terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...


Capa de "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, 1056 pp.




(i) Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira;

(ii) nasceu em Lisboa em 1960 e faleceu a 30 de dezembro de 2024;

(iii) frequentou a licenciatura em Física, na Universidade de Lisboa, que viria a abandonar já quase no final do curso;

(iv) começou a publicar a sua poesia no Anuário de Poetas não Publicados da Assírio & Alvim, em 1984;

(v) em 1983, tinha começado uma nova licenciatura, em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(vi) o seu primeiro livro de poesia, "Um Jogo Bastante Perigoso", é publicado em edição de autor (1985);

(vii) tem uma extensa obra poética: Irmã Barata, Irmã Batata (2000), Manhã (2015), Bandolim (2016), Estar em Casa (2018), Dias e Dias (2020) e Choupos (2023), etc.

(viii) Dobra (2024) é a mais recente reunião da sua obra publicada, incluindo inéditos;

(ix) colaborou em diversos jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro, com poemas, artigos e poemas traduzidos.


Fonte: textos e fotos, adapt de Assírio & Alvim, a sua editora, com a devida vénia


1. Dobra (2024) foi a prenda de aniversário que deu hoje ao meu filho, tendo como dedicatória um poema da minha lavra, "A gramática de vida" (que tomei a liberdade de publicar no blogue).

Da Adília Lopes, que eu só conhecia superficialmente, escolhi dois poemas para a série "A Nossa Poemateca".    Temos grandes "vozes" femininas na poesia portuguesa. Adília Lopes é simplesmente portentosa. Reconhecia duas ou três fontes que a inspiravam, também três dos meus poetas preferidos; Sophia de Melo Breyner Andresen, Alexandre O' Neil e Ruy Belo. Dele Adília Lopes pode-se dizer que tinha a compulsão da escrita. Alguém disse que escrevia poesia para se salvar. Era, de resto, uma mulher crente. 

A sua poesia é um fantástico jogo de teatro de marionetes. Era uma perita a manipular as palavras, as imagens e as personagens que inventava e  povoavam a sua casa de Arroios. Ficará também na história da nossa literatura como  um dos  grandes poetas de Lisboa. Talvez o último de uma Lisboa que desapareceu ou está em vias de desaparecer, a dos bairros populares, das lojas, dos cafés e dos restaurantes de proximidade.

Lógica necrológica

Os amores
que não tive
(e foram muitos)
moeram-me 
o juízo

Também 
não tive 
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum

Não me queixo

O que
não foi
(e foi muito)
dei-me 
muito trabalho
e muito

Fonte: "Capilé" (2016). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 750.
 

No more tears

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
em uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

Fonte: "O decote da dama de espadas"(1988). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 125.
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)
 

Guiné 61/74 - P26409: Tabanca Grande (566): Angelino dos Santos Silva, grão-tabanqueiro nº 897, ex-fur mil OE, 26ª CCmds (Brá, 1970-1972), poeta e escritor, natural de Recarei. Paredes, Vale do Sousa



Angelino Santos, ex.fur mil OE, 26ª CCmds (Brá, 1970/72)



Paredes > Recarei > Anos 50 > O artista quando jovem,
com outros colegas e vizinhos... Náo sabemos identificá-lo. A foto serviu para compor a capa do livro "Memórias da Aldeia", o livro mais recente do Angelino dos Santos Silva



Capa do romances histórico  "Geração de 70: época das chuvas" (2014). 

Fotos: Facebook de Angelino Santos Silva  (com a devida vénia)


1. O Angelino dos Santos Silva é o primeiro, no ano em curso, a sentar-se à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande, de acordo com a sua vontade expressa e respondendo ao nosso convite, que já tem dois anos (*).

O nosso camarada Angelino Santos Silva, nasceu em  25 de novembro de 1948, em Recarei, Paredes,  vale do Sousa (berço da nossa nacionalidade): escritor, ex-fur mil 'cmd', 26ª CCmds, Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/72, passa a  ser o nosso grão-tabanqueiro nº 897.

Frequenta, com alguma regularidade, as Tabancas do Norte, com destaque para a Tabanca de Matosinhos, a Tabanca da Maia, e o Bando do Café Progresso. (E julgamos que também a Tabanca dos Melros, em Fânzeres, Gondomar.)

Angelinos, és ecebido de braços abertos na Tabanca Grande, a mãe de todas as tabancas. Teremos oportunidade de nos conhecermos pessoalmente; para além da Guiné e da escrita, temos mais afinidades, a sensibilidade sociocultural, o gosto pela música, o amor aos "nossos" vales, o teu o do Sousa, o meu  o do Tâmega (meu, por afinidade, a Alice Carneiro é do Marco de Canaveses, tua vizinha, e eu vou aí há 50 anos). 

Senta-se no lugar nº 897 e partilha connosco histórias e memórias do teu tempo de Guiné e da tua 26ª CCmds, que tem apenas 9 referências no nosso blogue. Quanto às nossas 10 regras editoriais, náo te vou maçar com a sua discriminaçáo, tens aqui o link para saber mais sobre nós, o blogue dos amigos e camaradas da Guiné (na badana do lado esquerdo). O teu nome passa igualmente a figurar na lista, de A a Z, dos 897 grão-tabanqueiros.

 
De acordo com os elementos que recolhemos sobre ti, sabemos algo mais (falta-nos apenas um foto do teu tempoo de "comando"):

(i) concluído ensino básico, faz os seus estudos na cidade do Porto;

(ii) aos 17 anos entra na EFACEC como estagiário escolar, situação que se manteve até ingressar no Serviço Militar Obrigatório.

(iii) como trabalhador-estudante faz o SPI (secção preparatória de admissão) para entrada no Instituto Industrial do Porto;

(iv) em 1969 vai para o CIOE, em Lamego, para frequentar o Curso de Comandos;


(v) integrado na 26ª Companhia de Comandos, embaraca em março de 1970 no T/T "Niassa" para a Guiné, onde permamceu  22 meses;

(vi) em "março de 71, sofre em combate um 'acidente' provocado por mina anticarro que o projecta a cerca de 30 metros": como "ia dependurado no lado contrário ao rebentamento da mina, quis a sorte que ficasse apenas com algumas queimaduras nas costas, provocado pela água da bateria do camião cisterna, que ficou completamente destruído" (sorte, que não tiveram os camaradas dentro do camião):  esteve hospitalizado dois meses;

(viii) regressado à Efacec em 1972, "iniciando a carreira profissional como Técnico de Projetos de Engenharia de Equipamentos de Produção e Distribuição de Energia Elétrica, profissão que manteve até 1982"

(ix) em 1982 sai da Efacec e "inicia uma nova carreira profissional como vendedor de Produtos Químicos de Manutenção Industrial": Chhefe de Vendas ao fim de meio ano, "foi promovido a Diretor Técnico/Comercial da zona Norte, ao fim de três anos, cargo que ocupou durante 20 anos na Quimivenda";

(x) "o gosto pela escrita em prosa e poesia é de sempre, mas apenas em 2010 começou a publicar os seus textos": "Pedaços de Vida" foi o seu primeiro romance (2010) (ver aqui a recensáo crítica feita pelo nosso camarada Mário Beja Santos; "Geração de 70: época das chuvas" (romance histórico, 2014); "Mar de Saudade" (2022) é livro de poesia;  o livro mais recente (2024) são as "Memórias da Aldeia"; mais de 4 dezenas de personagens, entre vivos e mortos, ajudam a reconstruir as memórias da terra natal do autor, Recarei, os seus usos e costumes, o seu modo de ser e estar, entre as décadas de 1920 e 1970; é um trabalho de pesquisa etnográfica.

Fonte: Facebook de Angelino Santos Silva


2. No princípio de 2023, trocámos mensagens, eu e o Angelino,  na página do Facebook da Tabanca Grande. Por qualquer razão acabámos por não dar seguimento à nossa intenção de o apresentar, formalmente, aos amigos e camaradas da Guiné:


Tabanca Grande Luís Graça 17/1/2023, 12:45

Angelino, lúcida e corajosa a tua "pedrada no charco" (...). Posso publicá-la no blogue da Tabanca Grande ? Vejo que és amigo do Facebook, mas não do Blogue. Aceita o meu convite para te juntares aos 868 amigos e camaradas da Guiné que se reunem sob o "poilão" da Tabanca Grande... Duas fotos e duas linhas de apresentação, e já está. Tens um auditório mais vasto do que aqui... Luís Graça.

Angelino Santos Silva 17/1/2023,  14:54

(...)  Obg, Luís, claro que sim, podes publicar. Aproveito para te felicitar pelo enorme trabalho que levas a cabo ao longo de 20 anos em prol dos Combatentes. Obg por me aceitares no blogue. Abraço.


(**) ~Ultimo poste da série > 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26208: Tabanca Grande (565): Jorge Fernando Ferreira Pedro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 6251/72 (Catió e Cabedú, 1972/74), que se senta no lugar 896 do nosso poilão

Guiné 63/74 - P26408: Manuscrito(s) (Luís Graça): A gramática da vida (poema dedicado ao João, que hoje faz anos)





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > Dezembro de 2009 > O Dr. João Graça, médico e músico,  ofereceu cinco dias (de 6 a 10 de Dezembro de 2009) das suas férias de quinze dias (de 5 a 19 do corrente), para trabalhar como médico no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém. Para além de Bissau e do Cantanhez, esteve também nos Bijagós, na zona leste (Bambadinca, Tabató, Bafatá, Contuboel e Gabu) e na região do Cacheu (São Domingos)

Aceitou, no regresso,  integrar a nossa Tabanca Grande e a publicar alguns apontamentos e fotos do seu diário de viagem.

Espantosa, a primeira foto de cima, em que o menino de Iemberém, a aprender a gramática da vida,  como que nos interpela, a todos, não só os pais-fundadores e os homens grandes da Guiné-Bissau mas também todos nós, portugueses, europeus e cidadãos do mundo... "Que lugar há para mim neste mundo que devia ser meu e teu, o nosso mundo, o único lugar que temos para nascer, crescer, viver e morrer com saúde, em liberdade, com dignidade, em paz ?"

Fotos (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A gramática da vida

Ao João, que  hoje faz anos

Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?).
Ou então abram alas, malta,
parênteses, curvos ( ) ou rectos [ ],
e parem só aos sinais de proibição.

... Por precaução.


E ao Não!, digam Não!, ponto de exclamação (!).
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!...

... Que, com a vida sem pica, a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!



Ao sinal verde, toca a arrancar e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
os III da intolerância,
os EEE da estupidez,
os AAA da bravata e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ do caraças da doença,
e, pior, os acen(t)os da demência.


Cuidado, ao final das escadas,
â direita,
o cano de esgoto,
não escorregar em contramão.

... Não há receita contra as gralhas e as calinadas,
e os atropelos à decência.



War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira fora o chapéu de abas largas
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar,
pelas causas que não têm deferimento.

... Não os deixes inumar
na vala comum do esquecimento!



Cuidado, camarada,músico do mundo,
trânsfuga, refractário, desertor,
prisioneiro, inimigo, comissário,
capelão, comandante, detrator,
miliciano, agente duplo, lavadeira,
escriturário, artilheiro, piloto,
grumete, xico, cadete, capitão,
crente ou ateu, tanto faz,
e olha o robô,
que, no fim da picada, podes ser cuspido, zás!,
pela força centrífuga do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu a si própria.

... Mas, a sério, ninguém se magoou ?


Quanto ao macaréu, já não é o que era,
garantiram-te no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
braços de mar, tarrafes e canais de irrigação
da liberdade criativa.

... Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
já não é politicamente correcto. Corta.


Mas que importa,
se já nem vocês se afoitam, pessoal,
de peito feito, aberto,
contra os jagudis imperiais do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.

... Morreram todos, os cabras-machos!


Para que serve afinal a liberdade sem a poesia nem a "bianda" ?
Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
engraxar as botas,
brunir os colarinhos,
escovar o camuflado,
serrar fileiras e os dentes,
pensar na puta da vida,
e no povo, agora, murcho, calado e tolo,
e abrir aspas entre as falas em crioulo.

... Enquanto o corpo está quente e o sangue sai às golfadas.


Até o barqueiro, coitado, perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til.

... Levaram-no, ao pobre do til, para o canil de Lisboa.


Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias, do morteiro...
Triste samurai, aquele, que não encontra o fio nu da espada,
E em vão procura o historiador o rumo da história.

... E, ai! do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.


Encontraste um 'djubi', numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo pouco ortográfico.

... Oxalá, Insh'Allah, Enxalé!



Resta o humorista, o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no fundo da pista onde acabam todas as peugadas:
sangue, pouco e fraco, diz o o doutor,
fleuma, de mal a piores,
bílis amarela, quanto baste,
e bílis negra, às carradas.

... Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.


Que o que faz bem ao braço, faz mal ao baço
e já não há coração que aguente
a pressão hiperbárica do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço e de inox,
é um passador crivado....

... De balas sem ética nem estética, diz o raio X.

Não sabes o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril, que não arreda pé,
se a inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a cruz de guerra
da guerra de mil e troca o passo, na Guiné,
e os seus heróis.

... Todos diferentes, todos iguais.

Quanto à vida, baby,
no fundo, é tudo tretas:
sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma para dar e vencer.
Agora já se não usam palavras com trema.

... Nem tu sabes o que fazer com este poema.


De qualquer modo,
quando a gente morrer,
que não seja por falta de imaginação,
ou de habit(u)ação,
ou de fim do prazo de validade,
que seja ao menos numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão. E com piedade.

...E mais:
dispensemos a notícia nos jornais.


Luís Graça
© 2008 | Revisto em 21/1/2025

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P26407: Parabéns a você (2344): João Graça, médico psiquiatra, nosso Grã-Tabanqueiro, filho da nossa Grã-Tabanqueira Alice Carneiro e do nosso Editor Luís Graça

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Nota do editor

Último post da série de 8 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26359: Parabéns a você (2343): António Murta, ex-Alf Mil Inf MA da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26406: Agenda cultural (877): Rescaldo da apresentação do livro "Guiné, Bilhete de Identidade", de Mário Beja Santos, levada a efeito no dia 13 de Janeiro de 2025 na Livraria Municipal Verney, Oeiras (Mário Beja Santos

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
É uso e costume nas apresentações oferecer aos participantes uma súmula do que se pretende apresentar. Lamentavelmente, uma tendinite muito arreliadora no meu ombro direito tirou-me entusiasmo para preparar um datashow onde se passassem imagens alusivas a algumas passagens significativas da exposição. Impunha-se explicar à assistência que o meu trabalho nem de perto nem de longe é uma História da Guiné, não passa de uma antologia o que eu considero um acervo de textos um tanto determinantes para entender como se processou a presença portuguesa na Grande e na Pequena Senegâmbia, até se chegar à fundação da Guiné, com as fronteiras aproximadas que tem hoje, facto que só aconteceu em 1886. Portanto, o arco histórico vai da crónica de Zurara a Honório Pereira Barreto, foi ele que deu corpo à junção de parcelas que se estendiam do litoral para o interior, foi ele que se forçou para que o Governo de Lisboa defendesse com unhas e dentes perante a França a legitimidade que tínhamos em toda a orla do Casamansa, em vão. E havia que justificar a razão de dois anexos, um referente à missionação e outro ao pensamento ideológico subjacente à criação do Terceiro Império, a História de Portugal, e por tabela a História da Guiné, têm essa dívida para com a Sociedade de Geografia, muito particularmente entre 1875 e 1900.

Um abraço do
Mário



Da Grande para a Pequena Senegâmbia: a Guiné antes da Guiné
(Apontamentos para a apresentação do livro "Guiné, Bilhete de Identidade", Tomo I, na Livraria Verney, Oeiras, 13 de janeiro de 2025)


Mário Beja Santos

Agradecendo em primeiro lugar, na pessoa do Sr. Coronel Manuel Barão da Cunha, o honroso convite para estar convosco e dar-vos conta do meu trabalho, onde procuro os textos mais relevantes que fundamentam a identidade guineense, não só como empório comercial, colónia e país independente, empreendimento de dois livros, é do primeiro que vos vou falar, dessa Guiné do comércio dos rios e rias, a Guiné de Cabo Verde, as praças e dos presídios, das relações luso-africanas, dos judeus na Senegâmbia, nas companhias majestáticas, do tráfico negreiro, das insurreições e também dos acordos com as chefaturas regionais, e assim chegamos a uma fase agregação do território, a ação de Honório Pereira Barreto que foi ajuntando território avulso, também se falará de um período verdadeiramente trágico, os tempos do domínio filipino, que reduziram a presença portuguesa praticamente ao enclave que existe desde o século XVII. Que pode o leitor esperar deste empreendimento a que lancei mãos?


Guiné, Bilhete de Identidade, não é mais que uma tentativa de organizar numa sequência cronológica os factos e feitos mais destacados da presença portuguesa, desde meados do século XV até à governação do comandante Manuel Sarmento Rodrigues, tempo em que a Guiné passou a ser mais do que um ponto no mapa. Importa esclarecer-vos que não se subentenda que foi meu intento fazer uma História da Guiné Portuguesa, tarefa para o qual não vejo condições de viabilização até que se constitua uma ampla equipa multidisciplinar, proveniente de um conjunto de países com história associada à Guiné-Bissau (pelo menos a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Senegal, Guiné-Conacri). O meu trabalho é muito modesto e tem um alvo definido: organizar um elenco de textos alusivos, desde a crónica de Gomes Eanes de Zurara até aos atos governativos que no Pós-Guerra uma dinâmica de desenvolvimento deu uma indiscutível identidade política à região, de tal modo que a comunidade internacional jamais pôs em dúvida a legitimidade das suas fronteiras, independentemente de sonhos que tenham passado pela cabeça de um Sékou Touré para arrebatar território em nome do seu projeto da Alta Guiné, ou da conflitualidade da fronteira entre a Guiné-Bissau e o Senegal, que persiste, e não exclusivamente por razões de uma zona marítima que parece ser economicamente promissora – o Casamansa é mais um desses sinais de que os mapas desenhados na Conferência de Berlim não coincidiram com a natureza dos povos a quem outorgaram nações coloniais. Um drama que persiste.

Em termos de organização, cedo me pareceu que não era editorialmente aceitável publicar num só volume todas estas centenas de páginas. E recebi o bom acolhimento das Edições Húmus, o projeto podia cindir-se em dois volumes, havia só que ter em consideração os dados mais relevantes da cronologia. Deste modo, o volume I abarca a chegada dos portugueses à Terra dos Negros; estando liminarmente afastada qualquer hipótese de uma política de conquistas, houve que estabelecer relações com as chefaturas locais e escolher lugares apropriados em regiões do litoral para fazer o trato de mercadorias e também o tráfico negreiro. Gerou-se uma literatura de enorme riqueza, de acordo com a preparação do viajante, as navegações de Cadamosto, o olhar de um geógrafo como Duarte Pacheco Pereira, as expressões assombrosas que acompanham os relatos de Valentim Fernandes ou Diogo Gomes, entre muitos outros, e ganhará preponderância um texto deslumbrante pela observação do pormenor, o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Álvares de Almada, cavaleiro da Ordem de Cristo. A presença nos rios e rias fez-se com luso-africanos e judeus, havia que enfatizar essa realização e falar de uma figura que permanecerá ativa durante séculos, o tangomao, um perturbador das ordens régias, mas um cabouco da aculturação, e até de uma nova ordem linguística.

Como é compreensível, não me mantive alheado do contexto histórico anterior à presença portuguesa. Mas ninguém ignora que não há fiabilidade nem rigor quanto aos povos autóctones e aos de proveniência sudanesa-nilótica, nem me pareceu de utilidade, já que este meu projeto não se aparenta, nem mesmo colide, com a História da Guiné, e daí não se procurar referenciar, mesmo à luz dos conhecimentos atuais, quais os impérios e reinos que conviveram neste território. Contudo, dá-se a palavra a Carlos Lopes, o seu trabalho sobre o Império do Cabo permite aflorar quem efetivamente aqui foi poder, mesmo que não tenha tido assento em todo o território da atual Guiné-Bissau. Nem mesmo entendi ser útil referências a Arguim e S. Jorge da Mina, dado que a Coroa delimitou rigorosamente, desde o contrato com Fernão Gomes, que as áreas de comércio não se estendiam a outros pontos que não desde o Cabo Verde continental até à região periférica da Serra Leoa.

Impunha-se igualmente referenciar o tráfico de escravos e a importância assumida pelo arquipélago de Cabo Verde no território da Senegâmbia; havia também que falar da competição com holandeses, espanhóis, franceses e ingleses, pois aparecem na Mina, sobem o Senegal, os ingleses formam uma sociedade de comércio na Serra Leoa, os holandeses tomam a ilha de Bezeguiche (Goreia) aos portugueses, como mais tarde Arguim. Isto para relevar que a União Ibérica foi a vários títulos funesta para a presença portuguesa nestes pontos da costa ocidental africana. Com a Restauração, como se disse atrás, essa presença ficou mais ou menos circunscrita ao enclave atual. Funda-se Cacheu, no tempo dos Filipes, com a Restauração nomeia-se capitão-mor para Cacheu, fundam-se Farim e Ziguinchor, floresce o comércio de escravos para o Brasil. Dado que a missionação se constituiu como um fator poderoso da presença portuguesa, entendeu-se pôr em anexo elementos considerados como fundamentais da sua história, por uma questão de racionalidade não se suspendeu a cronologia em 1879, veio-se até ao tempo presente.

No século XVII, Cacheu foi elevada a vila, aparecem estabelecimentos portugueses no rio Bolola e em Guinala (portanto, no Sul). As companhias majestáticas com o exclusivo da navegação e comércio da Guiné, foram um insucesso, tinham o nome de Cacheu a elas associado. Bissau torna-se um ponto de grande interesse, ir-se-á de construção em construção até que no reinado de D. José surge a fortaleza que hoje dá pelo nome de Amura, houve mesmo necessidade de mandar navios de guerra para intimidar os naturais da ilha a não impedirem a construção da praça. Temos então dois capitães-mores, o de Cacheu e o de Bissau. Malsucedidas as empresas majestáticas, em 1783 faz-se contrato com a Sociedade das Ilhas de Cabo Verde para o exclusivo do comércio nestas terras da Guiné.

Na transição do século, os ingleses marcam a sua presença e revelam-se dispostos a ocupar Bolama e não só. A abolição da escravatura irá exigir uma reflexão sobre o que fazer na economia do território. Honório Barreto adquire o que pode, sufoca insurreições, castiga quem comete desacatos, começa a ganhar-se uma certa fisionomia territorial, alarga-se a presença portuguesa, criam-se estabelecimentos. Enquanto isto se passa, os franceses posicionam-se no rio Casamansa, ignoram inicialmente Ziguinchor, fundam os seus próprios comércios, navegam livremente no rio. Não deixa de impressionar a polivalência de Honório Pereira Barreto, a enfrentar hostilidades internas ou externas: a França a Norte, a Inglaterra a Sul e um pouco por toda a parte insubordinações, tratados de paz, acordos com chefaturas. Em maio de 1858, é proclamada a libertação de escravos existentes no território português. Algo tinha de mudar radicalmente na economia do território, havia que investir noutros recursos, nascia a curiosidade pelas potencialidades que a terra oferecia, logo a agricultura.

É altura de vos informar das razões que me levaram a incluir nos anexos um documento que julgo poder iluminar as preocupações de uma elite que se apercebeu de que o destino português se tinha que orientar para África, e o principal e verdadeiramente dinâmico grupo de interesses que se constituiu foi a Sociedade de Geografia de Lisboa; procurei então, sob a forma de ensaio, analisar o que movia estes homens, e como encontraram um catalisador fora do comum, Luciano Cordeiro. As riquezas de África passam para primeiro plano, há que fazer expedições, procurar definir fronteiras, ocupar cada vez mais espaço. Obviamente que esta matéria fará parte do segundo volume, é um cenário que se abre com a Conferência de Berlim e a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a Guiné passava a ser mais do que um conjunto de praças e presídios e estabelecimentos. A sentença do presidente Ulysses Grant foi favorável a Portugal, quando a Guiné se autonomizara em 1879, não será por acaso que a escolha da capital recairá sobre Bolama.

É toda esta trama que vem desde a Crónica da Guiné de Zurara até à autonomia de 1879, independentemente dos enlaces cronológicos e de acontecimentos históricos que não se podem compartimentar, que é o objeto deste livro. Tratando-se de um despretensioso trabalho de divulgação, achou-se por bem incluir em cada episódio a sede de leitura mais apropriada; o mesmo procedimento se adotará quanto ao volume II onde a consulta nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa ganhou uma outra dimensão, como a seu tempo se verá. Infelizmente, não encontrei documentação que relate, do olhar português, a crença islâmica, já bastante enraizada quando chegaram os primeiros navegadores; em contrapartida, há testemunhos sobre o peso do animismo numa boa parte da população guineense, mas tal matéria aparece devidamente relevada com a antropologia e a etnologia, obviamente que dela se fará menção no volume seguinte.

Devo-vos também uma explicação quanto ao teor dos documentos que se anexam. Há uma história da nossa missionação, a obra do Padre Henrique Pinto Rema é já um clássico, estando completamente esgotada a edição de 1982, impunha-se fazer aqui uma síntese e dar a palavra a outros investigadores mais recentes. Nada se pode entender do que foi o espírito do III Império (depois do traumatismo da independência do Brasil, e após a guerra civil e a ascensão da monarquia constitucional, foi-se gradualmente dando atenção a África), se não se atender ao grande detonador para o sonho africano, este teve a sua sede nos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, a Guiné, se bem que tenha sido alvo de subalternização, fez parte desse pensamento, pareceu-me indispensável reequacionar a nossa presença na Guiné à luz de um quadro ideológico que, com profundas adaptações, figurou até ao fim do Estado Novo.

Gostaria, feita esta apresentação, que me pusessem questões merecedoras de desenvolvimento ou me apresentasse lacunas que têm este trabalho.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Fortaleza de S. José de Bissau (Amura), fundada no século XVIII, muito intervencionada até aos tempos modernos
Fortaleza do Cacheu, fundada no século XVII
Brasão de Fernão Gomes de Mina, Livro do Armeiro Mor, de João do Cró, 1509., Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Porto antigo de Cacheu que, segundo a tradição oral local, servia para embarque de escravos.
Fotografia AD - Ação para o Desenvolvimento

Máscara/pendente da Rainha-mãe, em marfim, ferro e cobre, princípio do século XVI, Benim. Na tiara e colar encontram-se representações de navegadores/comerciantes portugueses.
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA

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Nota do editor:

Vd. post de 10 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26371: Agenda cultural (876): Apresentação do livro "Guiné, Bilhete de Identidade", de Mário Beja Santos, dia 13 de Janeiro de 2025, pelas 14h30, na Livraria Municipal Verney, Rua Cândido dos Reis, 90 - Oeiras

Guiné 61/74 - P26405: A nossa guerra em números (27): O "ventre" do BCAÇ 1860 (Tite, 1956/67)
















Guiné > Região de Quínara > Tite > BCAÇ 1860 (1965/67) > Resumo, ilustrado, da actividade logística (reabastecimentos) do batalhão, entre abril de 1965 e abril de 1967. Por mar, por terra e  por ar... 

Total: cerca de 82 mil toneladas movimentadas.  

Foto (e legendas): © Santos Oliveira (2008).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

 
Fonte: História da unidade, BCAÇ 1860 (Tite, 1965/67), conforme documentos digitalizados pelo nosso camarada Santos Oliveira (2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf OE, Pel Mort 912 ( Como, Cufar e Tite, 1964/66). Material em arquivo, enviado pelo Santos Oliveira  por mail em 2008...Infelizmente não sabemos quem é o talentoso autor da original infografia.


1. Eis um original e criativo, em banda desenhada, balanço da atividade logística do BCAÇ 1860 (Tite, 1965/67) (*)

Fornece-nos dados desagregados para podermos, com alguma precisão, obter o consumo "per capita" de diversos itens, como os géneros frescos, os géneros alimentícios, as trações de combate, o correio, os medicamentos, etc.,  mas também as munições, os combustíveis, os materiais de construção, etc., a nível de um batalhão e de um setor, ao longo de uma comissão de serviço (24 meses, nesta época).

Vamos estimar em 600 o número de militares metropolitanos presentes no Sector S1 (Tite), entre abril de 1965 e abril de 1967. 

Os milícias eram "desarranchados", não devendo por isso entrar no cálculo de certos valores como a alimentação... Por outro lado, o CIM de Bolama devia ser reasbastecido diretamente. E por outro lado ainda temos de ter em linha de conta o "abastecimento local" (Fulacunda, por exemplo, tinha uma horta, em 1972/74, e também já tinha o seu posto de abastecimento local, na foz do rio Fulacunda). 

Não sabemos se esta tonelagem toda se refere só a "reabastecimentos" ao longo de dois anos, ou  se inclui também as existências inciais (todos os materiais que o BART 1860 trouxe consigo quando foi colocado no Sector S1, em abril de 1965, tais como armas, munições, viaturas, géneros alimentícios, etc.).

Também não sabemos em rigor se estes dados se aplicam a todo o batalhão...ao longo de toda a comissão.

De acordo com a "ordem de batalha" de 1 de julho de 1966, era o seguinte o diispostivo  do BCAÇ 1860:


- BCAÇ 1860: Comando / CCS - Sector S1, Tite

- CCaç 1487: Fulacunda

- CCaç 1549 (-): Tite | 4° Pel: Enxudé

- CCaç 1566 (-); S. João | 1° Pel (+):  Jabadá | 1 Pel ( +): Fulacunda

- CIM: Bolama

- 1 Pel: Ilha das Cobras | 1 Sec(+) : Ilha das Galinhas

- Pel Mort 1039(-): Tite | 1 Sec(+):  Jabadá

- Pel AMetr Daimler 807 : Tite

- Comp Milícia 7 (-):  Tite | 1 Pel: Jabadá | 1 Pel: Fulacunda
 
 Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume:  aspectos da actividade operacionaç Tomo II: Guiné, Livro I. Lisboa: 2014. pág. 473.

Estimamos em 600 o pessoal metropolitabno (BCAÇ 1860, CCS + 3 companhias de quadrícula, 1 Pel Mort 1 Pel TRerc Daimler). E em 150 (4 pelotões) a companhia de milícia. (Todos os batalhões tinham agregadas a si companhias de milícia, pelo vamos fazer os cálculos seguintes tendo como divisor o valor 600, para simplificar.)

Transportes aéreos (Tite, Bissau, Jabadá, Fulacunda, São João, Empada) >

  • Passageiros transportados: 1068 militares | 209 civis;
  • Evacuações:  A=6; B=28; Y=10;
  • Frescos (peixe, frango, ovos...): 12 toneladas ( 20 kg "per capita");
  • Correio: Cartas: 2,5 t | Encomendas: 20 t (4,2 kg de cartas e aerogramas "per capita"; 33,3 kg de encomendas postais, "per capita");
  • Medicamentos: 3 t. (5 kg "per capita") (embora os medicamentpos também fossem distribuídas pelas milícias e a população civil).

Transportes marítimos (porto de Enxudé, por LDM e barcos civis): 

  • Combustíveis: 350 toneladas (583,3 kg, "per capita");
  • Artigos de cantina: 123 t  (72 t, carga grande; 51 t, carga pequena) (205 kg. "per capita": deve incluir bebidas: caixas de cerveja, uísque, etc.);
  • Munições: 31 t (51,7 kg. "per capita");
  • Géneros alimentícios (farinha, massas, batatas, etc.): 820 t (1366,7 kg. "per capita");
  • Rações de combate: 2,5 t (4,2 kg. "per capita");
  • Materiais de construção (ferro, madeira, cimento...): 475 t (791,7 kg. "per capita");
  • Material de aquartelamento: 4 t (6,7 kg. "per capita");
  • Material de transmissões: 2,5 t (4,2 kg. "per capita");
  • Material de guerra (armas, etc.): 3 t (5 kg. "per capita")
  • Sobresselentes para viaturas automóveis: 4 t (6,7 kg, "per capita")
  • C. A. [ Contabiliddae e Administração ?] 1 t (1,7 kg. "per capita")
  • Veículos automóveis + buldozzer: 13 t + 12 t (41,7 kg. "per capita").

Movimentação e transporte de terra, saibro e pedra > c. 80 mil toneladas (133,3 toneladas "per capita").


2. Comentário do editor LG:

Estávamos a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa. Na Guiné não se produzia nada, da cerveja aos medicamentos, do material de guerra ao material de escritório, dos materiais de construção aos genéros alimentícios, das armas às munições,  etc., vinha tudo de barco até Bissau. 

E depois de Bissau seguia até aos portos fluviais (Enxudé, Porto Gole,  Xime, Bambadinca, Bafatá..., no rio Geba, por exemplo), por navios da marinha (LDG e LDM) e barcos civis (os famosos "barcos turras"). E depois era preciso transportar, em morosas, desgastantes e perigiosas colunas logísticas, toda a carag até ao seu destino final...

No tempo de Spínola, com a implementação da política "Por uma Guiné Melhor", alongou-se e complexificou-se a cadeia logística, com o aumento exponencial de materiais de construção necessários ao BENG 447 para construir os "reordenamentos" (casas e equipamentos sociais, como escolas, capelas, mesquistas, mercados, labadouros, fontes...).

Estes números não batem certo com os calculados por Pedro Marquês dos Santos (**),  segundo o qual:

(i) cada militar, a nível de companhia, necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... 

(ii) o consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... 

(iii) e o consumo diário de víveres frescos "per capita" por dia seria de 520 gramas...

Temos de ter sempre muita cautela com o uso (e abuso) das médias aritméticas... Mas certos valores aqui apresentados podem-nos dar uma ideia aproximada das necessidades de consumo do "ventre" da guerra... (***)



Guiné > Carta da Província (1961) / Escalaq: 1/500 mil > Detalhe: Região de Quínara, Setor S1 (Tite) > Posição relativa de Tite, Enxudé, Jabadá, Fulacunda, São João e Bolama.


Fonte: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8578: BCAÇ 1860 (Tite, 1965/67): Balanço da actividade logística, em banda desenhada: 22.5 toneladas de cartas e encomendas, 3 t de medicamentos, 12 t de frescos, 820 t de géneros alimentícios, 123 t de artigos de cantina, 2.5 t de rações de combate, 31 t de munições... (Santos Oliveira)


(**) Vd. pposte de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

Guiné 61/74 - P26404: Fichas de unidade (37): BCAÇ 599 (Tite, 1963/65)

 


Cortesia do Portal UTW - Dos Veteranos
da Guerra do Ultramar
Ficha de unidade : 
BCAÇ 599 (Tite, 1963/65)


Batalhão de Caçadores n.º 599

Identificação: BCaç 599

Unidade Mob: RI 15 - Tomar

Cmdt: TCor Inf Carlos Barroso Hipólito | TCor Inf Francisco António da Costa Almeida

2ª Cmdt: Maj Inf Agostinho Dias da Gama

OInfOp/Adj: Cap Inf José Jaime Pinto Monroy Garcia

Cmdt CCS: Cap Inf Júlio Carlos Matias | Cap SGE António Lopes

Divisa: -

Partida: Embarque em 120ut63; desembarque em 180ut63 | Regresso: Embarque em 28Ag065

Síntese da Actividade Operacional

Foi constituído e organizado a partir do BCaç 237, do qual transitaram os elementos de recompletamento. Era apenas composto de Comando e CCS, não dispondo de subunidades operacionais orgânicas.

Em 180ut63, sucedendo ao BCaç 237, assumiu a responsabilidade do Sector G, a partir de 11Jan65 designado por Sector SI, com a sede em Tite e abrangendo os subsectores de Tite, S.João e Fulacunda.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, de reconhecimento, batidas, emboscadas e golpes de mão, em especial nas regiões de Nova Sintra, S. João, Uaná e Gampará e ainda a acção de recuperação das populações, sua segurança e protecção, contra o insistente esforço e pressão do inimigo.

Pelos efectivos envolvidos e resultados obtidos, destacam-se a operação"Alvor", de 23 a 26Abr64, na península de Gampará,  e a operação "Braçal", em 30Jan65, para ocupação de Jabadá e onde o inimigo exerceu inicialmente forte pressão.

Em 24Ag065, foi rendido pelo BCaç 1860, após substituição parcelar do seu pessoal efectuada a partir de 3Mai65 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade. Tem "Resumo" da actividade do BCaç 237/BCaç 599 (Mai63 a Mai65) (Caixa nº  124 - 2ª Div/ 4ª Sec., do AHM). 


Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 55.

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25702: Fichas de unidade (36): CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)

Guiné 61/74 - P26403: Humor de caserna (98): Quando o IN... jabadava!... Até que o goês e pacato alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... (Rui A. Ferreira, Sá da Bandeira, 1943 - Viseu, 2022)


1. O Rui Alexandrino Ferreira (Sá da Bandeira, Angola, hoje Lubango, 1943-Viseu, 2022), ten cor inf ref, duas comissões no CTIG, a última como cmdt da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, jan 71 / set 72). 

Da primeira vez, esteve como alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67). Foi um grande operacional, e também um talentoso escritor, tendo-nos deixado três livros de memórias. Angolano,  adoptou a cidade de Viseu, depois do 25 de Abril,  para viver, amar, escrever e morrer (a sua última obra, de 2017, tem por justamente por título "A caminho de Viseu - Memórias").

Gostava de pregar partidas, e era um bom contador de histórias.


Do seu segundo livro ("Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014), vamos publicar duas histórias sobre Jababá (um dos subsetores do setor S1: Tite, Jabadá, Fulacunda, São João) , em dois postes separados. 

poucas referências no nosso blogue a Jababá (pouco mais de 3 dezenas), na região de Quínara, na margem esquerda do Rio Geba, um aquartelamento que se via quando se navegava no rio Geba, de Bissau para o Xime ou vice-versa (quer no "barco turra", quer em LDG).

A história da reconquista da Ponta de Jabadá en 29/1/1965, já foi aqui contada pelo Gonçalo Inocentes, nosso grão-tabanqueiro nº  810. Até então o PAIGC era "rei e senhor", impondo ali o terror à navegação no Geba.

Pelas nossas contas, esta história com o "alferes Basílio" deve-se ter passado em meados de 1965, ao tempo do BCAÇ 599 (Tite) e com o Pel Mort 912 a guarnecer Jabadá, reocupada após a Op Braçal. (No entanto, ao tempo do nosso camarada Santos Oliveira, ex-fur mil do Pel Mort 912, o comandante seria o alferes Rodrigues, desconhecendo nós o seu primeiro nome; mas Basílio também pode ser um pseudónimo.)

 

Quando o IN... jabava!... Até que o goês e pacato  alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... 


por Rui A. Ferreira (1943-2022)



Jabadá era uma guarnição debruçada sobre o rio Geba. Organicamente dependia do batalhão de Tite e era atacada constantemente, de tal forma que, quando se queria dizer que o IN tinha atacado  Jabadá, se dizia:

− O IN... jabadou!

O alferes Basílio era um moço calmo e sereno, como aliás o são a maioria dos indivíduos com tendência para engordar. Comandava o pelotão de morteiros que ocupava Jabadá e que era na altura a única tropa ali presente.

Farto de ter de aturar  ataques sucessivos, um belo dia, este tranquilo goês, abdicando da sesta, que era prática e unanimemente por todos cumprida (guerrilheiros do IN idem idem, aspas aspas), disfarçou-se a si e a parte do seu grupo, com roupas e artefactos do IN, saiu rapidamente do aquartelamento, entrou por uma casa de mato dos guerrilheiros, eliminou uma série deles e voltou o mais rapidamente que conseguiu para Jabadá.

Continuou a ser atacado, mas agora já sabia a razão porque o faziam.

Fonte: Excertos de  Rui Alexandrino Ferreira, "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014, pág. 346.


( Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, título: LG)
 
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domingo, 19 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26402: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (2): "se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais"... (Luís Graça)

Luís Graça
1. Houve vários casos, no TO da Guiné (e também em Angola e Moçambique), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, granada, mina ou armadilha, etc, ocorridos entre as NT, e que originaram baixas mortais (e feridos graves), tendo invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo" (*).

Precisamos que os nossos leitores, e nomeadamente os antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné, partilhem esses casos.

Interessei-me, em tempos, noutra encarnação, na minha vida académica, pelo tema dos "acidentes de trabalho" (a par das doenças profissionais e das doenças relacionadas com o trabalho)... Aliás fiz o meu doutoramento em saúde pública, na área de especialização em promoção da saúde no trabalho...

Na época (anos 80 do século passado, estávamos nós a prepararmo-nos para entrar no "clube dos ricos", a então CEE...),  ainda tinha muita aceitação em termos de senso comum a teoria do "blaming the victim": a vítima é que é culpada, até prova em contrário... Se é "erro humano" eu não pago, diz o empregador, diz a seguradora (pública ou privada)...

Na maior parte dos casos, o acidente (de trabalho, de lazer, de viação, de comboio, de aviação, de pesca, etc.) era devido a "erro humano" (o "operador"), e só muito acessoriamente a "falha técnica" (a "máquina").

Era/é uma teoria que dava/ dá jeito para a gente (a começar pelo Estado, os empregadores, as seguradoras...) sacudir a água do capote: 

  • ah!, não usava o capacete, os óculos de proteção, os auriculares, as botas de biqueira de aço, o famoso EPI...obrigatório por lei; 
  • ah!, era imigrante, não falava português;
  • ah!, era fumador;
  • Ah!, era epilético, ou tinha vertigens, não devia trabalhar em alturas:
  • ah!, era muçulmano, estava na Ramadão, não comia de dia, estava fraco; 
  • ah!, 'tava com os copos, ao almoço mete-lhe uns bagaços;
  • ah!, 'tava a abrir valas, viu a "garota de Ipanema", de minissaia, sem cuequinha, e ficou soterrado por um desabamento de terras, etc.

Ora eu defendia na altura a abordagem sociotécnica integrada. O acidente é sempre de origem multifactorial (depende de uma multiplicidade de factores de natureza física, química, biológica, psicossocial, organizacional, cultural), pelo que não se pode dissociar o "operador" e a "máquina", o "erro humano" e a "falha técnica, o indivíduo e o sistema, o pescador, a pesca, o barco, os apetrechos de pesca, o mar....

Tendencialmente os sistemas socioténicos, abertos, complexos, integrados (do avião à fábrica, da unidade militar à equipa de futebol) devem aproximar-se do zero erro... O erro pode ter maiores ou menores custos (diretos, indiretos e ocultos) e nalguns casos catastróficos como a queda de um avião, um naufrágio de um barco de pesca, o descarrilamento de um comboio, a queda de um guindaste, etc,...).

Nessa medida, o acidente, todo o acidente pode ser minimizado e prevenido, melhorando ou redesenhando o "sistema sociotécnico de trabalho"... O acidente é sempre, nessa medida, uma probabilidade estatística conhecida...

Os "acidentes com armas de fogo" podem ser equiparados aos "acidentes de trabalho", pelo menos na suas causas e consequências.... Se eu não tenho armas com uma alta fiabilidade e mecanismos de segurança, nem atiradores devidamente selecionados e altamente formados, treinados, competentes (e com boa saúde física e mental), corro o risco de ter um acidente... Isto é válido para todas as situações de trabalho ou atividade humana, no ar, no mar ou em terra, em paz e em guerra, etc.

O uso do álcool como droga "legal", socialmente aceite,  tolerada e até incentivada pelo Exército no nosso tempo, no teatro de operações...) pode também ajudar a explicar casos como o do infeliz Cavaco (que provocou uma tragédia).
 
Centrando-nos neste caso: o Cavaco, apurado para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialidade (era soldado condutor auto, deve ter feito testes psicotécnicos, era portador legal de carta de condução)... Bolas, não era um "básico qualquer" (!)... Mas não fez (nem nenhum de nós fez) testes de avaliação psicológica...

Dir-me-ão: mas era de todo impossível, com uma guerra como aquela em três frentes, a milhares de quilómetros de casa,  mesmo sendo considerada de "baixa intensidade!.. O país que mal conseguia recrutar, instruir, financiar, mobilizar, alimentar, municiar, manter e refrescar o então "maior exército do mundo" (à nossa escala ou dimensão), podia lá dar-se a esse luxo!... 

Bolas, mobilizámos, só na metrópole, 800 mil homens. Um milhão, com os não metropolitanos (ou de recrutamento local). Mais de um milhão, com que os que foram recrutados, e treinados mas que ficaram aqui na metrópole...a tomar conta do quintal.

E depois nem havia psicólogos!...(E os psiquiatras eram só "p'rós malucos"!)... Mas havia capelães, mesmo que a malta já não fosse à missa... E muito menos havia controlo do álcool (a não ser por via do autocontrolo e do medo do RDM ..) para certas funções, cargos ou especialidades...

E afinal de contas "só" tivemos  11,5% (entre as tropas metropolitanas) de baixas mortais por "acidente com arma de fogo" podendo aqui incluires, se quiseres, uns tantos casos, "que se contam pelos dedos" (!), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", e coisas do género sem significado estatístico)... 

Depois dos "ferimentos em combate (58,5%), a "doença" matou mais (12,9%)...E se juntares  o "acidente de viação" (7,6%), o "afogamento" (6,3%) e "outras causas (3,1%)  tens a  segunda causa de morte (17,0%) entre as tropas metropolitanas na Guiné (num total de 2177 baixas mortais, por todas as causas). (*)

Pois é, falta-nos investigação de arquivo: só consultando os processos individuais, as certidões de óbito, os processos de averiguações do acidente, etc., é que poderíamos ter uma ideia mais aproximada destes casos, e do seu contexto, etc.

 Tarefa ciclópica, para daqui a outros 50 anos: a tropa não te permite a consulta destes processos individuais em arquivo  a não ser com autorização (escrita) dos familiares mais próximos...(E todos os casos ainda podem ser dolorosos,  havendo alguns muito delicados: indícios ou provas  de suicídio ou homicídio, etc ..).

Mas tudo isto foi passado num "outro país" e  numa época em que a teoria da "carne para canhão" também era muito "popular" e aceite, com resignação, fatalismo ou  naturalidade, não só pelo "povo" como pelas "elites", políticas, militares, sociais e económicas... (e até religiosas).

O busílis da questão é que só tarde e mais horas é que os "altos crânios" desse tal país onde nasceste,  se  deram conta da crescente rarefação dos recursos humanos qualificados, necessários para alimentar uma guerra de longa duração (e que só poderia ter uma solução política...), a começar pelos comandantes operacionais... (As Academias Militares são bonitas, sim, senhor, mas  só em tempo de paz...).

Sabemos no que deu "fechar os olhos, os ouvidos e a boca" face à realidade (gritante), a de que, mais tarde ou mais cedo, a coisa ia dar m*rda...

Moral da história: se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais...
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966