quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (152): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o  Mário [Rodrigues]  Soares, comerciante de Pirada e  "agente duplo", segundo era voz corrente; (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o célebre comerciante  Mário Soares (este em primeiro plano: dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC, ou pelo menos, as autoridades senegalesas).

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O célebre comerciante de Pirada, Mário [Rodrigues]  Soares era uma figura "intrigante"... Conviveu com vários camaradas nossos, ao longo da guerra, como o António Pinto (*) ou o Carlos Geraldes(**)... Dizia-se que tinha relações privilegiadas com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando para a PIDE/DGS e para o PAIGC. Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra. 

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados num posição difícil no interior da Guiné.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que  desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau.  Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, colaborador íntimo de Spínola,  de que a seguir reproduzimos um excerto; por lapso, chama-lhe António Mário Soares)...

Não sei o que é feito  dele, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal  anos, a avaliar pelas fotos acima reproduzidas,  Li algures (, já não posso precisar onde...) que ficou na Guiné, depois da independência, mas terá saído do país ainda no tempo do Luís Cabral, em novembro de 1975.  Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Alguém dos nossos leitores ainda se lembra dele, do  Mário Soares ? Tem fotos e histórias dele ?

O seu nome era referido com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso  blogue, em 2009 (**).

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Vão tornar-se amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos: "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964). E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN.

Estamos a reler as suas cartas, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, prestável, com um vasto capital de  relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal). Nesta I parte, selecionámos excertos das cartas para a família, do período de Outubro de 1964 a março de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos", pseudónimo de Mário Soares.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comervciamte  António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo":  informador da PIDE/DGS,  e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro,  comerciante de Bambadinca,  que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares terá ficado na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975. (***)

A CART 676 foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco.


1. Depoimento do embaixador João Diogo  Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974),  tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC. Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas [António] Mário Soares um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro. (...) (****)


2. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se tornou amigo do Mário Soares e visita frequente da sua casa... Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares:


Parte I (outubro de 1964 - março de 1965) (*****)

Pirada, 15 de outubro de 1964


(...) Segunda-feira de manhã partimos para Pirada. (...)

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.

(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem) (...)

(...) Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos. (...)

(...) Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.

É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.


É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. 

Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade. Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados. (...)

Pirada, 1 de dezembro de 1964


(...) Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.

Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

Bajocunda, 8 de fevereiro de 1965

(...) Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família, (...)

(...) O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.

Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23h00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.
Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.

Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.  (...)

Bajocunda, 22 de fevereiro de  1965


(...) O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá [, a Pirada,]  comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido. (...)


Bajocunda  1 de março de 1965


(...) Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). 

O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora. Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo. (...)


Pirada, 15 de março de 1965


Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. 

Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.

Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso. (...)


Pirada, 21 de março de 1965



Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.

Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.

Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!

E quando o Manel Jaquim [, o homem do cinema ambulante,]por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras. (...)

[Seleção, fixação, revisão de texto, e realces a negrito e a amarelo: LG]

(Continua)

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28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

Guiné 61/74 - P20857: Parabéns a você (1787): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20845: Parabéns a você (1786): Francisco Alberto Santiago, ex-1.º Cabo TRMS do BART 3873 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 14 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto

1. Em mensagem do dia 9 de Abril de 2020, o nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70), enviou-nos parte das suas memórias, que esperamos tenham seguimento.

Boa Noite Carlos Vinhal,

Olá Tabanca Grande!

Aqui vai mais um trabalho meu para a Tabanca mas, se achares que não não tem interesse então mete-o na gaveta.

Aproveitando este tempo de estar em casa para fazer alguns trabalhos e são já vários e não vou parar.
Apelo a todos os Tertulianos para que se cuidem e, não saiam de casa pois esta guerra está bem pior de que a que tivemos na Guiné.

Sem mais de momento,

Abraços para os Chefes de Tabanca, estendendo-se os mesmos a todos os Tertulianos
Albino Silva

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Depois de fazer a Recruta no RI8 em Braga, fui fazer a Especialidade no Regimento de Serviço de Saúde em Coimbra, seguindo depois para Santa Margarida

1 - MOBILIZADO PARA A GUINÉ

Em 18 de Fevereiro de 1968 fui mobilizado para a Guiné pelo Batalhão de Caçadores N.º 10. Fui Incorporado numa Companhia de Comandos e Serviços. E lá sigo então para Santa Margarida onde vou formar Batalhão. Em Santa Margarida estive até 30 de Abril de 1968. Durante esse tempo, chegou então uma Ordem para irmos gozar 10 dias de Licença antes de embarcarmos para a Guiné.

Aproveitados que foram esses 10 dias para estar junto da família e, fazer uns trabalhitos com o fim de angariar alguns escudos porque me iam fazer falta depois na Guiné.

Nestes dias de licença apenas disse a alguns amigos que ia para a Guiné muito embora a família desconfiasse porque até ali nunca tinha tido nenhuma licença e apenas cinco fins de semana na totalidade.

No último dia por insistência da família lá disse que ia para a Guiné que a todos deixei de lágrimas nos olhos e eu também pois ia para a guerra.

No quartel em Santa Margarida, preparávamos tudo para a partida para Lisboa. O Batalhão 2845 estava praticamente formado. Era constituído pelas Companhias: CCS, à qual pertencia; 2366; 2367 e 2368.

30 de Abril, eram 23 horas quando abandonamos o Quartel e em marcha seguimos para o apeadeiro dos Caminhos de Ferro e à meia-noite entramos no comboio que deixou aquele apeadeiro há uma hora da noite com destino a Lisboa onde chegamos às 7 da manhã. Ao cais Marítimo de Alcântara era já 1 de Maio, uma quarta-feira.

Pelas 9h00 tivemos uma formatura e após cerca de 10 minutos de incentivo por um alto Oficial, deixamos a formatura, cercados pelas Senhoras e Meninas do Movimento Nacional Feminino que a todos iam distribuindo uns maços de cigarros, lâminas e aerogramas.

Eram 10h00 quando começamos a embarcar no Navio Niassa.

Juntaram-se a nós no mesmo barco, um outro Batalhão com o mesmo destino, Guiné. Chegou o momento mais difícil que era a partida, eram 11h30 e pouco depois o Niassa deixava o Cais ao mesmo tempo que familiares, amigos e muita gente gritavam e acenavam com lenços brancos que, a todos nós nos comoviam. Eu não saí do porão onde tinha a minha bagagem e cama, para não assistir aquele momento tão triste.

Era meio-dia e o navio apitava já em direção ao Oceano e pouco depois deixamos de ver aquela multidão que no Cais de Alcântara se despedia de nós. No navio poucos eram os que tinham vontade de falar, notando-se tristeza em nossos rostos. Com o Niassa navegando logo apareceram enjoados por todos os cantos, não tendo eu mãos a medir para dar assistência, já que nunca enjoei e porque não era a primeira vez que eu navegava.

Uma hora da tarde toca um sino no Niassa, pois era a chamada para o almoço, mas, poucos eram aqueles que se seguravam de pé, e com as senhas deles eu me deslocava ao refeitório para levantar a fruta, que normalmente eram laranjas, para dar aos que iam enjoados.
Foram momentos difíceis por alguns dias.

O Nissa ia sulcando os mares e ao fim de quatro dias já se sentia aquele calor intenso de África, e a correria ao bar era constante, pois eram a cerveja, coca cola e laranjadas para matar a sede. Ao fim cinco dias e meio chegamos à Guiné. O Niassa atracou ao largo de Bissau, era o dia 6 de Maio.
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O Navio TT Niassa atracado em Bissau
Foto: ex-Alf Mil António Sá Fernandes


2 - DESTINO A TEIXEIRA PINTO

Com o Niassa atracado ao largo de Bissau, desembarcaram as companhias operacionais, 2367 e a 2368, enquanto que a Companhia 2366 e a CCS entramos na LDG Alfange, que juntamente com aqueles Fuzileiros começamos a subir rio acima era então 01h00 da noite.

Todos caladinhos mas de certo modo tranquilos, visto que confiávamos naqueles Fuzileiros já com calo daquela guerra. Durante a noite e a viagem o calor era muito e o silêncio era profundo e ninguém pregava olho.

Eram sete horas da manhã do dia 7 de Maio quando finalmente chegamos a Teixeira Pinto.
Tivemos a informação dada por um Furriel que a Companhia 2367 iria seguir de Bissau para Olossato e a 2368 para Bissorã, enquanto que a 2366 iria atuar na zona de Jolmete, 28 dias depois de estar em Teixeira Pinto.

O Aquartelamento em Teixeira Pinto com cerca de 400 metros por aproximadamente 200 de largura, era vedado com arame farpado em todo o redor e ficava a cerca de 600 metros do cais. Em viaturas seguimos para o Quartel onde fomos recebidos pelos militares lá aquartelados que nos iam gozando chamando-nos Periquitos enquanto algumas crianças e adolescentes nos iam atirando uns grãos de mancarra (amendoim) já descascado e assim fomos durante algum tempo os Periquitos, a conviver com a velhice que por lá andava.

Teixeira Pinto
Foto: ex-Alf Mil Cav Francisco Gamelas

Por ordem do Comandante de Companhia, Capitão Queiroz, que nos tinha mandado formar, foram distribuídas Rações de Combate, pois só no dia seguinte iríamos ter refeições quentes. A caserna era um antigo armazém de amendoim de uma casa comercial, com as camas de um lado e de outro onde cada um escolheu a sua mas, como o meu serviço era na Enfermaria seria lá que eu iria ter a minha a minha cama.

Antes de começarmos a fazer serviços dei uma volta ao arame farpado e vi que tinha nove postos de serviço. Do posto 1 (Porta de armas) ao 4, era a Avenida e depois Campo de Futebol e Tabancas, e depois até ao Posto 9 era a Bolanha.

Ao terceiro dia lá começamos a fazer serviços, que eram bastantes, já que eram assegurados pela CCS. guardas ao quartel, reforços, rondas, guardas ao Fortim que ficava ao fundo da Avenida na Rotunda, serviços de guarda à Ponte Alferes Nunes, patrulhas de reconhecimento, depois era a CCS que fornecia Condutores, Sapadores e pessoal do Serviço de Saúde para as Escoltas de reabastecimento de géneros alimentares, água, material de construção e munições.

Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.

O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.

Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.

Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313 que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368 do meu Batalhão e também em operações com este pelotão.

Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Acão Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió.

Sinceramente, gostava de ir fazer esse trabalho porque era minha Especialidade e dar consulta aquele pessoal que em filas tão longas dava para os perder de vista. Por vezes começava a atender a partir das 8h30 e terminava quando mais ninguém estava na fila, que embora tivesse sido grande, não levava muito tempo a atender aquele pessoal já que, quando os primeiros que se queixavam diziam que estavam fracos, e eu como dava uns comprimidos vitaminados que eram um pouco adocicados, e então eles passavam palavra uns aos outros e todos se queixavam do mesmo e, por isso era rápido. Passava mais tempo, sim, quando havia alguns com feridas para tratar. Ao meu lado estava sempre pessoal armado, e até o Alferes ajudava. Da parte da tarde ia fazer atendimento nas Tabancas a pessoas acamadas e doentes sem se poderem levantar.

Era nessas visitas à Tabanca que me ofereciam frangos e laranjas, e até cheguei a levar depois para o Quartel aos 20 Frangos que deles faziam umas churrascadas mas sobravam sempre uns 15 frangos que eu não podia guardar porque ou seriam roubados ou morriam à fome.

Então fora do Quartel havia um libanês, de seu nome Viriato, que tinha uma espécie de Restaurante e era a ele que eu oferecia os frangos pois muitas vezes me oferecia uma refeição desde que começou a frequentar a Enfermaria.

Chegava a noite e então o Alferes escolhia um local para pernoitarmos, e eu não concordando com ele dizia-lhe:
- Meu Alferes, não viu aquele pessoal todo em fila para serem atendidos?... Pois tenho a certeza que muitos dos homens que lá estavam não era doentes e até eram bem possantes, mas estavam lá apenas para espiarem, basta olhar para as Tabancas e ver que eles nos seguiam na direção que levávamos.

Ele, o Alferes ao princípio não estava muito de acordo mas depois percebeu, quando eu lhe disse que tinha estado no norte de Angola quando se deram os massacres [de 1961], e que tinha alguma vivência de África. Disse-lhe ainda que eles nos viram seguir aquela direção e o melhor que devíamos fazer era, no cair da noite, seguir outro itinerário para pernoitarmos e assim foi.

Passamos então a noite entre arbustos e arvoredo, e manhã cedo levantamos sem que tivesse havido qualquer tipo de problema. Seguimos o itinerário que havíamos deixado no dia de trás, e cerca de 2 quilómetros e já perto do rio, encontramos na picada algumas munições e as marcas na terra ainda frescas do calçado que eles usavam.

Aí o Alferes com um bom abraço agradeceu-me por o ter convencido a ter mudado o rumo, e a partir daquele dia sempre que saíam do quartel em serviço eu era requisitado à CCS para sair com eles.

(Continua)
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Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regime


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade de Lisboa).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira. Em 1569, no reinado de Dom Sebastião, por por acasião da "Grande Peste",   a cidade perde um terço dos seus habitantes. Era então uma das maiores cidades da Europa.


Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passa de uma montureira em que a peste é endémica. A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas "Centuriae", não é apenas a do conhecido "postal ilustrado", publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572). Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas e palácios bem como das centenas das suas igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias.





Como diz Ricardo Jorge, na sua biografia de Amato Lusitano (s/d. 170/171), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais. Na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre". E acrescenta: "Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt ".


Até aos séc. XVI/XVII, há três grandes
Luís Graça,
docente jubilado da ENSP/NOVA
 epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. No séc. XVIII,o maior flagelo será a varíola. E, depois com a industrialização, o tifo, a febre amarela,  a cólera, a tuberculose, passam a ser os novos problemas de saúde pública, a par dos acidentes de trabalho. 


Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa.


São excertos de textos que estamos a rever e a atualizar, mas também a aligeirar, retirando por exemplo  maior parte das citações e referências bibliográficas, descabidas num blogue como este. Depois da lepra  e da peste, duas epidemias que continuam no nosso imaginário, depois da peste negra (1348-1253) ,  o maior desastre demográfico da Europa, o Ocidente cristão continua assolado por um um ciclo de pestes que se prolonga até ao séc. XVII. Importa pereceber melhor as medidas que foram sendo tomadas pelos nossos embrionários sistemas de saúde.


1. "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus nos Livre!)" (1695)


As preocupações com a defesa da saúde pública não são exclusivas do Estado Moderno, ou seja, dos últimos dois séculos, já vêm de muito mais longe. Em todo o caso, as medidas propostas tanto pelo poder central e pelos municípios como pelos próprios médicos que se interessaram pela higiene (sinónimo de saúde pública até aos princípios do séc. XX), sempre foram avulsas, inconsequentes e, em grande parte, ditadas pelo terror que inspiravam as cíclicas epidemias.por ex., rarefacção da mão de obra nos campos e subida dos salários) e nos reinados seguintes. 

O curto reinado de D. Pedro I (que sobe ao trono em 1357 e morre em 1367), é marcado pelos efeitos da terrível crise demográfica, sanitária, social e económica em que está mergulhado o reino de Portugal bem como o resto da Europa. 

Mas, por outro lado, essa conjuntura vai ser propícia ao reforço do centralismo laico e estatal, de que D. Dinis fora o arquitecto. Para fazer face aos novos surtos de peste que se registam até 1365, e para impedir o alastramento da doença, são tomadas sobretudo medidas repressivas, incluindo a perseguição às feiticeiras e a discriminação contra os judeus.

A partir das três principais fontes que compulsou (Leis Extravagantes, de Duarte Nunes de Leão, princípios do Séc. XVII; Colecção dos Regimentos por Que se Governa a Repartição de Saúde do Reino, 1819; Elementos para a História do Municipio de Lisboa, de E. Freire de Oliveira, 1881), o grande historiógrafo da medicina portuguesa, Maximiano Lemos  (Régua, 1860- Porto, 1923)  inventariou e analisou sumariamente o essencial da legislação sanitarista que foi promulgada desde o início do Séc. XVI ao Séc.XVIII (
Lemos, 1991. 155-159).

Sobre a natureza desta legislação, o nosso ilustre historiógrafo da medicina portuguesa começa, aliás, por fazer uma distinção entre:

(i) aquela que se reporta à "profilaxia das epidemias" (sic), em geral emanada pelo poder régio;

(ii) e a que se refere a "medidas de higiene local", em princípio da iniciativa dos municípios (ou, pelo menos, dos principais municípios do Reino, com destaque para o de Lisboa).

O conceito de prevenção das doenças transmissíveis ou infectocontagiosas era, obviamente, desconhecido na época, embora já fosse intuitivo para os médicos de formação arábico-galénica. A sua fundamentação científica, como se sabe, é recente, remontando ao triunfo da bacteriologia, com Pasteur e Koch,  na segunda metade do Séc. XIX.
 

Medidas que hoje são óbvias,como a higienização das mãos e das superfícies, a desinfeção, a esterilização, enfim, a antissepsia e a assepia, eram complemente estranhas à medicina e aos médicos... A teoria miasmática das doenças e a teoria da geração espontânea eram então dominantes... Foi preciso que surgisse a 1ª revolução científica e técnica no campo da medicina, em meados do sec. XIX para que estas teorias se tornassem, pouco a pouco, obsoletas.

O que os tratadistas da higiene, enquanto ramo do conhecimento e da prática médicas, podiam até aí propor não era mais do que um conjunto de medidas elementares com vista não só a erradicar a doença ou eliminar as suas causas (atribuídas a estranhos miasmas ou à conjugação dos planetas, em particular Saturno, Júpiter e Marte) como sobretudo a minimizar, tanto quanto possível, os seus efeitos devastadores. 

Para se ter uma ideia desses efeitos, basta referir que,  durante a Grande Peste de Lisboa , que durou de julho de 1569 à primavera de 1570, terão morrido 50/60  mil pessoas (Roque, 1982). Tudo indica que tenha sido trazida por mercadores vindos de Veneza, dando razão mais uma vez ao provérbio Mercator, ergo pestiferus (Sou mercador, logo portador de peste). De qualquer modo, ficou na memória dos portugueses que grafaran a expressão e no passado usavam o provérbio "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa", quando precisavam de um termo de comparação para uma grande mortandade.

A natureza endémica ou epidémica da doenças então mais prevalentes, aliada ao total desconhecimento da sua etiologia e à total ineficácia terapêutica, não dava aos médicos grandes alternativas de acção. 

A via da repressão, com as suas diversas variantes (v.g., isolamento, segregação, internamento forçado ou abandono puro e simples dos doentes), é o traço comum do sanitarismo até ao final do Antigo Regime. O termo "quarentena" só aparece nas línguas modernas (por ex., em inglês) no princípio do sec. XVII); o cordão sanitário (, do francês, "cordon sanitaire", é um terno de meados do séc. XIX.

A pouco e pouco vai-se criando um corpo de administração de saúde (provedor-mor de saúde e seus ajudantes), fazendo parte integrante do aparelho de Estado.

Um dos regimentos de saúde mais antigos que se conhece é o alvará de 1506, no reinado de D. Manuel I, estipulando violentas medidas de repressão para quem, acometido de "peste" (nome comum para muitas das doenças transmissíveis da época), entrasse na cidade ou para quem mandasse para a cidade algum "empestado": multas, penas como çoites em público, ou degredo na ilha de S.Tomé. Outras providências: marcação, com sinais especiais, das casas com doentes empestados; criação da futura "Casa da Saúde", no Vale de Alcântara, em Lisboa; enterramentos em cemitérios especiais; fecho das casas de prostituição ao sol posto, etc.

Era compreensível o terror que as epidemias (e sobretudo as de peste bubónica, depois da pandemia de 1348-1353), ainda continuava (e continuaria) a infundir século e meio depois. Talvez mais aos burgueses e à "outra gente de melhor condição", a começar pelo rei e a sua corte, a nobreza e o alto clero, do que propriamente à arraia miúda (na feliz expressão de Fernão Lopes) para quem a experiência continuada da miséria, da doença, do sofrimento e da morte fazia parte integrante do seu quotidiano. 

De qualquer modo, ficou-nos da memória dessa época ditados como: "Da fome, da guerra e da peste ...e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine!" ou "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa" (a de 1569).

Não sabemos como, na prática e com que relativa eficácia, eram aplicadas estas medidas punitivas por parte do poder régio, secundado pelo provedor-mor de saúde. De qualquer modo até as penas, devidas por infracções às leis sanitárias, eram diferenciadas, em função da condição social do infractor:

(i) o peão era açoitado em público e, em seguida, posto em degredo, na Ilha de S. Tomé, durante sete longos anos;

(ii) ao escudeiro, cavaleiro ou mercador, aplicava-se uma pena mais suave e menos vergonhosa: multa e dois anos de degredo que o rei, eventualmente, comutaria em fixação da residência por uns meses numa qualquer aldeia da Beira Interior.

Na legislação de 1506 previa-se já a construção de um tipo de estabelecimento, completamente novo, distinto do hospital e da gafaria: destinar-se-ia, em particular aos pestiferados e aos portadores de doenças infectocontagiosas que não podiam ser internados no Hospital Real de Todos os Santos.


A esse estabelecimento se referem as cartas régias de 22 de junho e 23 de julho de 1520, em que se recomenda à câmara municipal de Lisboa a sua construção e em que se aprova a escolha do terreno.  

A futura "Casa da Saúde" será construída no Vale de Alcântara, junto ao estuário do Tejo, num local espaçoso e arejado, e na altura bem longe das portas da cidade e do paço real (situado no que é hoje a Praça do Comércio, vulgo Terreiro do Paço, e destruído com o terramoto de 1755). Em 1520 o plano aprovado pelo rei previa um estabelecimento de 160 camas.

Noutros sítios, como Évora, também existiam casas de saúde que, no entanto, mais não eram que casas particulares,  situadas fora das muralhas,  requisitadas pelo município, e transformadas em hospitais temporários.

A "casa da saúde" é a versão portuguesa  do "lazzaretto" italiano (, termo grafado no séc. XVI,)  uma estrutura que no final da Idade Média irá desempenhar um papel indispensável na gestão da saúde pública em Itália.  





Ilha do "Lazzaretto Vecchio", em Veneza, perto do atual Lido de Veneza.  


Por um decreto de 1423 pelo Senado da República Sereníssima Epública, foi aqui criado  o primeiro lazareto da história. O seu nome deriva do nome  da ilha que o viu nascer, n altura ILha de Santa Maria da Nazaré... O povo chamava-o "Nazaretum", mais tarde  tornou "Lazzaretto", talvez por analogia com a leprosaria que existia numa ilha ao lado, já desde o séc. XII (e que hoje se chama  San Lazzaro degli Armeni). 

Como se sabe,São Lázaro era o patrono dos leprosos. Mas o novo estabelecimento sanitário destinava-se a isolar e a segregar um novo tipo de doentes, os de doenças infecto-contagiosas ou "exótico-pestilenciais", e nomeadamente as vítimas de peste, os "pestiferados".

Posteriormente, será craido, em 1468, noutra ilha ("Vigna Murada") o "Lazzaretto Nuovo", que funcionará como uma espécie de depósito  de  convalescentes... Enquanto os doentes eram, sem dó nem piedade, isolados no "Lazzaretto  Vechio", e aqui chegaram a morrer, às centenas, os que tinham a sorte de sobreviver, passavam depois do "Lazzaretto Nuovo" antes de poderem regressar à comunidade.

A ilha (que hoje que se chama "Lazzaretto Vechio" foi progressivamente ampliada com terras roubadas à lagoa de Veneza. Mas não oterá mais do 2,5 hecares. Escavações arqueológicas recentes (2004) revelaram a presença de valas comuns, contendo milhares de esqueletos que datam das epidemias de peste dos século XVI e XVII. Sucessivamente, o "Lazzaretto Vecchio" também foi utilizado como local de quarentena e descontaminação de mercadorias.

Sabe-se que nos surtos de peste do séc. XVI chegavam a morrer 500 pessoas por dia, de todas as classes sociais. Uma das vítimas do surto de peste de 1485 terá sido o
 "doge" Giovanni Mocenigo (1409-1485) (Valsecchi, 2007).

Com o tempo, o lazareto passa a ser distinto do hospital e de outros hospícios (onde coabitam a doença, a miséria, o vício, a deficiência, a loucura...). Começa pela sua localização: extra-muros, fora da cidade, isolado, é um espaço que, criando um tampão de segurança, entre o seu perímetro e a população, confere segurança, não apenas psicológica mas também física. É, portanto, uma primeira medida preventiva: afastam-se e isolam-se os marginais, os vagabundos, os indigentes, os mendingos, todos os grupos de risco que podem infetar os saudáveis, em caso de surto epidémico.

Para além da segregação socioespacial dos doentes, vítimas de epidemias (só os pobres eram internados à força na "Casa da Saúde", em Alcântara...), criava-se ao mesmo tempo um esboço de aparelho sanitário com o seu corpo de funcionários, sob a autoridade do provedor-mor da saúde.

Não sabemos exactamente quando foi criada esta figura, que era distinta do físico-mor e do cirurgião-mor (cuja origem remonta ao reinado de D. João I e que tinham funções de regulamentação das respetivas profissões). A criação da figura do provedor-mor da saúde dataria do início do Séc. XVI. A sua origem seria provavelmente municipal. Na Câmara Municipal de Lisboa, o serviço sanitário constituía mesmo um dos pelouros mais importantes do Século dos Descobrimentos:

"No princípio de cada ano, era este pelouro distribuído a um dos vereadores que tomava o nome de provedor-mor da Saúde da corte e do Reino e cuja esfera de acção transpunha a capital, irradiando por todo o País (Lemos, 1991. 156).


Em 1506 sabe-se quem é o provedor-mor, o desembargador Pedro Vaz, de nomeaçao régia.  Terá vistado a Itália (Roma, Milão, Florença), em missão de estudo sobre o sistema em vigor na prevenção e combate às epidemias.

No reinado de D. João III também terá ido a Veneza uma legação para se inteirar das medidas sanitárias a adoptar em caso de peste. A República Venesiana, pelas relações comerciais que mantinha com o Oriente, era uma das cidades europeias mais expostas ao risco de peste. Mas também foi das primeiras a adoptar medidas de profilaxia contra a doença, medidas essas rapidamente imitadas por outras cidades e nações (por exemplo, as quarentenas, os lazaretos, o culto de São Roque).


Por carta régia de 1525, alargam-se as medidas a tomar em caso de epidemia, ampliando-se as providências constantes do Alvará de 1506:
  • isolamento dos doentes em ruas e bairros especiais;
  • pastagem pelas ruas de manadas de gado vacum;
  • purificação do ar por meio de queima de ervas aromáticas;
  • encerramento, a pedra e cal, das casas em que houvesse vítimas mortais da peste;
  • sinalização das casas com bandeiras ou ramos de alecrim;
  • utilização do vinagre e da cal como desinfectante;
  • proibição da compra e venda da roupa de doentes;
  • criação de cemitérios especiais foras de portas;
  • proibição de procissões e ajuntamentos, etc.

Estas medidas constam do "Regimento que Leva Pedro Vaz sobre o Que Toca ao Bem da Saude", de 1526.


O alvará de 1537 prevê penas severas para quem vier para Lisboa, proveniente de lugares empestados, ou para quem sair das embarcações ancoradas no Tejo sem a devida licença. As sanções são extensíveis a quem acolher pessoas suspeitas de contaminação.

Em 1569, será a vez de D. Sebastião mandar vir de Sevilha dois médicos (Tomas Alvarez e Garcia de Salzedo) com experiência no combate a epidemias (Mira, 1947. 124-125).

O conselho que estes especialistas espanhóis deram às autoridades portuguesas para minimizar os efeitos da "grande peste de Lisboa" (1569) incluíam medidas de natureza diversa (resumindo assim o que então se sabia em matéria de saúde pública, incluindo medidas repressivas), tais como:

  • reforçar o abastecimento e víveres à cidade;
  • zelar pela qualidade e conservação dos géneros alimentícios;
  • proceder à limpeza cuidados das ruas;
  • lançar ao mar as imundícies;
  • acender fogueiras de lenhas aromáticas na via pública, de manhã e à noite;
  • evitar expor ao ar o sangue obtido das sangrias;
  • proibir os bailes e os ajuntamentos de negros;
  • fechar as casas de prostituição;
  • encerramento dos banhos públicos;
  • manter desabitadas as casas onde tivessem morrido doentes de peste;
  • mandar queimar as roupas, de menor valor, das pessoas atacadas pela doença (e mandar lavar as de maior valor, com água do mar e vinagre);
  • proibir a circulação, nas ruas, de mendigos portadores de chagas;
  • pôr em quarentenas os navios de transporte de escravos;
  • mandar enterrar de imediato os mortos, em covas fundas e com ma espessa camada de cal viva por cima dos cadáveres;
  • organização de dois hospitais nos extremos da cidade para prestação dos primeiros socorros, internamento e convalescença;
  • contratação de médicos para prestação de cuidados domiciliários;
  • emprego de terapêuticas de "purificação do sangue" (sangrias, clisteres, sudoríferos, etc.), etc.

A nível da prolifaxia individual, os médicos espanhóis faziam também algumas recomendações: 


  • não abrir as janelas antes do nascer do sol; 
  • não sair de casa senão decorridas duas horas depois de ele ter nascido; 
  • aspergir o interior da casa com água e vinagre ou com vinho aromático;
  • fazer lume de lenhas aromáticas; 
  • enramar as casas com plantas de aroma agradável;
  • trazer nas mãos pomas feitas de substâncias balsâmicas, etc. 

E, por fim, uma nota de humanização: que se procurasse "alegrar e pôr ânimo ao enfermo nesta enfermidade por todas as maneiras possíveis" (Mira, 1947. 126).

O alvará de 1580 cofirma e amplia o regimento do provedor-mor da saúde: 

  • declaração obrigatória de casos de peste perante o cabeça de saúde (o representante do provedor a nível da paróquia); 
  • tratamento diferenciado dos empestados ricos e pobres (devendo estes últimos serem internados na Casa de Saúde); 
  • providências sobre os enterramentos;
  • lavagem e desinfecção das roupas; 
  • criação de um corpo de emergência de médicos e cirurgiões dependente do provedor-mor. 


2. Um incipiente corpo de administração sanitária

O pensamento geral do século XVI sobre as causas da peste não tinha evoluído: a peste era atribuída aos misteriosos e invisíveis miasmas, enfim, à corrupção do ar, à contaminação dos poços pelos judeus, a condições telúricas mal definidas, a castigo de Deus, a conjunções malévolas dos planetas e dos cometas... E recomendava-se o isolamenento dos doentes e e das zonas de infeção bem como a adoção do regime das quarentenas. 

Acreditava-se em que era suficiente o hálito para transmissão do contágio. Daí já o uso de panos, tapando a boca e o nariz,   no contacto com os doentes, bem como de máscaras e fatos especiais,  para se evitar o contágio pelo corpo do doente e da roupa da cama.

Pelo alvará de 1580, o regimento do provedor-mor da saúde é não só confirmado como ampliado. Cem anos depois, através de decreto de 1688, a autoridade do provedor-mor sai aparentemente reforçada, ao ordenar-se que as câmaras e as justiças do reino não só não se intrometam na esfera de competência do provedor-mor da saúde como cumpram e façam cumprir as as suas ordens. 


Por alvará de 1627, e devido à epidemia em Málaga, são cortadas todas as comunicações com esta cidade e outras do sul de Espanha. As cartas devem ser desinfectadas (através do vinagre e do fogo).

Por decreto de 1688, ordena-se que as câmaras e as justiças do reino não se intrometam na jurisdição do provedor-mor da saúde e que, além disso, cumpram e façam cumprir as suas ordens. A autoridade do provedor-mor de saúde estende-se aos territórios de além-mar.

Já no início do Séc. XVIII, é publicado novo "Regimento do Provedor-Mor de Saúde" (1707) ampliando e modificando algumas das disposições relativas à administração san

O provedor-mor da saúde passa a ver alargada a autoridade: a eles e aos provedores, seus ajudantes, compete fazer o registo dos facultativos, a inspecção das boticas e dos depósitos de géneros, o controlo sanitário de bebidas, exercer as funções de polícia sanitária marítima do porto de Belém, etc.

Em 1695, tinha entretanto saído o famoso "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus no Livre) em Algum Reino ou Provincia Confiante com Portugal".

Trata-se de um típico documento de sanidade internacional que será completado, dez meses depois, com o Regimento para o Porto de Belém. Entre outras medidas, estes dois diplomas vêm instituir o cordão sanitário à volta das fronteiras e as quarentenas (isolamento de 40 dias ou mais) para tripulações e navios que demandassem os portos portugueses, oriundos de país suspeito. 


Curiosamente, estas providências surgem noventa e dois anos depois da última e derradeira epidemia de peste bubónica no nosso país. Esta epidemia desaparece depois de 1603 do território nacional,com excepção do Algarve (em que irá ressurgir por meados do Séc. XVII) e do Porto (onde haverá um derradeiro surto epidémico em 1899, atempo de Ricardo Jorge).

Para além do provedor, havia ainda o guarda-mor de saúde (uma figura que foi copiada do sistema italiano e que chegará inclusive até ao séc. XX, estando consagrada nos diplomas da reforma sanitária de Ricardo Jorge, 1899-1901) (Graça, 2017).

Originalmente, os guardas-mores estavam incumbidos de vigiar as portas e os postigos das cidades, de modo a impedir, tal como aconteceu no Porto, durante o inverno de 1574-1575, a entrada dos "pobres", e o risco da sua sempre temida aglomeração.

Em 1579, por ocasião de outra epidemia de peste bubónica, era guarda-mor de saúde de Lisboa o Dr. Diogo Salema (Lemos, 1991. 176).

Ainda a propósito da figura do guarda-mor da saúde, refira-se o caso de Évora, estudado por Abreu (2004) ("A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637"): Duas dessas medidas foram a criação do cargo de Guarda-Mor da Saúde (1569) e o Regimento da Porta de Alconchel (1582). 


"A ordem dos procedimentos a seguir em caso de declaração de peste era relativamente simples: nomeado o Guarda-Mor da Saúde, este indicava dois meirinhos a quem, por sua vez, competia recrutar os homens que considerassem necessários à defesa da cidade. 

"As portas eram imediatamente encerradas, sendo colocadas bandeiras brancas ao longo das muralhas - sinal identificador de que a urbe estava sob quarentena e, portanto, com acesso condicionado. Brancas eram também as varas que os meirinhos transportavam, símbolo legitimador do poder que o monarca, temporariamente, lhes concedia.

"A partir deste regulamento, pelo menos em termos teóricos, os abusos deixaram de ser tolerados passando a ser exemplarmente punidos: concretamente, e para além das penas pecuniárias estipuladas, quatro anos de degredo para o ultramar, tratando-se das elites, açoitamento público e dois anos de degredo para as galés, um pregão era encarregue de as divulgar pelas ruas da cidade.

"Seria, porém, o Regimento da porta de Alconchel que, em 1582, apertaria as malhas do controle sobre o espaço, definindo com mais precisão as atribuições do Guarda-Mor da Saúde e daqueles que com ele faziam equipa (...).

"Três notáveis da cidade tornavam-se depositários das chaves das portas, que lhe deviam ser entregues pelos meirinhos ao cair da noite. 

"Terminada a epidemia, a vereação recolhia as chaves e levantava as bandeiras da saúde, o Guarda-Mor e os meirinhos suspendiam as suas funções. 

"A precaridade nestes cargos (...) acabaria por limitar não só o grau de conhecimentos, e portanto de eficácia, dos seus detentores como até a sua própria autoridade. Ao contrário de muitas cidades italianas onde o poder e o prestígio destes indivíduos se tornou uma força normativa da cidade". (Fonte: Abreu. 2004)

Para além do cargo de guarda-mor, a cidade do Porto também tinha ao seu serviço um físico e um cirurgião que, entre outras, exerciam funções de autoridade sanitária, competindo-lhes, por exemplo, examinar todos os que chegavam em naus e navios de terras donde havia  novas de estarem impedidas por causa de epidemias (caso da França, Flandres, etc., com quem os mercadores do Porto tinham relações comnerciais, pro mar).  


Em meados do séc. XVIII continua a ser uma preocupação das autoridades sanitárias a prevenção e o controlo das epidemias. Em 1748 é publicado o "Tratado sobre os Meyos da Preservação da Peste mandado fazer por ordem de Sua Magestade". Lemos (1991. 145) resume no essencial as medidas preventivas que deveriam ser tomadas, segundo o tratadista cujo nome se desconhece:

  • estabelecimento, nas fronteiras,  de um cordão sanitário [, "avant a lettre", já que a expressão em francês aparece pela primeira vez em 1821 para designar o encerramento da fronteira da França com a Espanha, nos Pirinéus por ocasião de surto de febre amarela, e a medida será depois teorizada pelo grande higienista francês Adrien Proust (1834-1903)];
  • imposição de rigorosas quarentenas nos portos de mar;
  • manutenção cuidadosa da limpeza nas ruas, mercados e habitações;
  • vigilância do estado dos bens alimentares;
  • repressão da mendicidade;
  • criação de hospitais especiais, fora de portas, para empestados, suspeitos e convalescentes;
  • criação de cemitérios próximos desses hospitais;
  • organização de primeiros socorros...

Há ainda uma medida, aparentemente nova, a "proibição de instalação, no interior da cidade, de oficinas cujos produtos possam inquinar o ar. É muito provável que esta seja a primeira referência, entre nós, aos  famosos "estabelecimentos insalubres, incómodos e perigosos" que vão surgir como desenvolvimento do capitalismo industrial. 

O país tinha conhecido um primeiro surto industrialista a partir de 1675 (, ano em que Duarte Ribeiro de Macedo, o nosso primeiro teórico da 'política industrial', publica a sua obra "Sobre a Introdução das Artes",) e vai conhecer outro,  entre 1720 e 1740, antes do pombalismo. 

 No final do Antigo Regime, é à intendência geral de polícia, de que Pina Manique (1733-1805) será o todo poderoso superintendente, no período que vai de 1780 a 1803) que se devem medidas legislativas tais como:
  • o decreto que cria a obrigatoriedade da inspecção sanitária das prostitutas (1781);
  • a regulamentação da oferta de trabalho para os indigentes (1781);
  • a organização da estatística das mortes violentas e o estudo da criminalidade (1791);
  • o plano de construção de cemitérios públicos (1791).

Este último tinha um objectivo sanitário explícito, além do registo e controlo da mortalidade (por ex., proibição de enterramentos sem certidão de óbito).


Em resumo, pode-se dizer que até ao século das Luzes, o séc. XVIII, não há  consciência colectiva da saúde/doença, o que  terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas. 

Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc... (
A proibição dos porcos deambularem livremente pelas ruas da cidade de Lisboa data apenas de 1773!).

Quando surgiam epidemias (, de resto, cíclicas), a única resposta societal era a da imposição do terror através da segregação socioespacial (separação dos doentes e dos sãos, separação dos doentes ricos dos doentes pobres). O lazareto, distinto do hospital,  é uma das "instituições totalitárias" que o Ocidente cristão vai criar para lidar com as epidemias da 1ª era da globalização. E não é por caso que nasce em Veneza.

(Continua)

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Referências bibliográficas:

ABREU, L. (2004) - A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637. Sesión 18: crisis de mortalidad y epidemias em España y Portugal. Congresso Associación de Demografia Historica (ADEH), VII, Granada 1-3 de Abril de 2004. Facultad de Filosofia y Letras. Universidad de Granda.

GRAÇA, L. - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994)26-31.


GRAÇA,  L. - Ricardo Jorge e a modernização da saúde pública. In: Veloso AJ, Mora LD, Leitão H, editors. Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book; 2017. p. 34–49.

JORGE, R. (s/d) - Amato Lusitano. Comentos à sua vida, obra e época. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

LEMOS, M. - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, Volume II. Lisboa: D.Quixote; Ordem dos Médicos, 1991 (1ª ed., 1899)

MIRA, M.F. - História da medicina portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1947.

ROQUE, M. C. - A "Peste Grande" de 1569 em Lisboa. Lisboa, 1982 (Separata dos Anais da Academia Portuguesa da História, 1982, II série, vol. 28).


VALSECCHI, M. C. - Mass Plague Graves Found on Venice "Quarantine" Island."National Geopraphical", AUGUST 29, 2007.

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20854: Efemérides (323): No dia 13 de Abril de 1970, a CART 2732 embarcou no Cais do Funchal, no navio Ana Mafalda, com destino à Guiné (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)


Se dos fracos não reza a História, da História da CART 2732 e dos seus valorosos Combatentes, reza que hoje se completam 50 anos após o seu embarque no Cais do Funchal, no navio Ana Mafalda, com destino à Guiné, onde chegaram no dia 17 para cumprir uma esforçada comissão de serviço de 23 meses.

Companhia de quadrícula, esteve aquartelada em Mansabá durante 22 meses, onde deixou muitos amigos e saudades entre a população.

Cais do Funchal, 13 de Abril de 1970 - O Governador do Distrito, Coronel Braamcamp Sobral, e o Governador Militar da Madeira, Brigadeiro Luís Mário do Nascimento, passam revista à formatura da CART 2732.

Cais do Funchal, 13 de Abril de 1970 - Desfile da CART 2732, comandada pelo Alf Mil Manuel Casal, momentos antes do embarque. Como Porta-estandarte o então Segundo Sargento António Piedade Santos.


Foi este o efectivo da CART 2732 que embarcou no navio Ana Mafalda

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Notas:

São estes os que embora "não achando quem armas lhes resistisse" acabaram por sucumbir no cumprimento da sua missão, não voltando connosco:

a) - O Alf Mil Art MA José Armando Santos do Couto, faleceu em combate em 6 de Outubro de 1970
b) - Soldado José do Espírito Santo Barbosa, faleceu no HMP em 14 de Dezembro de 1971, vitima de ferimentos recebidos em combate no dia 2 de Dezembro.
c) - Soldado Manuel Vieira faleceu em combate no dia 2 de Dezembro de 1971.
d) - Soldado José Silvestre Nunes Vieira faleceu vítima de acidente de viação  em 17 de Maio de 1971.

Há ainda a registar o falecimento por doença, em 16 de Maio de 1971, do Soldado Artur Malcata de Matos, integrado na CART 2732 já na Guiné.

A estes 5 saudosos camaradas de armas, neste dia, a nossa homenagem.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20851: Efemérides (322): O meu domingo de Páscoa de 1968 (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG)

Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dirão alguns que esta investigação universitária aborda o demasiado óbvio: havia censura de que um regime totalitário não abria mão, a guerra colonial ainda é uma história para contar. Há que reconhecer o mérito da metodologia utilizada: o que foi concretamente o jornalismo português na divulgação da guerra colonial, como operou a censura, que memórias guardam radialistas e jornalistas que chegaram a pisar o solo nos teatros de operações, qual a atmosfera das redações, que papel desempenhou a autocensura, e muito mais. Há memórias e testemunhos de valor perdurável e estamos em querer que a investigação histórica de futuro não poderá prescindir desta sondagem sobre o jornalismo e os jornalistas, em Portugal e nas colónias.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (2)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

O professor Francisco Rui Cádima aborda o tratamento da guerra colonial na RTP, observa que a ausência da ideia de império nos telejornais da década de 1950, ou mesmo a ausência de uma estratégia deliberada de manipulação das consciências, a informação era tipo oficioso, com pouco uso da imagem.

Iniciada a guerra colonial em Angola, mostram-se imagens do terror praticado, mas insistia-se na tese de tranquilidade e incriminava-se a ingerência estrangeira e os bandidos vindos do exterior. A RTP abriu uma campanha nacional de apoio às vítimas do terrorismo em Angola para recolha de donativos.

Toda a informação televisiva aparecerá altamente condicionada. Manuel Maria Múrias irá desempenhar o papel de agente de legitimação da política salazarista. Haverá uma viragem com a chegada de Ramiro Valadão em 1970. “Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redação, mas significou também uma importante alteração no quadro do próprio discurso jornalístico televisivo”. O regime não deixou abrir fendas na doutrina oficial de que o Ultramar era matéria fora de discussão.

Vários autores debruçam-se sobre a censura e como esta se constituiu como o elemento dissuasor de qualquer veleidade em abrir discussões sobre o nacionalismo, a existência de atrocidades ou até exploração económica.

A equipa organizada por Sílvia Torres ouviu memórias de jornalistas e intervenientes na guerra colonial, desde Agostinho Azevedo que escrevia no oficioso Voz da Guiné, passando por Armor Pires Mota que publicava crónicas durante a sua comissão militar na Guiné no Jornal da Bairrada, nem a PIDE nem a censura deram por nada, publicou o livro Tarrafo com as mesmíssimas crónicas, foi imediatamente apreendido e houve interrogatórios, depõem igualmente Baptista Bastos, Cesário Borga, Diamantino Monteiro, do Rádio Clube da Huíla, como também David Borges da Rádio Clube da Huíla, o jornalista Fernando Correia que pisou os três teatros de operações e que explica cabalmente todo o processo de crescente desinteresse do próprio regime em dar informações sobre a guerra; o jornalista Fernando Dacosta observa que a guerra foi muito mal contada, nenhum jornalista legou um grande trabalho sobre a guerra colonial e justifica:

“Não podia fazer. Na literatura, hoje, a história já começa a ser contada. Cada vez se escrevem mais livros sobre a guerra colonial. Mas, neste plano, importa destacar um dos primeiros escritores: o jornalista Fernando Assis Pacheco, que escreveu Walt, um livro que situa a guerra colonial na guerra do Vietname para, desta forma, poder falar sobre a guerra colonial e escapar ao corte da censura. É talvez um dos documentos mais importantes sobre a guerra colonial que foi publicado muito antes do 25 de Abril”.

E analisa igualmente a imprensa na metrópole: “A censura era ferocíssima em relação às notícias, filtrava tudo quanto os jornais tentassem publicar e, de uma maneira geral, cortava. Só se publicavam as informações que a própria censura entendia ou que o gabinete militar divulgava”.

Uma figura lendária, o jornalista Fernando Farinha, que acompanhava as tropas no terreno, descreve os seus métodos de trabalho, como é que as suas reportagens chegavam à redação:

  “Fazer chegar os rolos fotográficos e os textos ou notas de texto à redação requeria alguma imaginação. Umas vezes, aproveitava o transporte de feridos, feito por helicóptero, para o Hospital Militar de Luanda, para enviar rolos e notas de texto. Punha o papel dentro do rolo e colava tudo com fita-adesiva às ligaduras ou talas dos feridos. Os próprios feridos ou outros militares informavam depois a redação de que era preciso ir buscar o material ao hospital. Outras vezes, verbalmente, via rádio do Exército para o rádio do avião que sobrevoasse a zona, pedia aos pilotos que transmitissem determinadas informações”.

E discreteia quanto ao modo quanto o conflito passou a ser visto internamente:

“No início, a guerra era vista pelos militares como um dever de patriotismo a cumprir. Era fundamental manter a pátria unida e defender um território que era português, custasse o que custasse. O inimigo era terrorista e tinha de ser abatido. Mais tarde, o pensamento já não era este, sendo a guerra vista como desnecessária. No final, já só se queria um entendimento com os terroristas e o fim da guerra. O inimigo passou a ser mais respeitado, porque as tropas portuguesas perceberam que os guerrilheiros lutavam pela sua terra. O amor à pátria e a portugalidade das colónias foi-se perdendo à medida que a guerra avançava”.

Segue-se a entrevista a alguém que teve atividade humorística na imprensa, Fernando Gonçalves criou o cartoon Zé da Fisga, que aparecia em publicações com sede em Luanda; Francisco Pinto Balsemão, João Palmeiro e Joaquim Letria irão depor sobre o seu papel de jornalistas ou intervenientes nos meios de comunicação social.

Letria fala dos problemas com a censura mas também da autocensura, e conta a experiência amarga que teve na Guiné como repórter de guerra:

“Posso contar que me levaram ao Palácio do Governo por causa de um telegrama, com cerca de 150 palavras, que eu enviei para o Diário de Lisboa por correio. Julgava eu que o telegrama tinha sido enviado, quando aparece um jipe, conduzido por um funcionário para me levar ao palácio. E aí fui muito maltratado por General Arnaldo Schulz e pelo representante do SNI. Porquê? Porque eu tinha tentado enviar para Lisboa informação classificada que prejudicava as nossas tropas. Eu escrevi no telegrama que tinha havido um ataque do PAIGC que tinha matado nove soldados portugueses e dizia aonde é que tinha sido o ataque, quantos soldados é que tínhamos na Guiné e quando é que a guerra tinha começado. Fui repreendido por ter contado a verdade. Tinha cometido um erro gravíssimo e se o voltasse a fazer mandavam-me para Lisboa”[1].

Para Letria a guerra colonial é uma história por contar, ainda há muito para mostrar. E recorda que ainda não foi ouvida gente que gravava as mensagens de Natal, esses operadores da RTP ainda não testemunharam.

(Continua)
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Notas do editor:

[1] - A propósito destas mortes anunciadas pelo jornalista Joaquim Letria, consultar o Poste de 7 de Dezembro de 2017 > Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos).

Último poste da série de 6 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)