho almejado e teve de embarcar, não o fazendo no primeiro vapor após a licença porque na véspera do embarque adoeceu. O Sr. Dr. Pinto quando embarcou da Guiné já sabia que a avença do banco tinha sido dada ao Sr. Dr. Pereira Brandão, que o substituiu em todos os serviços. Foi para a metrópole e nada nos disse de lá sobre o seu regresso e nem sequer avisou disso o colega que o substituiu nos serviços públicos. Desde que ele regressava, dava-se fatalmente movimento no quadro: o Dr. Brandão iria para Bolama, como de facto foi, e em Bissau ficaria o Dr. Pinto e o Dr. Leite de Noronha, como delegado de saúde. Este, avisado pelo chefe interino, Dr. Brandão, veio ao banco pedir a avença no caso de ser deslocado o seu colega. Como o Sr. Dr. Pinto nada nos tinha dito nem escrito, dissemos ao Sr. Dr. Noronha que lhe daríamos a avença se fosse transferido o Sr. Dr. Brandão.
Muitos dias depois do seu desembarque, o Sr. Dr. Pinto veio procurar-nos para nos cumprimentar (!) e pedir a avença do banco. Se ele sabia que era costume reservar-lhe a avença porque a veio ele pedir depois de chegar? Parece que tendo a consciência de que a avença lhe estava ou deveria estar reservada, nada mais tinha a fazer do que esperar que o chamássemos quando dos serviços carecêssemos. Dissemos que por ignorarmos o seu regresso já a tínhamos dado ao Dr. Noronha, porque a tinha pedido, como era costume. Esta entrevista decorreu o mais cordialmente possível.
Pela carta de V. Exa. depreendemos que os factos não foram assim relatos na queixa magoadamente formulada pelo Sr. Dr. Pinto. Mentiu, pois, convencido que V. Exa. imediatamente nos ordenava a entrega da avença, sem nos ouvir, estalando-nos a castanha na boca. Enganou-se. V. Exa. entendeu que o seu gerente – que se orgulha de ser correto, leal e verdadeiro, não deveria ser desprestigiado e mandou ouvir. Bem haja por isso e pela confiança com que sempre tem honrado.
Dissemos que o Sr. Dr. Pinto não convinha aos interesses do banco. Não convém porque é chicaneiro, malcriado e pouco atencioso. Há tempos, o signatário passou um mês a levantar-se e a deitar-se com impertinentes cólicas hepáticas. Coincidiu ter de o mandar chamar, por duas vezes, às nove ou dez horas da noite, em noites diferentes. Ao empregado que o foi chamar, respondeu com esta grosseria: “O Sr. Machado parece que está à espera que eu me deite para me mandar chamar”. De uma das vezes em que o signatário se contorcia com dores violentíssimas na cama houve necessidade de dar uma injeção de morfina. Quis o referido médico ferver a seringa voltando para a esposa do gerente disse-lhe: “Vá buscar água!”, num tom imperioso e malcriadamente. Só mais tarde teve o signatário conhecimento destas grosserias, porque se na ocasião lhe fossem contadas o Sr. Dr. Pinto teria descido apressadamente as escadas da residência”.
Já ia longa a carta para o governador em Lisboa, e o gerente lança a estocada final sobre o Dr. Pinto:
“Um facto, dentre mil conhecidos, queremos ainda relatar que o definem como médico na sua missão humanitária, a quem o Estado paga para prestar assistência aos indígenas: Um alfaiate indígena enterrou uma agulha de croché grande, atravessando-a na unha, de lado a lado. Correu o hospital cheio de dores para lha extraírem. O Dr. Pinto perguntou-lhe se levava dinheiro. Que não, que não tinha, que era pobre, mas que estava cheio de dores, respondeu o indígena. Então, era necessária uma guia da administração do concelho. Era domingo. A administração estava fechada. O indígena foi-se sem tratamento. Um criado do Dr. Marques Mano, chamado Bernardo, levou um tiro nas costas. Foi ao hospital para ser tratado. Pergunta fundamental do Dr. Pinto: “Trazes dinheiro, trazes?”. Também este não levava dinheiro. Um pincelada de tintura de iodo na ferida e mandou-o embora. Mais tarde, cicatrizou a ferida mas sentia dores horríveis. Foi ao hospital à consulta, mandado pelo Dr. Marques Mano. O Dr. Pinto foi gentilíssimo com o indígena porque já havia quem pagasse”.
1934 é novo ano de carestia, falta o papel-moeda, houve redução do poder de compra, o comércio sofre, a população local perdeu igualmente dinheiro devido às consequências da baixa cotação das oleaginosas nos mercados europeus. Veremos mais adiante a situação com detalhes, fica-se mesmo a saber o censo da população geral da colónia segundo o recenseamento realizado entre 1933 e 1935. E depois haverá notícias da revolta dos Bijagós, em 1936.
Fotografias de Mário Novais, Guiné, acervo depositado na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
(Continua)
____________
Notas do editor:
Poste anterior de: 19 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18227: Notas de leitura (1033): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (18) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 22 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18239: Notas de leitura (1034): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Vamos encontrar o médico Augusto Pereira Brandão a trabalhar em Farim, casado com a irmã mais velha, Cristina (n. 1904) do Artur Augusto da Silva (1912-1983), pai do nosso Pepito, e do João Augusto Silva (1910-1990).
O avô (paterno) do Pepito morrera em Lisboa, em 1925, onde se encontrava em tratamento médico. Deixava dois filhos menores, justamente o João e o Artur, que foram viver com a irmã mais velha, Cristina, em Lisboa. família era de Cabo Verde, da ilha da Brava,
O médico Augusto Pereira Brandão era natural de Cela, Alcobaçqa, e fora desterrado para Guiné nos anos 20, por estar envolvido numa rebelião contra a República, juntamente com Paiva Couceiro, se não erro.
É pai do arquiteto e professora de arquitetura Augusto Artur da Silva Pereira Brandão (n. 1930, em Lisboa) que viveu, desde os 3 anos até aos 11, entre a Guiné, Angola, São Tomé e Moçambique, acompanhando a carreira do pai.
Em 1938 o dr. Augusto Pereira Brandão era chefe dos serviços de saúde da Guiné, tendo sido nessa altura nomeado interinamente governador da colónia, em substituição de Luís António Carvalho Viegas , governador entre 1932 e 1940), como se pode ler aqui num poste do José Martins:
3 DE JUNHO DE 2013
Guiné 63/74 - P11667: Quem dirigiu os destinos da Guiné (3/3): Governadores e Independência (José Martins)
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/06/guine-6374-p11667-quem-dirigiu-os.html
LUIZ ANTÓNIO DE CARVALHO VIEGAS – Major de Cavalaria, é nomeado por decreto de 8 de Dezembro de 1932 e tomou posse em 10 de Março. No dia 10 de Maio veio a Lisboa e entregou o governo a José Peixoto Ponces de Carvalho, director da Administração Civil, reassumindo as funções em Setembro seguinte. Em Agosto de 1936 entrega a governação ao Capitão José Salvação Barreto, inspector administrativo, a fim de tomar parte na Conferência dos Governadores Coloniais. Regressou a Lisboa para prestar provas para o posto imediato, tendo sido nomeado para o substituir, com carácter interino e por despacho ministerial de 19 de Março de 1938, o chefe dos Serviços de Saúde Dr. Augusto Pereira Brandão.
O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!...
Já falei há tempos com o prof Pereira Brandão, filho do médico Augusto Pereira Brandão, estava na altura a coligir elementos para uma biografia sobre o pai... E também cheguei à conclusão de que o neto do médico tinha sido meu aluno do Curso de Medicina do Trabalho (1988/89), na Escola Nacional de Saúde Pública... João Pereira Brandão é também médico, como o avô...
Enviar um comentário