segunda-feira, 6 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Trata-se, tanto quanto me é dado saber, de um trabalho universitário em que numa grande angular se pretende saber mais sobre o comportamento jornalístico face à guerra colonial, desde a primeira hora: quais os meios de comunicação em Portugal e colónias, como se fabricavam as notícias, como agia a censura, recolhem-se depoimentos a entrevistas e testemunhos e procura-se aquilatar até que ponto é possível investigar a história da guerra colonial sem entrar nos meandros deste jornalismo e como este, de certo modo, vai estar nos carris da descolonização.
Documento vasto, prismático, a exigir seccionamento na recensão, para benefício do leitor.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (1)

Beja Santos

“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este jornalismo é de estudo indispensável na investigação histórica.

Carlos Matos Gomes
Logo no prefácio, Carlos de Matos Gomes pede ao leitor que aceite a singularidade da guerra:

“A guerra é o reino do medo, da sujidade, do excesso, da violência, do que não se pode dizer em voz alta nem expor nas montras. É um corte entre nós e os outros, que são eles, os que, por alguma razão, ou sem razão alguma, passam a execráveis inimigos. A guerra é um universo denominado pela irracionalidade e pela bestialidade”.

E daí questionar-se por onde passa a fronteira entre a verdade e a mentira, entre o que é lícito tornar público e no dado essencial das omissões. O prefaciador recorda-nos que o jornalista que vai à guerra tem a oportunidade para uma aventura pessoal, conhece os limites do que pode escrever, se descreve horrores é para destruir a imagem dos nacionalistas; o que fala na rádio e na televisão tem outra espécie de condicionalismos, o som e a imagem timbram melhor as cores da propaganda. Mas há um dado axiomático:

“Na guerra, o jornalismo expõe com ineludível crueza a servidão aos poderes político e económico, que permitem a sua existência. Esses poderes têm a sua verdade e é essa que vale, seja como pura propaganda, seja como análise mais ou menos científica”.

Daí o jornalismo ter obrigatoriamente de justificar ideologicamente e economicamente o regime:

“A guerra era imposta do exterior. Aliás, não havia uma guerra, mas atitudes subversivas e correspondentes ações de reposição da ordem. Não havia guerrilheiros, mas terroristas, bandoleiros a soldo de potências estrangeiras”.

Na imprensa metropolitana fugia-se até ao limite em dar notícias sobre a guerra colonial, aliás, os leitores metropolitanos estavam absorvidos por outras preocupações. Em dado passo da escalada da guerra, encontrou-se uma figura mediática que era conveniente ao regime e à mitologia do herói: Spínola, credor dos grandes meios de comunicação social internacionais e a grande curiosidade que suscita ao leitor aquele militar monóculo que aterra no centro das operações e que passou a ter o destemor de dizer nos gabinetes da política que não havia solução militar para aquele tipo de guerra.

Acresce que em Angola e Moçambique, teatros de guerra menos importantes para os repórteres internacionais, havia dois mundos, o dos colonos a fazer a sua vida pacífica e as povoações em guerra. Em Lourenço Marques, a guerra não existia, em contrapartida o hospital de Vila Cabral ia-se enchendo de feridos, aí os colonos pressentiam a gravidade dos acontecimentos. A guerra foi deliberadamente ocultada pelas autoridades aos moçambicanos. E o jornalismo feito especialmente em Angola e Moçambique não era levado a sério tanto pelos militares como pelos civis, da mesma maneira que as informações militares passavam deliberadamente ao lado dos implicados, como refere em entrevista o jornalista Rodrigues Vaz:

“Há que chamar à atenção para a qualidade inegável do serviço de informações do Exército, cujos relatórios da situação que se vivia em Angola era o espelho real do que acontecia. Só que o regime não devia olhar para eles com olhos de ver, teimando tapar o sol com uma peneira. O resultado foi o que se viu e o inconcebível é que continua a haver gente que acha que a guerra estava ganha pelo Exército português e que o 25 de Abril é que veio estragar tudo. É lamentável que ainda agora seja pouca a gente que se lembra de pensar como se poderia ganhar a paz, mas isto é que era importante”.

Atenda-se agora à evolução do jornalismo durante o Estado Novo, a obra identifica os matutinos e vespertinos, a imprensa desportiva, as revistas e outras publicações e até a tentativa de pôr em marcha projetos inovadores como o Diário Ilustrado, concluindo-se que:

  “Os finais da década de 60 e inícios da década de 70 configuram em Portugal o culminar de um período intenso em mudança do jornalismo, reflexo das mudanças sociais em curso, em que se misturam fatores de natureza humana (recomposição das redações com o recrutamento de jovens universitários), tecnológicos (reconversão na maioria dos jornais) e políticos (as fraturas internas da última fase do salazarismo, agravadas pelas ambiguidades e hesitações do marcelismo)".

Segue-se um retrato dos meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas, levantamento que compreende a imprensa escrita, a rádio, a televisão e o cinema. Na sua sequência, faz-se menção ao início da guerra de Angola e à natureza das notícias que se publicaram.

“O discurso censurado dos diários de Lisboa foi conduzido no sentido de camuflar sistematicamente a origem maioritariamente angolana e de negar o âmago anticolonial dos assaltos às cadeias de Luanda”.

E mais adiante:

“As notícias sobre a nacionalidade dos assaltantes são bastantes difusas: estes ora são referidos simplesmente como estrangeiros, ora como uma amálgama de negros, de quem se diz não serem da África portuguesa, e de alguns brancos europeus, explicando tratar-se de portugueses da Metrópole que teriam pitando o rosto de negro para passarem despercebidos”.

Todos estes acontecimentos ocorridos em Luanda aparecem imputados ao turbilhão independentista que se vivia no Congo, a nação portuguesa é apresentada como vítima de uma conspiração à escala internacional.

“Os acontecimentos no Catanga e no Congo e também o drama franco-argelino e a crise no Laos são relatados com vista a singularizar a situação de Angola. Enquanto a condição naqueles locais é descrita como sendo de guerra, de miséria e de incerteza, o discurso da imprensa de Lisboa era encaminhado no sentido de dissimular uma imagem de harmonia e tranquilidade aplicada ao império português em África”.

A imprensa angolana também fez passar a ilusão da serenidade, houvera assaltos mas milhares de pessoas passaram o seu dia na praia e outras assistiram ao desfile preparatório do cortejo de Carnaval. Estamos perante um caso de ficção informacional. A censura impediu artigos que dessem outras vertentes da realidade. Cita-se por exemplo a série de crónicas assinadas por Domingos Mascarenhas intituladas “Angola 1961”. O jornalista entrevê na revolta em Luanda um acontecimento decisivo capaz de pôr em causa o destino da nação. Foi tudo proibido. Mas apesar da censura passaram mensagens nas entrelinhas. Convém agora ver como é que a guerra era tratada no telejornalismo e na televisão em geral.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20819: Parabéns a você (1781): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Guiné, 1971/73)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20809: Parabéns a você (1780): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1972/74); António Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2406 (Guiné, 1968/70); Hernâni Acácio Figueiredo, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70) e José Eduardo Reis Oliveira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 675 (Guiné, 1963/65)

domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20818: Tabanca dos Emiratos (2): Viagem até ao emirato de Fujairah - Parte I: o forte (Jorge Araújo)

 

Foto 3 - Emirados Árabes Unidos > Emirato de Fujairah (Fujeira) >  Março de 2020 > Largo interior do complexo do Forte de Fujairah, a única foto onde apareço...



Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); um homem das Arábias... doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; vive entre entre Almada e Abu Dhabi; autor da série "(D)o outro lado do combate"; nosso coeditor.





IDA AO EMIRADO DE FUJAIRAH (FUJEIRA),
UMA VISITA PARA PARTILHAR:
- O «FORTE DE FUJAIRAH» -


Mapa geográfico dos Emirados Árabes Unidos com indicação dos seus sete Emirados: Abu DhabiDubaiSharjaha, Ajman, Umm al QuwainRa's al Khaimah e Fujairah

1.  - INTRODUÇÃO

As primeiras notícias sobre o «coronavírus» - «COVID-19» - e o aparecimento dos primeiros casos da doença no País levaram as autoridades locais a tomar medidas de orientação sobre a sua prevenção. Uma delas determinou a suspensão da actividade académica, pela elevada interacção social e meio facilitador a eventuais contágios. A esta decisão superior, seguiu-se outra fazendo antecipar de quinze dias o período de férias previsto no calendário lectivo do ano em curso.

Ao impedimento de saída do País, mas com total liberdade de mobilidade interna, pegámos no carro e deslocámo-nos ao Emirado de Fujairah (Fujeira), situado a três centenas de quilómetros, na costa leste, banhada pelo Golfo de Omã.

No sentido de partilhar esta viagem com o Fórum, eis uma pequena resenha histórica.    
  
2.  - OS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS [EAU]

Situado no sudeste da Península Arábica, no Médio Oriente, o território dos Emirados Árabes Unidos [EAU ou UAE] faz fronteira com Omã (a leste), com o Qatar e Golfo Pérsico (a norte) e com a Arábia Saudita (a sul e a oeste).

Formado por uma confederação de monarquias árabes, chamados «EMIRADOS», estabelecida oficialmente em 02 de Dezembro de 1971, cada um dos sete emirados possui total soberania sobre os assuntos internos. Localizados na entrada do Golfo Pérsico, os sete emirados que constituem o país são: Abu Dhabi, Dubai, Sharjah, Ajman, Umm al Quwain, Ra's al Khaimah (a oeste) e Fujairah (a leste). A capital é Abu Dhabi, a segunda maior cidade dos Emirado Árabes Unidos. (ver mapa acima).

3.   - O EMIRADO DE FUJAIRAH (FUJEIRA)

O Emirado de Fujairah está separado do resto do país pela linha irregular das assombrosas «Montanhas Hajar», constituídas numa cordilheira situada entre o leste dos Emirados Árabes Unidos e o nordeste de Omã, sendo considerada a maior cadeia de montanhas no leste da península Arábica.


Foto 1 - «Montanhas Hajar»


O Emirado de Fujairah, com uma área de 1.166 km2 e uma população superior a cento e cinquenta mil habitantes, é o principal centro urbano da costa leste dos Emirados Árabes Unidos, cujas praias a norte são consideradas das mais bonitas do país. A sua parte histórica continua muito presente, onde existem vários pontos turísticos antigos que podem ser visitados. Para além de várias fortalezas centenárias, há ainda a mesquita mais antiga do país – a «Mesquita Al Badiyah».


Foto 2 - «Forte e Mesquita Al Badiyah»


Em termos de superfície, Fujairah é o quinto maior entre os sete emirados dos EAU, e o único que está localizado no Golfo de Omã, ao contrário dos outros, que estão situados ao longo do Golfo Pérsico.

3.1 - O FORTE DE FUJAIRAH (FUJEIRA)

O Forte de Fujairah (Fujeira) é um dos tesouros arqueológicos deste Emirado, alguns dos quais datam do século XVI, incluindo castelos, fortes, torres e mesquitas. Esses fortes e castelos foram usados para defender e repelir invasores, mantendo assim a integridade da identidade de Fujairah. Um dos principais e maiores fortes deste Emirado, o «Forte de Fujairah» é caracterizado pela localização numa colina alta na antiga região de Fujairah, e foi construído a cerca de 20 metros acima do nível do mar, com uma visibilidade de toda a cidade a três quilómetros da costa.

O projecto deste «Forte» difere completamente dos projectos de engenharia usuais dos restantes fortes nos Emirados Árabes Unidos. O «Forte» está incluído num complexo com várias casas antigas e uma mesquita. É composto por três torres circulares e uma quarta torre quadrada e uma unidade alta que se parece com uma torre, estas foram ligadas por uma parede entre as torres para formar um salão central no meio. Este projecto irregular emergiu como uma das várias características, da forma das rochas com as quais o «Forte de Fujairah» foi construído.

Para além das rochas acima referidas, o «Forte» foi construído com uma selecção de materiais locais, incluindo feno de argila de pedra, lama, cascalho, gesso e madeira.

Em 1925 foi feito o primeiro restauro do «Forte» e, em meados da década de 1960, realizou-se outro restauro devido ao colapso da torre e da praça norte. Entre 1998 e 2000, o Departamento de Antiguidades e Património fez uma reforma geral no forte e nas suas torres, na qual utilizou os mesmos materiais da sua construção.

FOTOGALERIA DA VIAGEM
  












Emirados Árabes Unidos > Emirato de Fujairah (Fujeira) > Forte > Março de 2020 > Fotogaleria



Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Principal fonte de consulta:
Desdobrável do Fujairah Tourism & Antiquities Authority
Fujairah Fort
Tradução e adaptação do Inglês.


Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um grande abraço (virtual) e um apelo para que se cuidem durante (mais) este novo tempo excepcional nas/das nossas vidas.   
Jorge Araújo.
18MAR2020
______________

Nota do editor:

Guiné 61/74 - P20817: Blogpoesia (671): "Aquele olhar...", de António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873

1. Em mensagem do dia 3 de Abril de 2020, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos este poema de sua autoria:


Aquele olhar...

Era ainda cedo, na rua, o frio fazia-se sentir
Mas ela, já se encontrava dentro do edifício na sala de espera
Era triste e preocupante o seu olhar
Algo confuso lhe ocupava a mente
E eu, ali a seu lado, pensei em quase tudo
O que me levou, a ir aonde eu não queria...
Estaria ela a pensar nos filhos?
Nos pais? no marido? Ou noutro alguém...
Pensei em quase tudo. Talvez tenha sido errado tudo o que pensei...
Era angustiante a sua forma de olhar
Por momentos, fechou os olhos e inclinou o rosto.
Pouco depois, sacudiu os cabelos e olhou em direcção à janela
Entretanto, o sistema de som chamou pelo seu nome
No gabinete, ali ao lado, a oncologista esperava por ela
Ao escutar o seu nome, levantou-se e seguiu vacilante
O seu olhar, triste e distante, não deixava ninguém indiferente
Depois de a ver partir, fiquei algum tempo a meditar...
Talvez!.. Talvez ela tenha estado a pensar em tudo
Sabendo que em breve já não ia pensar em nada...

Eduardo Jerónimo
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20815: Blogpoesia (670): "O mundo é cruel...", "Triunfo da esperança" e "Os nossos ptlares", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20816: Blogues da nossa blogosfera (126): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (41): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

HABEMUS PACEM

ADÃO CRUZ


© ADÃO CRUZ


Magnífica surpresa
nesta saga de poetas para as cinzas nocturnas.
Há um labirinto de ismos que se entrecruzam de pontes
sobre um rio seco
ou um rio desviado para lá de mim.
Um lago de silêncio com a cidade ao longe
regateando simbolismos de esferas ocas
semeadas pelo parque monumental
de outros ismos já mortos
à espera de uma ressurreição
sob o reflexo de mil janelas
empoleiradas nos altos muros da cidade virtual
em serena ode à quietude universal.
Ali na esquina há fumo branco
e o estribilho feroz de um surrealismo macabro
de um débil concretismo experimentalista
hermeticamente grosseiro
gritando aos ares habemus pacem.
Na deserta anatomia do silêncio
onde outrora a poesia já morou
grita bem alto o histórico fóssil da verdade
em pedaços de vida fumegante
e monstruosas resmas de páginas em silêncio.
Montanhas de nomes a apodrecer
entre escombros de pensamentos
que embrulharam a consciência adormecida
durante séculos inglórios
emoldurados de paz e de vida.
Lida a vida a vida inteira
em semânticas fraudes simbolísticas
este atalho de fim de mundo
nada encurta e tudo alonga.
Verdadeiro a correr e a cantar
esgueirando pela rua a frágil seara do corpo
só o paraplégico
fazendo cavalo na cadeira de rodas.
Verdadeiro
apenas aquele gajo sujo
de vanguardas audazes
colado à soleira numa caixa de cartão
mostrando os dentes que não tem
em arremedo de sorriso de ilusão.
Por isso o poeta é um descalabro
à procura de se erguer.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20714: Blogues da nossa blogosfera (124): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (40): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20815: Blogpoesia (670): "O mundo é cruel...", "Triunfo da esperança" e "Os nossos ptlares", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


O mundo é cruel...

Não é pão com manteiga.
O mundo é cruel.
Selvagem também.
Trucida os fracos e pobres. Serve aos ricos.
Tem fome de paz.

A vida vegeta à volta dos réis.
Terra deserta.
Queimada do sol.
Escrava sem lei.

Não há irmã nem irmão.
Adversários em vez de irmãos.
Servos do mal.
Terra sem céu.

Repasto de vermes.
Ópio dos maus.
Cloaca opaca.
Dejectos nojentos.
Covil de leões.

Ouvindo Michael Jackson - Earth Song (Official Video)
Mafra, 4 de Abril de 2020
13h18
Jlmg

********************

Triunfo da esperança

Quando tudo parece desabar, Se destroçaram a arrogância e os poderes da escravidão.
Jazem no chão, inertes.
Debandaram seus alcaides.
Ruiram seus castelos.
Ficaram sós e nus.

Se reergueu a vida em força pelo meio dos destroços.
A justiça venceu.
As almas se voltaram para os céus.
Se deixaram extraviar pela sedução do mal.
Viram riquezas onde abundava a miséria.
Deixaram arrastar-se pelas miragens de quem pensa ser rei e a terra o seu reinado.

Se apaziguou a ira.
De novo, choveram bênçãos.
É hora de reconstruir e continuar nosso caminho.

Ouvindo Mendelssohn: 4. Sinfonie (»Italienische«) ∙ hr-Sinfonieorchester ∙ Paavo Järvi
Mafra, 3 de Abril de 2020
11h49m
Jlmg

********************

Os nossos pilares

Sem coluna vertebral, seríamos uns moluscos ou como as focas.
Teríamos de roçar o chão para ir daqui ali.
Como a vela ao barco, dão-lhe prumo e direcção.
Nos mantém de pé.
Podemos ir além.
Dar a volta ao mundo.
Nossos horizontes serão como procuremos.
As balizas de nossos olhos.
Isto para o nosso corpo.

Mas temos alma.

A sentimos dentro.
Uma energia infinita
Que nos alimenta vivos
E faz senhores da terra.
Suas dimensões transcendem os nosso braços.
Vão do chão aos céus.
Norteia nosso caminho.
Dá-nos conta de nossos limites.
Confinam com os de quem vai ao lado
E é semelhante a nós.

Seus pilares são os valores.
O bem e a justiça.
O que quero para mim
Quero também para o outro.

Fabricam paz e um sentimento de alcance infindo.
Vai do respeito ao amor.
Os alicerces da felicidade que ilumina e enriquece a vida.

Mafra, 2 de Abril de 2020
17h52m
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20788: Blogpoesia (669): Coluna de Aldeia Formosa para Buba (Fradique Morujão da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892)

Guiné 61/74 - P20814: (De) caras (150): Acossados pelo IN, numa agonia de 4 dias, entre 7 e 10 de outubro de 1965: seis camaradas, da CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423, no decurso da Op Lenda, em Gamol, Fulacunda, têm um destino cruel: 3 são abatidos, 2 suicidam-se e o último rende-se (Rui A. Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; e ex-cap mil, CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72)

Rui A.Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.

1. "Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra, muito pouco "guerreiro", da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (,o seu corpor nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui Alexandre Ferreira.

"Rumo a Fulacunda" é o título do primeiro livro de memórias do nosso amigo e camarada Rui A. Ferreira, que hoje vive em Viseu, lutando contra uma doença degenerativa, razão por que há anos que não colabora no nosso blogue, onde tem  mais de 70 referências.

Neste livro, conta-nos um cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423. Seis militares, perdem-se do grosso das NT,  dividas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, nesse próprio dia.

O Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Este episódio já aqui foi publicado, há quase 13 anos atrás (*). Muitos dos novos membros da Tabanca Grande nunca o leram, e o nome do Rui A. Ferreira tende a ficar esquecido. Queremos reavivar esta história, em homenagem às vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro; e o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma).

Por outro lado, e no atual contexto de confinamento, resultante da pandemia de COVID-19 e da declaração do estado de emergência, achámos por útil voltar a reproduzir este excerto do livro "Rumo a Fulacunda", agora noutra série, "(De)Caras" (**).

É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se.  Fica aqui o desafio aos nossos leitores, muitos dos quais poderão pôr-se na pele dos nossos infortunados camaradas: "Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"... 

Não, não é um "jogo de guerra", muito menos electrónico... Foi escrito com sangue, suor e lágrimas... Poderia ser um estudo de caso, relevante para a formação humana e militar e que levanta inúmeras questões, do foro militar, ético, jurídico, psicológico, psicotalógico, socioantropológico, filosófico,  etc.

Falta-nos mais informação sobre este episódio e o seu contexto: por exemplo, oficial ou oficiosamente, os nossos camaradas são dados como mortos em 6/10/1965, mesmo sem os corpos terem sido recuperados...

Por outro lado, só mais tarde se terá sabido do aprisionamento do José Veira Lauro... O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [, sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860],  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423.

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se:  voltaram ao local da emboscada ?... Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic),  num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do Alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,  a primeira baixa do grupo seria  o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o  José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a  10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicído) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os persegiu durante três ou quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda,  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário: L.G.;  fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).

(...) Na madrugada do dia sete de Outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23 [, a CCAÇ 1423], Capitão de Artilharia [ou Infantaria ?]  Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.


Seis homens isolados 
e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso [, alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [, da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo,  que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas 
do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia [, 9 de outubro de 1965] caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a 
dois suicídios

No último dia [, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.


No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


A morte do Alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do Soldado Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia, foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (****)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista nº 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...) (*****)




Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > "[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

______________

(**) Último poste da série > 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (122): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.

(...) Um outro camarada ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)


Militares mortos:

Armando dos Santos Almeida, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 /Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Queiriga, Vila Nova de Paiva / Corpo não recuperado.

Armando Leite Marinho, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Jugueiros, Felgueiras / Corpo não recuperado.

Fernando Manuel de Jesus Alves, 1.º Cabo / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Leiria / Corpo não recuperado.

José Ferreira Araújo, Soldado CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Povolide, Viseu / Corpo não recuperado.

Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, Alferes / CCaç 1420 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Belém, Lisboa / Corpo não recuperado.

[No portal da Liga dos Combatentes, Mortos no Ultramar, todos estes nossos camaradas continuam a ser dados com mortos,  em combate, no dia 6 de outubro de 1965.]

Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para  o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura. Pertence ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pires Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca; pertence ao BCAÇ 1858  (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67).