
Foto da autoria do fotógrafo Álvaro Geraldo. Imagem gentilmente cedida por Magalhães Ribeiro (2006), nosso camarada e amigo da Tabanca de Matosinhos, e editada por nós (L.G.)

Caro Luís,
Perdoa o laconismo da mensagem que te enviei hoje à noite. Tinha que sair e não queria deixar-te sem resposta. Agora tenho mais tempo para te contar o que tenho feito.
Como é do teu conhecimento, tenho entre mãos uma obra com muito interesse, as Memórias do Amadu Djaló. São quatro maços A4, de um lado e doutro, escritos pela mão dele, em letra grande. Do mal o menos. Sempre seguido, nada de vírgulas, pontos, não tem nada. A escrita é de um negro com muito pouca instrução escolar, mas é uma escrita de alma grande, com sabedoria, senso, inteligência.
Vê-lo a descrever as peripécias em que se envolveu é um descobrimento.
A vida dele na cidade natal, Bafatá. Família, amigos.
As idas e vindas, feito djila, ao Senegal.
As hesitações nas incorporações militares.
Abertura de uma banca negocial no Mercado de Bafatá.
A entrada na tropa, ainda antes da abertura oficial das hostilidades.
As deambulações, como condutor por Cacine, Bedanda, Catió, Cufar, Farim, entre 62 e 64.
A entrada para os Comandos do saraiva, em 1964.
A história incrível da mina em Madina [do Boé], que matou toda a malta que vinha na 2º e última viatura (Uma tarde inteira, à beira da estrada para Madina, a guardar os mortos e a assistir ao morre este, agora aquele, atè à noite, quando chegou o socorro).
A odisseia de uma ida ao Como, e a teimosia do Saraiva em não querer sair dali, sem trazer uma MP que tinha sido usada contra eles. Obrigou-os a voltar a um acampamento em chamas, contra todas a regras do bom senso e da prudência. Com as consequências que se seguiram, foram todos atingidos. Dos 10 que voltaram ao acampamento, um morreu e todos os outros ficaram feridos.
A ida para o Gr Cmds do Rainha e a participação num golpe de mão, em que também este escriba entrou, na fronteira com o Senegal.
A 1ª operação helitransportada a Jabadá, de reforço ao meu Grupo. E nova teimosia, desta vez do Rainha, numa ida ao Como, para vingar as baixas que o Grupo tinha tido no AA.
O regresso à 4ª Rep, à sempre eterna casa-mãe do Amadu.
A ordem de Spínola para todos os cmds guineense regressarem a Bissau, para fazerem novo curso para a constituição da 1ª CCmds Africanos.
As primeiras operações com o João Bacar. A morte deste e o encontro da 1º linha do João Bacar no HM frente ao corpo dele coberto por um lençol. A chegada do Spínola e o levantamento do lençol.
A constituição do BCCmds com o Bruno... Fá Mandinga, Bambadinca...
As operações a Morés, sob o comando do Zacarias e a terrível derrota, talvez a maior de todas que os Cmds tiveram em toda a guerra na Guiné, com um saldo completamemnte negativo, 5 mortos e um nº incontável de feridos. Uma azelhice, fruto da fanfarronice do Saiheg, que não acabou pior porque o Bruno foi para lá com lobos maus e quase toda a esquadrilha dos AL III para os tirar de lá de qualquer maneira e talvez também porque o IN estava saciado.
A outra e mais outra ida a Morés, vingança sobre vingança.
Os estranhos preparativos no mar e na ilha de Soga e a surpresa da missão.
A odisseia das recusas, as hesitações do Cmdt BCmds, as intervenções do Alpoím Calvão e do próprio Spínola.
A mudança das fardas e das armas, a partida para uma Conacri em fim de semana e o episódio de regressarem apenas 15 dias depois a Bissau, com eles em Soga, sem saberem o que fazer, e aparentemente também sem os superiores saberem como deveriam proceder com eles.
Kumbamory, operações atrás de operações...
O 25 de Abril, a entrega das armas, a vida civil sem amigos, as prisões dos camaradas, os fuzilamentos. O caso dos 90 mortos em Farim, a prisão dele e a escapadela incrivel.
Bissau em 1975, uma cidade triste, com Luís Cabral, os recolheres obrigatórios, as denúncias, a falta de arroz, a falta de tudo.
O golpe de Estado do Nino, o renascer de uma esperança, a desilusão e a vinda para Portugal.
Uma obra que me empolga. Estou totalmente absorvido nesta história. Dividi o meu trabalho em três fases:
1. Passagem daqueles caracteres todos para o computador, a correr (Já vou ficando com uma ideia do que vou fazer a seguir). Penso que é o mais moroso.
2. Redacção da obra com o estilo dele, africano. Perde interesse se não for assim. Eliminação de capítulos e adição de outro/s com factos que, ele, ou omite deliberadmente, ou resolveu abreviar, caso de Conacri.
3. Redacção definitiva para entrega à Associação de Cmds para publicação.
Estou a chegar ao fim da 1ª fase. Estou cansado. Mas é uma obra que me está a dar muito gosto fazer.
Quanto ao nosso, que tenho perdido estes dias, conto retomar o trabalho embora com alguma parcimónia, enquanto não acabar o trabalho do Amadu. Espero e agradeço que me compreendas.
Um abraço grande para ti e para o Carlos
vb
________
Nota de L.G.:
(*) 25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4076: Os nossos camaradas guineenses (4): Amadu Djaló, com marcas no corpo e na alma (Virgínio Briote)
3 comentários:
Assinem, se assim o entenderem:
Petição para a
Candidatura de Henrique Rosa à presidência da República da Guiné-Bissau:
http://www.peticao.com.pt/henrique-rosa
"Bissau em 1975, uma cidade triste, com Luis Cabral, os recolheres obrigatórios, as denuncias, a falta de arroz, a falta de tudo", diz AMADU DJALÓ,
e atrevo-me a relatar minha interpretação desse periodo de Luis Cabral: O PAIGC, era visto pelo povo como "um corpo estranho e envenenado, enquistado na Guiné".
E interpretei sempre desde 1961, que os "nossos" povos africanos, adivinhavam tudo isto.
Daí, eu pessoalmente nunca ter misturado a nossa guerra com politiquices, e daí viver de "alma lavada" e consciência tranquila.
É a única maneira que tenho de honrar quem quiz resistir...ao lado dos negros AMADÚ´s das ex-colónias.
Antº Rosinha
Camaradas
O primeiro comentário, afinal, é uma acção prosélita para uma candidatura à presidência da república da Guiné. Não me parece correcto o aproveitamento, nem o método de tentar angariar subscrições entre pessoas que não o conhecem.
Eu conheço-o, relativamente, embora. Trata-se uma pessoa do maior crédito, nascido de pai português e mãe guineense, posso afirmar tratar-se de um africano dos quatro costados, com grande amor pela sua terra.
Infelizmente, a Guiné-Bissau está a anos-luz da integridade, da cultura,e do sentido cívico do Henrique. A guiné é hoje um "farwest", sem rei nem roque, sem instituições, sem respeito, sem crédito politico, a afundar-se na pobreza, cenário em que os próximos dirigentes, sem a protecção internacional, correm para a morte, ou lideram a falcatrua.
Não desejo isso para o Henrique.
Abraços fraternos
José Dinis
Enviar um comentário