1. Há quase cinquenta anos (vai fazer em 2025) que venho a
Candoz (*). Aliás, ao Norte, ao Porto, à Madalena, V. N. Gaia. Para vergonha minha, antes do 25 de Abril, só conhecia
o país, o Centro e o Norte, até à ria de Aveiro (e o Sul ainda pior, a margem esquerda do Tejo,
Setúbal e pouco mais).E nestes anos todos, as transformações foram muitas, para não
dizer profundas, radicais, estruturantes, em todos os domínios, a nível do
indivíduo, da família, do habitat, do território, da economia, da sociedade,
das organizações e instituições, etc. Da saúde à educação, do trabalho aos
transportes, do lazer à cultura, da sexualidade à religiosidade, da política ao futebol, etc., etc.,
Mas, aqui em Candoz, no “país profundo”, onde o povoamento era
(e ainda é) disperso e a predomina(va) o minifúndio, ainda apanhei tantas “coisas do antigamente”
(ou ainda estavam frescas na memória das gentes do vale do Tâmega)…
Listo apenas algumas (uma trintena) que me acorrem, ao sabor
do teclado e no decurso desta época de vindimas (em que vim passar 15 dias a
Candoz) (**), sem qualquer ordem de precedência, importância ou relevância, e esperando que os nossos leitores acrescentem outras tantas (positivas ou negativas, não têm que fazer juízos de valor; por exemplo, há outras "coidas boas" que persistem, e ainda bem nestas nossas pequenas terras , como o valor dado à família e à "leiras" (transmitidas de geração em geração ), o apego à liberdade, a linguagem chã, a lealdade, a frontalidade, a nobreza de carácter, o princípio da "palavra dada", a hospitalidade, a amizade, a camaradagem...
Mas aqui vai a minha lista (que é meramente exemplificativa. e muito "enviesada" pela minha vivència nortenha limitada e esporádica, não tendo eu... o ADN genético e cultural desta gente):
(i) a luta dos rendeiros contra a parceria agrícola e
pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das
“rendas” em géneros (e em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a
meias, etc.);
(ii) a estratificação social nos campos (no passado): “”fidalgos”,
pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e
que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres,
socioespacialmente separados);
(iii) os salamaleques da “servidão da gleba” (também do tempo da outra senhora): “com a sua
licença, eu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”,
desbarretando-se a 10 metros de distância;
(iii) as juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;
(iv) a criação, em cortes, do gado bovino (o “tourinho”, mais
bem tratado que a “canalha”, porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande
feira do Marco (de Canaveses);
(v) a cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de
obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à
requisição do governo nos anos da guerra e pós-guerrra);
(vi) a vinha de bordadura (e na sua grande maioria, videiras
de tinto… jaquê, um híbrido americano de há muito proibido mas sempre tolerado;
de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável;
de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho
verde branco,o que se fazia era “para o padre”()
(vii) o vinho tinto bebido da malga de barro vidrado ou da
“caneca de porcelana”;
(vi) as “serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a
desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc. . em que
os vizinhos se ajudava, uns aos outros;
(vii) os grandes cestos de vime de 50 kg de uva que os
“homes” transportavam aos ombros, por leiras e solcalcos abaixo (ou acima)nas vindimas, até
ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão sibroso por
causa da temperatura ambiente):
(viii) a matança do porco e à salgadeira (que era o
“governinho da tia Aninhas”);
(ix) o valor comercial da madeira de carvalho, castanho e
pinho (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);
(x) a água de consortes (como a água de Covas, de que o meu
sogro tinha direito a utilizar,só no solstício do inverno, uma vez por semana,
das 10h da manhã às 6h00 da tarde;
(xi) os “montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos,
não só para limpeza e prevenção dos incêndios como sobretudo por causa da
importância que tinha o mato para fazer “a cama dos animais” e depois o
estrume;
(xii) a “esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos
os despejos domésticos);
(xiii) as longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à
romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho, mas também ao "monte", ao "engenho" do m0leiro, ao médico, ao hospital da
misericórdia);
(xiv) a escassez de meios de tração mecânica na lavoura
(tratores, motocultivadores, etc.) e de transporte automóvel;
(xv) a “venda” que era mercearia, tasca, casa de
comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, etc. (em geral à beira da estrada, e num ponto central, no "alto", por exemplo);
(xvi) a sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na
Linha do Douro até ao Juncal, e depois era transportada à canasta e vendida de
porta em porta);
(xvii) a típica gastronomia de Entre Douro e Minho, o caldo moado, as cebolinhas do talho, os salpicões
feitos em vinho tinho verde, o anho com arroz de forno, as papas de farinha de
pau, o arroz de cabidela, o bacalhau lascudo n0o Natal, a aletria, etc.
(xviii) só os homens usavam calças (!);
(xix) a virgindade (feminina) antes do casamento;
(xx) o medo da noite, das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, o pensamento mágico, a aprendizagem através da oralidade à volta da lareira;
(xxi) a importância das feiras e romarias como factor de
lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda;
(xxii) os “bailes mandados” e as “tunas rurais do Marão”;
(xxiii) a luz do candeeiro a petróleo ou querosene;
(xxiv) o caciquismo político e eleitoral:
(xxv) o “varapau”
como símbolo da virilidade e da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter
sido proibido na via pública, nas festas e nos bailes, sendo o seu cumprimento
fiscalizado pela GNR):
(xxvi) a fraca monetarização da economia (fazia-se algum
dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho);
(xxvii) a autossuficiência da economia do pequeno
campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e a “ranchada de filhos” era garantia de mão de obra
abundante e gratuita"... E em que sé cultivava e tecla o linho e as raparigas tinh o "bragal";
(xxviii) a emigração (para o Brasil e depois para França e
Alemanha);
(xxix) o obscurantismo religioso, político e cultural;
(xxx) as “grandes mulheres”, as "Marias da Fonte", que em geral se escondem(iam)
atrás dos seus “homes” ( de varapau na mão)…
… E dito isto, continuo a gostar de cá vir, em épocas emblemáticas,
festivas, do Natal à Páscoa, da festa da Senhora do Socorro às vindimas... Claro,
aos batizados, casamentos, festas da família, enterros… (E há perdas recentes, que nos deixam dor profunda e eterna saudade.)
E gosto de continuar a
fotografar Candoz, ao longo das quatro estações e das várias horas do dia. E em particular nesta época do ano em que aparecem as primeiras cores outonais e os primeiros cogumelos.
E continuo a eleger Candoz como tema
da minha escrita (em prosa ou em verso, e nomeadamente nos meus/nossos
blogues). Afinal, sou um pobre "citadino"...
Que o leitor desculpe esta obsessão... É como a Guiné: estivemos lá menos de dois anos, e o blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné já vai a caminho dos vinte. Por menos, já me quiseram mandar para a psiquiatria. (LG)
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Notas do editor:
(**) Sobre a Quinta de Candoz, vd. também poste recentes: