segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22786: O meu sapatinho de Natal (5): Doces e felizes recordações natalícias da minha infância (Joaquim Costa, V. N. Famalicão, ex-fur mil arm pes, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/4)

Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Natal de 1972 > Primeiro Natal passado no TO da Guine´: da esquerda para a direta os  Furriéis Gouveia, Martins, o meu amigo do Colégio das Caldinhas, Costa, Albuquerque e Beires... Fartos do vinho de “bidon”, na fila para o "Champanhe".

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. M
ensagem 
de Joaquim Costa  [, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351,  Cumbijã, 1972/74); natural de V. N. Famalicão, a residir em Fânzeres, Gondomar; eng téc e professor ref]:

Data - 6 dez 2021 12h47
Assunto - O Natal da Minha Infância

Meu caro Luís

Já se sente no ar o cheirinho de Natal.

Aqui vai o meu modesto contributo para o blogue (*),  lembrando com emoção os maravilhosos Natais da minha infância. Deixo ao teu critério a publicação do mesmo.

É minha convicção que o Menino Jesus (não o Pai Natal) me vai colocar no sapatinho o meu livro de memórias.

Um grande abraço
Bom Natal, Joaquim.


2. O Natal da Minha Infância

por Joaquim Costa


Passei dois Natais na Guiné, mas estranhamente tenho só uma vaga ideia do primeiro, em 1972, ainda periquito em Aldeia Formosa (foto acima), mas não tenho memória do de 1973, já em Cumbijã, por ventura absorvidos com as desavenças com os nossos vizinhos de Nhacobá.

Como acontece com a maioria de nós, os Natais que nos vêm à memória são sempre os da nossa infância:

A semana que antecedia o Natal era vivida com tanta intensidade e alegria que quase doía.

Ansiava com grande nervosismo e entusiasmo pela grande aventura que era ir com os meus quatro irmãos, noite escura, roubar um pinheiro a uma bouça do lavrador da aldeia para o madeiro da noite de Natal. Vivíamos este momento como numa patrulha noturna nas matas da Guiné já que se constava que nessa semana os filhos do lavrador emboscavam na mata, toda a noite, armados com caçadeira.

Na altura ainda não tinha chegado (do estrangeiro!) a moda do Pai Natal acompanhado do seu pinheirinho e da sua coca-cola. Hoje, para guardar os seus pinheiros, o agricultor só contratando dois grupos de combate armados de G3, bazuca e morteiro.

Por uma questão de estratégia militar, evitávamos estar muito tempo no campo de batalha, pelo que repetimos a patrulha noturna num outro dia para roubar pinhas mansas, que colocávamos junto do madeiro a arder para abrirem e libertarem os pinhões, elemento imprescindível para o jogo do rapa (rapa - tira - deixa - põe) fazendo horas para a missa do galo.

Estes “santos” pecados eram perdoados, sem grande esforço, pelo confessor, na véspera de Natal: 3 Padre Nossos e uma Salvé Rainha por cada pinheiro e uma Avé Maria por cada pinha.

Como eu executava com sentido de responsabilidade e zelo a tarefa que me estava reservada de apanhar musgo para o presépio!

Fazia questão em participar em todas as tarefas, nomeadamente na construção do presépio (fazendo chegar os bonecos), que de ano para ano era maior e mais sofisticado, com quedas de água e azenhas a funcionar

E a consoada?

Bacalhau (na altura comida dos pobres – para quem é bacalhau basta!), batatas e muita hortaliça.

As sobremesas todas preparas à base de pão:

  • rabanadas embebidas em vinho branco verde;
  • mexidos (também conhecido por formigos noutras regiões do país), pão embebido em água que ia ao lume até fazer uma papa e onde se juntava açúcar e canela (e algo mais que é segredo de chef); também se juntava: pinhões, uvas passas e nozes na percentagem dos estilhaços de carne no nosso arroz da Guiné.
  • sopas secas: camadas de fatias de pão sobrepostas embebidas em vinho branco e onde se acrescentava canela e açúcar.
Hoje sou eu que continuo a tradição fazendo os mexidos da minha Mãe (receita que guardei ditada por ela) mas onde os estilhaços já são mais que o pão (o meu filho Ricardo adora).

Todos os anos faço os mexidos já que recrio com emoção os felizes Natais da minha infância.

Mas o dia mais esperado era o dia seguinte, quando os pais autorizavam ainda de madrugada, dada a ansiedade, o ansiado assalto à lareira da cozinha onde estavam colocadas em fila as nossas chancas/socas onde o Menino Jesus todos os anos colocava, religiosamente, duas tangerinas e 3 pequenos bonecos de chocolate.

Claro que não faltava a roupa velha no almoço do dia 25.

Também nunca mais me saiu da memória o último dia de aulas antes do Natal que mais parecia o mercado da vila aos sábados de manhã.

Tive duas professoras na escola primária: a primeira, já muito gasta da idade, que foi a professora de todos os meus irmãos, metia-me mais medo que o óleo fígado de bacalhau (mistela que tínhamos de tomar todas as sextas feiras). A mulher era mal encarada, de mal com a vida, vingando-se nestas pobres criaturas. Granjeou na aldeia fama de excelente professora: disciplinadora, exigente e intransigente, atributos que agradavam, no contexto da altura, a todos os pais daquelas pequenas cobaias. Reguadas (a que eufemisticamente chamávamos de bolos!) por tudo e por nada, puxões de orelhas, vergastadas e orelhas de burro na cabeça virados para a parede era o habitual em todas as aulas. Mais parecia um campo de batalha.

Para nossa felicidade a mulher reformou-se, passando nós da noite para o dia com a nova professora. Passei a gostar da escola e particularmente da professora (meiga, de pele sedosa, simpática… e linda de morrer). Mesmo quando era apanhado a manter na boca o óleo fígado de bacalhau para logo a seguir deitar fora, sorria e fazia de conta que não via.

As duas professores eram de facto muito diferentes, ao ponto de baralharem as minhas ideias (incutidas pela velha professora e pela minha catequista) sobre o que é certo e o que é errado.

Em plena época natalícia e na sequência da leitura do texto: “o sapateiro”,   do nosso mítico livro do tempo do Estado Novo, fomos desafiados a fazer uma redação sobre o tema: “Se eu fosse rico”.

A minha redação foi apresentada como exemplo à turma (mais não fiz que despejar mecanicamente todos os ensinamento da professora e da minha catequista). 

 Com toda a convicção (???) com a minha riqueza ia fazer um hospital para os pobrezinhos, ia ajudar todos os pobres da aldeia dando-lhes uma casa e um galinheiro com galinhas e um galo, fazer obras na igreja da terra etc., etc., até ficar ainda mais pobre, mas feliz e o Céu como garantido.

Numa nova redação sobre o mesmo tema, repeti, obviamente, as mesmas ideias que tanto sucesso tiveram com a antiga professora. Com toda a surpresa minha, a nossa querida nova professora, para além de um medíocre a vermelho, valorizou antes a redação do colega de carteira que “rezava” assim: 

Se eu fosse rico comprava uma casa e umas socas novas para a minha mão; para mim comprava a casa do Dr. Cândido (uma casa senhorial na aldeia com dezenas de empregados), comprava um grande carro, arranjava um namorada e ia passear com ela para Lisboa…

Não obstante esta atitude, incompreensível da professora, percorreu-me um sentimento de pena e compaixão pelo meu colega de carteira, pela sua “infelicidade” e pelo inferno que tinha como certo…

A professora granjeou um respeito e carinho muito grande na aldeia, agora não só dos pais mas também dos alunos. Razão pela qual no Natal os nossos pais lhe enviavam todo o tipo de presentes: galinhas vivas, coelhos vivos, dúzias e dúzias de ovos, e todo o tipo de produtos que colhiam na horta

Para quem vivia no centro da vila num andar não era nada fácil acomodar todos estes produtos, pelo que no último Natal (na minha quarta classe) ganhou coragem e mandou-nos uma pequena mensagem para casa: 

Estou muito grata pelas prendas que amavelmente me enviam, nesta época natalícia, mas agradecia que este ano nada me enviassem pelos vossos filhos… mas, se mesmo assim, insistirem em enviar alguma coisa agradecia que o fizessem com: arroz, massa, conservas, açúcar...

Já o padre da freguesia se tinha antecipado trocando a tradicional oferta de ovos na visita pascal por um envelope fechado com dinheiro (que só podia ser notas), simplificando a logística…

Um bom Natal para todos. Joaquim Costa

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 6 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22784: O meu sapatinho de Natal (4): o que é feito de ti, camarada Dinis Giblot Dalot (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), o melhor condutor de GMC do mundo ? (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22785: Notas de leitura (1397): "Cartas de Amor e de Dor", por Marta Martins da Silva; Saída de Emergência, 2021, com prefácio do general Pezarat Correia (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não deixa de assombrar a variedade de cartas de amor que Marta Martins da Silva coligiu, uma paleta de cores muito garrida de sentimentos tão diversos, abarcando ansiedade dos pais que pedem insistentemente notícias, as namoradas e aqui vamos ter a temperatura de uma comissão por inteiro, desde do deslumbramento ao desalento, as mulheres, a quem nem sempre tudo se encobre e a rede das madrinhas de guerra, por vezes com remates felizes, radiantes descobertas de quem chega e tem a madrinha à espera e caem nos braços um do outro.
Deixa-se terceiro e último texto correspondência com muita dor... se também não nos esquecermos que há nestas cartas de amor implicitamente dor, tensão profunda na espera, o terror de vir a receber um aerograma como receberam aqueles vizinhos que ficaram em luto perpétuo.

Um abraço do
Mário



Cartas de Amor e de Dor, por Marta Martins Silva (2)

Mário Beja Santos

Descobriu na sua atividade jornalística na revista Domingo do Correio da Manhã, através de desabafos de antigos combatentes, que há uma vertente de guerras gradualmente sumidas na memória dos portugueses que merece ser revitalizada, é constituída por aerogramas, cartas, bilhetes-postais, folhas de apontamentos, fotografias, é um acervo de consulta marginal pelos historiadores e investigadores dos diferentes países envolvidos. No entanto, são documentos onde podemos aquilatar a vida emocional desses jovens, abruptamente retirados de um ambiente familiar, de uma profissão ou dos estudos, e que vazam na escrita o que descobrem em novas paragens, nem sempre contidos nas saudades, por vezes discretos na narrativa da hostilidade permanente, perguntando pela família e pelos amigos, disfarçando os estados de alma com descrições pacíficas sobre a comida, a vida do quartel, omitindo, tanto quanto possível, quem morre e quem se sinistra. Marta Martins Silva procura veios novos para interpretar o universo psicológico destes jovens vestidos de camuflado. Começou por os pôr a conversar com as madrinhas de guerra, e agora, em "Cartas de Amor e de Dor", Desassossego, chancela do grupo Saída de Emergência, 2021, parte de cartas da I Guerra Mundial, fala-nos do ano de 1961 em Portugal, explica a não-iniciados os dados fulcrais do Serviço Postal Militar e então entramos numa grande torrente, primeiro a do amor, os parentes mais próximos, as namoradas e as mulheres e todo este ímpeto epistológrafo desagua numa dor que não se pode esquecer, os pais que reclamam o corpo do filho, a carta que anuncia a morte de um amigo muito querido num outro teatro de guerra, as cartas anónimas infamantes.

A reportagem de investigação centra-se no fundamental em duas dimensões da correspondência entre os combatentes, os ente-queridos, as amizades e a todos aqueles a quem era imperativo dar notícia, mais não fosse para comunicar a morte de um filho, de um marido. A jornalista reparte o tema das Cartas de Amor em namoradas, mulheres e madrinhas. Procurando sempre contextualizar a correspondência do quadro de evolução da guerra, logo dá a estampa a carta de uma mãe para o filho em África, estamos obviamente no inicio da guerra, os chamados valores pátrios sobrelevam, de modo que esta mãe fala nos deveres, algo que nos recorda uma mãe patrícia nos tempos gloriosos do Império Romano quando escreve: “Se de si for exigido o sacrifício máximo: a vida, pois aceite, meu filho, com os olhos postos na Cruz de Cristo, Cruz que fomos nós mostramos ao Mundo inteiro, e na bandeira verde e rubra, que representa a pátria mais amada de todas as pátrias. A alma portuguesa é grande como este Portugal interno, amado e indivisível”.

Filhos que escondem às mães a aspereza das suas missões, filhos que nem se despediram dos pais para fugir aquelas cenas lancinantes no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, porque há pais que choram, mães que desmaiam, mulheres e namoradas que rabiam de dor e não a escondem. Numa sequência bem organizada, a autora põe estes pais e filhos dissimulando a saudade, pedindo mais notícias, e mesmo quando se dissimula não se resiste a um desabafo em conversa com a autora: “Um dos meus camaradas morreu em combate e nada disso a gente podia contar nas cartas. Vivia com eles mais de dezoito meses na frente militar norte e leste de Angola”. O camarada António Amadeu da Fonseca Frade, mortalmente atingido por uma rajada de Kalashnikov. O corpo deste soldado só viria a ser resgatado ao quinto dia por um grupo helitransportado. Há quem recorde que a mãe lhe entregou uma moeda embrulhada, como se fosse uma relíquia, muitos anos mais tarde, um dia depois da morte da mãe, deu com esta prova de amor indistinguível. Há uma mãe que pede ao filho que se faça acompanhar do seu terço, e que o ponha ao peito. E sempre falando ao querido filho, fazendo votos para que este ao receber o aerograma se encontre bem de saúde e, quando necessário, um pai pede ajuda ao filho combatente para admoestar o irmão mais novo um tanto rebelde: “Pedia-te que escrevesses ao teu irmão Jorge a dizer-lhe que estás informado ele não anda lá muito bem na escola, portanto a dares-lhe uma ensaboadela das tuas. Espécie de um conselho de um irmão mais velho experiente”. Há quem destetasse o bacalhau até ir para a guerra, depois habituou-se a tudo, quando faltava um mês para regressar a mãe escreveu-lhe um aerograma a perguntar “o que tu gostavas que a mãe te fizesse, estava a pensar fazer um almoço e um jantar para uns amigos, diz-me o gostavas que a mãe fizesse”. E ele respondeu: “Faz o que tu quiseres, até bacalhau com batatas”.

Há namoradas, súplicas, arrufos, desânimos, as fúrias dele quando ela conta que participou numa festa, há narrativas envinagradas, há pedidos de fidelidade, tais como: “Gostava de te pedir que nunca abusasses das africanas porque há quem diga aqui na metrópole que os soldados brancos se servem das raparigas daí”. Há desabafos de solidão, há quem conte a autora muitos anos depois que chegou o anoitecer, pegou na motorizada e foi à casa onde a namorada trabalhava como ama. “Dirigimo-nos um ao outro e o reencontro deu-se num forte abraço e num longo e recatado beijo. O tempo suficiente para nos apaziguar toda a saudade que evaporava de nós naquele momento”. Há quem ajudasse os camaradas analfabetos, recorda alguém escreveu cinco aerogramas com cinco endereços diferentes que começavam sempre assim: “Meu eterno amor: aqui longe de ti e das tuas caricias passei mais um domingo só. Só com a minha dor e o meu desespero e como este outros domingos já se passaram e muitos mais tenho de passar e eu tal como a maioria dos meus colegas temos de resistir a esta tragédia quando ainda há pouco tínhamos uma vida tão alegre”. E o escrevinhador de então comenta a autora: “Escrevia frases de todos os géneros. Muitas de cariz sexual. Pedidos dos maridos para as esposas se portarem bem. Muitas juras de amor que, na maioria das vezes, se foram perdendo com o decorrer dos dias. Li cartas de mães extremamente pungentes”. Há muitas zangas pelo caminho que vão sarar na carta seguinte, há quem escreva dando pormenores, caso das descrições da ceia de Natal.

Há correspondência de marido e mulher e quem, pelo caminho, também mantinha cartas com as madrinhas de guerra. O artista Manuel Botelho, com Marta Martins da Silva conversou, montou uma instalação baseada num grande maço de cartas que adquiriu na Feira da Ladra, explorou admiravelmente o entusiasmo narrativo dos primeiros meses, de ambos os lados, e gradualmente foi grassando uma melancolia, uma inquietação, os últimos meses eram manifestamente duríssimos, o casal afligir-se com a dor de tanta espera e até o medo de sucumbir mesmo em cima do regresso.

Às madrinhas de guerra, caso houve acabaram em casamento, um afilhado descobrira o mau casamento que fizera, houve divórcio e veio a entender-se muito bem com a sua madrinha. São histórias maravilhosas, nota-se que o grau de desabafo ganha intensidade, o tempo passa e a intimidade cresce. Há um relato soberbo que a autora apanha por inteiro e vale a pena reproduzir, ele regressa à metrópole, “vê-la pela primeira vez foi engraçado. Eu sabia que ela era pequenina, eu tinha 1,65m e era magrinho, cheguei ao pé dela para lhe dar um beijinho, mas ela baixou-se e deu-lhe um beijinho na cabeça”. Despede-se da fábrica em Alcobaça e vai para Setúbal, trabalham juntos. “Namorávamos quando íamos e vínhamos do trabalho, depois à noite ia à casa dela namorar mais um bocadinho, mas sempre vigiados, ninguém me conhecia e surgiram determinados boatos a meu respeito e a família dela tinha medo”. Para conseguir casar com a sua amada, que antes de ver ao vivo conheceu por carta, contou com grande ajuda do padrasto. “Foi ele que me deu tudo para eu casar. Eles queriam que eu vivesse com eles, mas eu quis alugar uma casa. A renda era cara, e embora eu ganhasse mais ou menos bem, as coisas foram difíceis no principio”.

E não há cartas de amor sem as cartas de dor, tantas vezes elas se confundiram, é dessas dores que falaremos em seguida, é um dos pilares determinantes desta bela reportagem de investigação que ninguém deixará indiferente.

(continua)

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Nota do editir

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22762: Notas de leitura (1396): "Cartas de Amor e de Dor", por Marta Martins da Silva; Saída de Emergência, 2021, com prefácio do general Pezarat Correia (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22784: O meu sapatinho de Natal (4): o que é feito de ti, camarada Dinis Giblot Dalot (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), o melhor condutor de GMC do mundo ? (Luís Graça)


Guiné > Região de Bafatá  > Sector L1 (Bambadinca)  > Estrada de Bambadinca-Mansambo-Xitole > Ponte do Rio Jagarajá > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)> "Eu, o então Fur Mil Ap Armas Pesadas Inf Henriques, pau para toda a obra, pião de nicas, e o soldado condutor autorrodas Dalot, talvez o melhor condutor de GMC do mundo ou, pelo menos, o melhor que eu alguma vez conheci...  


Foto (e legenda): Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Esposende > Fão > 1994 > A primeira vez que a malta de Bambadinca (1968/71), camaradas da CCAÇ 12, e outras subunidades, como o Pel Caç Nat 52,  adidas ao comando do BCAÇ 2852, se encontrou depois do regresso a casa... Este primeiro encontro foi organizado pelo António Carlão (Mirandela, 1947- Esposende, 2018)  

Mostra-se aqui um pormenor da foto de grupo. Na primeira fila, da esquerda para a direita:

(i) fur mil MAR Joaquim Moreira Gomes, da CCAÇ 12  [, vivia no Porto, na altura ];

(ii) sold cond auto Dinis Giblot Dalot [, empresário, vivia em Aljubarrota, Prazeres].

Na segunda fila de pé, da esquerda para a direita:

(iii) Fernando [Carvalho Taco] Calado, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 [, vive em Lisboa];

(iv) ex-alf mil manutenção material,  Ismael Quitério Augusto, CCS/BCAÇ 2852 
 [, vive em Lisboa];

(v) ex-fur mil  at inf António Eugénio Silva Levezinho [, Tony para os amigos, reformado da Petrogal, vive  em Martingal, Sagres, Vila do Bispo];

(vi) ex-capitão inf Carlos Alberto Machado Brito, cmdt da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 [, cor inf ref, vivia em Braga, tendo passado pela GNR];

(vii) Pinto dos Santos, ex-furriel mil de Operações e Informações, CCS / BCAÇ 2852,
 [, vivia em Resende].


Foto (e legenda): © Fernando Calado (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estou a rever-te, há 52 anos atrás, na Estrada de Bambadinca-Mansambo-Xitole. Eu e tu, o Dalot, o Dinis G. Dalot, ou melhor, o Dinis Giglot Dalot. Sguramente tu foste o melhor condutor de GMC que eu alguma vez conheci (!). Berliet e GMC nas tuas mãos,  carregadas de sacos de arroz ("bianda"), não ficavam atoladas na famigerada estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, a menos que rebentassem debaixo de uma mina. E mesmo assim, era preciso que os cabos de aço ou os troncos das árvores não aguentassem... 
 
Reguila, setubalense, franzino, seco de carnes, condutor de pesados na vida civil, com boas manápulas para segurar um daqueles volantes de GMC ou Berliet, apanhaste logo no princípio da comissão, em julho de 1969, cinco dias de detenção. Quem foi o s.... que te deu cinco dias de detenção ?....Certo, por seres reguila, setubalense, condutor de pesados, descendente de franceses, e se calhar por seres o melhor condutor de GMC que eu alguma vez vi na vida... 

Gostava de te rever, Dalot. Sinceramente, gostava de te rever. Tenho um numero de telemovel, teu, mas se calhar antigo
 Ligo, vai para o "voice mail". Tu fazes parte da mítica galeria dos meus heróis, tu e todos os bravos soldados condutores autorrodas que passaram pela Guiné, a começar pela nossa CCAÇ 2590/CCAÇ 12.

Eu dizia-te que era preciso ser maluco para conduzir uma GMC. Tu ofendias-te: eras o mais profissional dos nossos condutores auto. Não sei porque não chegaste a 1º cabo: eras  profissional de pesados já na vida civil. E continuaste  depois, na peluda, com uma empresa tua, se não erro. Mas eu sentia que a  porrada te magoara muito, mexera como teu brio, a tua autoestima. 

Reencontei-te em 1994, em Fão, Esposende, quando a malta de Bambadinca (CCS/BCAÇ 2852, 1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) se juntou pela primeira vez. Inicialmnete, vivias em Porto Alto, Samora Correia, Benavente. Depois mudaste a empresa para Aljubarrota, Batalha. Bate certo ? Perguntei ao Adélio Monteiro, mas também não sabe do teu atual paradeiro.

Mas voltando aos dias 17 e 18 de setembro de 1969... Há dias de sorte, escrevi eu: na vida, na guerra, no jogo, no amor… Recordo-me bem desta operação logística, Op Belo Dias II, em que perdemos uma heróica GMC do tempo da guerra da Coreia (daquelas que gastavam 100 aos 100, lembras-te ?).

Não sei se era lenda. As GMC andavam a gasolina, E tinham um depósito de 150 litros, com alcance operacional de c. 480 km e velocidade máxina de 72 km/hora. Em teoria, gastava pouco mais de 30 aos 100.  Mas picadas da Guiné, com carga e com guincho, é possível que gastasse o dobro ou até o triplo....O modelo era GMC 6x6 , caixa aberta, de 2 1/2 t, m/1952, do tempo da guerra da Coreia e herdeiro do célebre camião GMC CCKW , também conhecido como "Jimmy", o camião de transporte de carga do Exército Norte Americano  de que se produziram, entre 1941 e 1945,  572,5 mil unidades.

A CCAÇ  2590 / CCAÇ 12 tinha duas, foram vitimas de minas A/C. Tu, Dalot,  adoravas conduzi-las. Ninguém melhor do que tu para livrar uma GMC de cair na cratera de uma mina coberta de água da chuva ou de atolar-se na berma da estrada… Berma ? Estrada ? Qual berma, qual estrada!... Picadas cheias de minas e armadilhas!...

Ninguém melhor do que tu para conduzir este mamute de ferro, de 4 t, mais duas toneladas e meia, senão três,  de sacos de arroz… Ninguém melhor do que tu, enfim, para desatascar outras viaturas, civis ou militares,  à força de guincho. 

Só não tinhas faro era para as minas, que isso era tarefa dos picadores. Aliás, na galeria dos heróis desta guerra (há sempre heróis em todas as guerras), eu poria também as GMC, os condutores das GMC e os picadores…

O que aconteceu exactamente nesse já longíquo dia 18 de Setembro de 1969 ? Tínhamos saído, na véspera, de Bambadinca, de manhã muito cedo, como de costume, para fugir ao inferno do calor e da humidade do dia. E da poeira, embora se  estivesse em plena época das chuvas. Era um enorme coluna de viaturas militares carregadas de abastecimentos  para três companhias, unidades de quadrícula, em Mansambo (CART 2339), Xitole (CART 2413) e Saltinho (CAÇ 2406).

Ao todo viviam nestas unidades e seus destacamentos mais de  meio milhar de homens, fora a população local e as milícias que dependiam  inteiramente (caso de Mansambo, aquartelamento que fora construído de raíz e não tinha tabanca nem campos de cultivo...) dos abastecimentos feitos pela tropa. 

Nós levávamos-lhes praticamente tudo, até o correio.... Ou seja: o gasóleo (para as viaturas e o gerador eléctrico), o petróleo (para os frigoríficos), o arroz, a massa, o feijão, a carne, o bacalhau, o azeite, o vinho, as latas de conserva, as bolachas, as batatas, as bebidas em garrafa e em lata, os artigos de cantiga, e os demais mantimentos para um mês ou um mês e meio. Além dos cunhetes de munições, as granadas de morteiro, bazuca e obus, os materiais de construção, os sacos de cimento, etc.

Um dia seria interessante publicar a lista completa dos artigos e as respectivas quantidades que faziam parte dos nossos comboios de reabastecimento. Na galeria dos heróis desta guerra também estão os que alimentavam o nosso ventre insaciável , os homens da manutenção militar e os que faziam chegar os mantimentos, desde Bissau em LDG até ao Xime (no caso da Zona Leste) e depois daí em colunas até às sedes de sector ou comando operacional (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego…). Ou através dos "barcos turras" que chegavam a Bambadinca. 

Era um comboio com várias dezenas de viaturas, incluimdo viaturas civis, de comerciantes de Bambadinca, Bafatá, Galomaro, Xitole, o Rendeiro, o Regala, o Jamil, as casas comerciais de Bafatá. como a Gouveia. As Berliet e as GMC (e, mais tarde,  as camionetas civis, já no decurso da Op Belo Dia III, em novembro de 1969) transportavam a carga, mas o condutor levava sempre escolta (menos de uma secção).

Para se chegar a qualquer uma das unidades acima referidas não havia mais nenhuma alternativa (terrestre). A estrada de Galomaro-Saltinho estava interdita, pelo que as NT ali colocadas dependiam do abastecimento feito a partir de Bambadinca. No entanto, a própria estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole estivera interdita entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969 (*). 

O Op Belo Dia, a 4 de Agosto, já aqui sumariamente descrita (*),  destinou-se justamente a reabrir esse troço fundamental para as ligações do comando do sector L1 com as suas subunidades de quadrícula a sul. Um mês e tal depois fez-se uma segunda operação para novo reabastecimento, patrulhamento ofensivo e reconhecimento, a Op Belo Dia II.

2. São as peripécias dessa operação (Op Belo Dia II) que se relatam aqui. Mas ainda a propósito de meios de transporte, convirá referir que só Bambadinca possuía uma pista, com cerca de 150 metros, permitindo a aterragem de aeronaves como a Dornier, a DO-27.

No meu tempo o sargento piloto Honório, cabo-verdiano, era uma figura muito popular entre as NT, porque nos trazia o correio e alguns frescos. A sua fama era lendária, pela sua coragem e destreza, para não dizer "maluqueira" (, tolerada, mas não apreciada pelos outros pilotos da BA 12, em Bissalanca)... Era capaz de aterrar numa nesga de terra, dizia-se.  Em Mansambo só havia heliporto. No Xitole, também havia pista para avionetas.

De qualquer modo, o helicóptero, o AL III, só era usado para fins estritamente militares: apoio de helicanhão, transporte de tropas especiais e heliassaltos, evacuações Y para o hospital militar de Bissau. Argumentava-se que o helicóptero era um luxo, custando 15 contos por hora (mais do o ordenado mensal de dois alferes)…

Em contrapartida, as colunas de abastecimento da guerrilha e das suas populações eram feitas por carregadores, a pé, descalços, em bicha de pirilau, incluindo mulheres e até crianças e muitas vezes sem escolta militar, correndo o risco de serem interceptados pelas NT, como acontecia com alguma frequência na região de Missirá, a norte do Rio Geba (como em Chicri, a 12 de Setembro de 1969: muitas vezes as NT não faziam a distinção entre combatentes, armados, e elementos civis da população controlada pelo PAIGC que servia de carregadores; neste caso, levavam artigos comprados nas nossas barbas, em Bambadinca, onde só havia duas lojas, nas mãos de tugas, a loja do Rendeiro e a loja do Zé Maria)…

Porquê falar em sorte ? É que eu ia justamente à frente da viatura que accionou a mina, a tua vitura,a tua GMC,  Dalot. E ia justamente do lado do pendura, com uma perna de fora… À turista, como quem vai num alegre e matinal safari algures num parque no Quénia… Em suma, ia no "lugar do morto"... 

A pouco e pouco, o periquito ia ganhando confiança… Com três meses e meio de Guiné, e baptismo de fogo ainda muito recente (na Op Pato Real, a 7 de Setembro, na região do Xime, Ponta do Inglês)  considerava-me já quase um "veterano"…

Recordo-me da viatura em que eu ía: um Unimog 404… Apesar da relativa tranquilidade que nos davam a experiente equipa de 12 picadores que iam à nossa frente com dois grupos de combate apeados, a proteger os flancos, eu tinha recomendado ao condutor do Unimog (, já não me lembro o nome: o Adélio Monteiro não  era, vinha mais atrás ) que seguisse milimetricamente o rodado da viatura da frente… Um desvio de um milímetro podia ser fatal para o artista… Tu, Dalot, que  atrás de mim,  levavas um bicho que tinha dez rodas, dois rodados duplos atrás, e sete toneladas de ferro e arroz...

Daquela vez vez foste tu, Dalot,  e a tua GMC que voaram… Eu fiquei para a próxima, já lá mais para o fim da comissão, em 13 de janeiro de 1971, em Nhabijões... Também numa GMC!... Era a minha sina!...

A estrada (se é que se podia chamar estrada aquilo!), invadida pela floresta (, apesar da  desmatação recente, em abril/maio de 1969, Op Cabeça Rapada), as bolanhas, os curso de água, os charcos, etc. era mais estreita que as viaturas em certos pontos… Uma delícia para os sapadores do PAIGC, um quebra-cabeça para os nossos picadores, um stresse desgraçado para aqueles de nós que faziam guarda de flancos ou que iam em cima das viatura, ou os que conduiam as viaturas…

Em suma, gastávamos uma boa parte da nossa energia mensal a abastecer-nos uns aos outros em vez de fazer a guerra ao IN…

Estamos a falar da segunda quinzena de setembro de 1969, em que realizámos  mais outra operação a nível de batalhão afim de escoltar uma coluna logística do BCAÇ 2852 para as companhias de Xitole e Saltinho (Op Belo Dia II). Uma operação com 2 destacamentos (A e B) (*)

Dois Gr Comb [Grupos de Combate] da CCAÇ 12 (2º e 3º), um da CART 2339 [Mansambo] e o Pel Caç Nat 53 (que seguiria depois com o Dest B para o Saltinho) formavam o Dest [Destacamento] A,  cuja missão, além da picagem do itinerário, era escoltar a coluna até ao limite da ZA-Zona de Acção da CART 2339 [Mansambo] onde se efectuaria o transbordo da carga para outra coluna da CART 2413 [Xitole].

A coluna que chegou a Mansambo às 17.30 do dia 17 de Setembro, proveniente de Bambadinca, donde saira de manhã (longas horas inteiro para se fazer 18 km), prosseguiria no dia seguinte, tendo-se processado sem incidentes de maior até à ponte do Rio Jago, a cerca de 3 km do aquartelamento de Mansambo, altura em que se fez um alto para recompor a carga da viatura que seguia em 3º lugar. Passámos a noite nos "bunckers" de Mansambo.

Ao retomar-se a marcha, o rodado intermédio direito da GMC do Dalot (MG-17-21) que vinha imediatamente a seguir àquela, e que pertencia à CCAÇ 12, accionou uma mina A/C (anticarro) reforçada, tendo-se voltado espectacularmente. A viatura ficou muito danificada, tendo-se inutilizado parte da sua carga de 3 mil kg de arroz. Em virtude de ter sido projectado, ficou gravemente ferido um 1º cabo do Pel Caç Nat 53. O condutor da GMC, o soldado Dalot, saiu ileso.

A mina não fora detectada pela equipa de 12 picadores, seguida de 2 Gr Comb que progrediam na frente.

Alguns quilómetros à frente, junto à ponte do Rio Bissari foram detectadas e levantadas mais 3 minas (A/P) que deveriam fazer parte do campo de minas implantado pelo IN posteriormente à Op Belo Dia I, e das quais 7 já sido levantadas até então.

Pelas 13h do dia 18 de Setembro deu-se finalmente o encontro dos 2 Dest, tendo-se procedido ao transbordo da carga.

No regresso a coluna foi sobrevoada várias vezes por uma parelha de Fiat G-91 cujo apoio estava previsto na ordem de operações. Mansambo foi atingido pelas 17 h do dia 18, depois de se ter armadilhado a viatura cuja remoção se verificou ser impossível com os meios disponíveis na ocasião.

Inconsolável, tu, Dalot, lá deixaste  a tua querida GMC, de matrícula MG-17-21... A Guiné era um  cemitério de sucata, como viaturas (militares e civis) abandonadas pelas NT, destruídas por minas e roquetadas... Não tenho a certeza se esta viatura foi posteriormente desarmadilhada e rebocada para Bambadinca... Os custos de uma tal operação eram sempre elevados.

Onde quer que estejas, camarada Dalot (e eu espero bem que estejas vivo e de boa saúde), desejo-te as maiores felicidades possíveis e, já  agora um Natal quentinho, livre da Covid-19. Telefona-me para o 931 415 277. Teu camarada, Henriques.  (**)

As minhas felicitações natalícias são extensivas aos demais condutores autorrodas, todas eles gente brava,  da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 que viajaram comigo no T/T Niassa, de 24 a 29 de maio de 1969, de Lisboa com destino a Bissau. Alguns infelizmente já não estão vivos. A lista é antiga (e tem de ser revista). Acrescento também os mecânicos auto:

1º Cabo Cond Auto Luís Jorge M.S. Monteiro [, vivia em Vila do Conde ou Porto ?];

Sold Condutor Auto António S. Fernandes [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto Manuel J. P. Bastos [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto Manuel da Costa Soares [, morto em, mina A/C,em Nhabijões, em 13/1/1971];

Sold Cond Auto Alcino Carvalho Braga [, vive em Lisboa];

Sold Cond Auto Adélio Gonçalves Monteiro [, comerciante, Castro Daire; é membro da nossa Tabanca Grande];

Sold Cond Auto João Dias Vieira [ vive em Vila de Souto, Viseu];

Sold Cond Auto Tibério Gomes da Rocha [, vivia em Viseu, faleceu em 6/12/2007;

Sold Cond Auto António S. Fernandes [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto Francisco A. M. Patronilho [, vive em Brejos de Azeitão];

Sold Cond Auto Manuel S. Almeida [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto António C. Gomes [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto Fernando S. Curto [, vive em Vagos];

Sold Cond Auto Aniceto Rodrigues da Silva [,falecido em 3/1/2021;  membro a título póstumo da nossa Tabanca Grande];

Sold Cond Auto Manuel G. Reis [, morada actual desconhecida];

Fur Mil MAR Joaquim Moreira Gomes [, vive em Esposende ou Maia ?];

1º Cabo Mec Auto Renato B. Semedeiros  [, vivia na Reboleira, Amadora];

1º Cabo Mec Auto António Alves Mexia [, morada actual desconhecida];

Sold Mec Auto Gaudêncio Machado Pinto [, morada actual desconhecida].




Guiné > Região de Bafatá  > Algures > 1973 > Uma Daimler, avariada, é levada em cima de uma GMC... Sítio ? Talvez Bambadinca, talvez Bafatá, junto ao Rio Geba... quando o João Carvalho veio de férias à metrópole, vindo de Canjadude, Gabu, onde estava aquartelaad a sua CCAÇ 5.  (Em 1971, no CTIG havia pouco mais de duas centenas e meia de GMC, das quais praticamente metade estavam inoperacionais... E das 108 Daimlers existentes, 75% estavam inoperacionais.

Foto (e legenda): © João Carvalho (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné> Região de Bafyá > Sector L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1961) > Escala: 1/50 mil > Troço da Estrada de Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho> Assinalada, com um círculo a azul, a ponte do Rio Jago onde a GMC MG-17-21, conduzida pelo Dalpot,  com 3 toneladas de arroz, accionou uma mina anticarro, no dia 18 de Setembro de 1969. O quartel de Mansambo vem sinalizado com um retângulo.

A distância de Bambadinca, a Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole e Saltinho era, respectivamente, 18, 33, 35 e 55 quilómetros. As colunas logísticas, de reabastecimento, podiam levar um dia ou até mais (na época das chuvas) a fazer este percurso perigoso, npomeadamete o troço Mansambo-Xitole   (interdito entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969 ). A CCAÇ 12 participou em diversas colunas logísticas a Mansambo, Xitole e Saltinho (junto ao Corubal) e mesmo Gondomar. (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)

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Notas do editor: L.G.

Vd. também poste de 20 de maio de  2005 > Guiné 63/74 - P22: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)

(...) Desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

Nove meses depois, fez-se a abertura desse itinerário, mais exactamente a 4 de Agosto de 1969. Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Destacamento A. (...)

domingo, 5 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 – P22783: Agenda cultural (793): Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes, 10º livro do José Saúde: sessão de lançamento, 11/12/2021, 15h00, Vila Nova de São Bento. Apresentação do prof David Monge da Silva.

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem: 

~

Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes 

Camaradas,

A vida é, no fundo, uma encruzilhada de eternas emoções. Palmilhamos um caminho, que já vai longo, e dele recolhemos eternas e saudosas recordações. Não pretendo, e muito menos desejo entrar para um campo armadilhado onde o imprevisto era uma constante nos nossos recuados tempos de uma Guiné a ferro e fogo. Mas, reviver memórias que passam simplesmente pelo trilho de uma terra que um dia me viu nascer e que mais tarde me consumirá na eternidade.


Vou lançar o meu décimo livro no próximo dia 11 de dezembro, 15h00, no Cine Teatro Municipal Maria Lamas, Avenida da Liberdade, na minha terra e cujo título é: “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”. Uma obra que cruza gerações e onde explanei-o temáticas diversificadas.

Aliás, nesta obra, que se estende pelas suas 299 páginas, relato a origem da localidade e os povos que lhe deram o nome em plena guerra da Restauração de 1640 (que durou 60 anos) aquando a dinastia dos Filipes se apoderou no nosso reino, das suas festividades mais marcantes (Festa do Círio e das Santas Cruzes, nomeadamente), assim como da sua originalidade, ou a forma que a história as relata, a antiga feira anual, em setembro (1, 2 e 3), gentes que marcaram a localidade, as antigas profissões, de pessoas simples que ficarão memorizadas na terra, os costumes da aldeia, as virtualidades dos mestres, o início do seu futebol, 1923 e o seu processo evolutivo, enfim, um conjunto de situações que nos leva a viajar no tempo, onde ressalta o êxodo rural para os grandes centros populacionais, Lisboa e os seus arredores assumindo-se como ponto fulcral, as “carradas” de famílias que diariamente deixavam a terra que os vira nascer em procura de uma vida melhor, da emigração, conterrâneos que partiam a salto para países que lhe proporcionavam um futuro mais risonho, o contrabando, ou do uivar dos lobos, as lutas politicas dos trabalhadores rurais, o Cante Alentejano elevado ao ponto mais alto, Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a 27 de novembro de 2014 numa reunião do Comité em Paris, os jogos da minha infância, os amigos, as conversas dos mais velhos, mulheres e homens sábios que profetizavam o tempo e as culturas no campo, os petiscos, o tempo da miséria, o tempo das crianças com os pés descalços, enfim, um quase interminável número de circunstância a que propus e deixarei escrito para o meu povo.

E eis que a obra relata, também, os mortos nas três frentes na antiga guerra Colonial – Angola, Moçambique e Guiné – oriundos de Aldeia Nova de São Bento. Deixo-vos, pois, um curto texto sobre os moços que faleceram na guerra ultramarina.

XIII 
Mortos na guerra colonial originários da aldeia

Curvo-me perante a sensibilidade que me vai na alma, porque foi uma evidente e indesmentível realidade, que nos três palcos de guerra – Angola, Moçambique e Guiné – foram muitos os conterrâneos que pisaram o palco da peleja africana. Uma guerra que teve o seu começo em Angola, em 1961, e terminou com o 25 de Abril de 1974. Um acontecimento estigmatizado que, aliás, terá sido o mais marcante da sociedade portuguesa no Séc. XX e que atravessou várias gerações. Eu, tal como muitos amigos da aldeia, fui combatente na Guiné e conheci os horrores da guerra e o tempo de paz. Aliás, no meu livro, o nono, “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”, fica explícito a dimensão de uma peleja que não deu tréguas.

……………………………………………

Desse lote de “miúdos” que um dia partiram para um palco deveras adverso e que para eles lhes era de todo desconhecido dado que não possuindo o mínimo de saberes sobre o fatídico conflito, “carne para canhão” como se alcunhavam os antigos combatentes, centralizo esta curta descrição naqueles moços, então nossos amigos e companheiros, alguns dos bancos da escola, que encontraram a morte na azarenta guerra do Ultramar: António Inácio Guerreiro, Bento Rebocho da Silva, Bento Valente Pica, Francisco Laneiro Rodrigues, João Pica Monteiro, Joaquim Soares dos Reis, José Francisco Vitória (A-do-Pinto), José Luís Evaristo, José Valente Morais e Luís Batista Gomes.

II 
Recordando as nossas reminiscências de menino 
Memórias dos anos de 1950 
Pequeno texto que refere a época em que vivemos: o Natal

Na época de Natal, faziam-se os presépios. Os rapazes iam ao musgo das árvores e preparavam o seu presépio. Uma prata formava o lago. E lá estavam os Reis Magos, a Sagrada Família, os pastores com os seus rebanhos, o moinho, o regato de água e o algodão para simula a queda de neve.
As noites invernosas não eram nada convidativas. A família reunia-se em volta da lareira. Um lume feito no chão aconchegava a totalidade dos elementos familiares. Depois lá vinham as histórias mirabolantes contadas para a imaginação das crianças tentarem desdenhar. Noutros casos, surgia uma anedota ou uma brincadeira de ocasião.
Pelo meio do imprevisto, e de uma amena cavaqueira, a chuva batia compulsivamente num constrangido teto feito de telhas de barro assentes em canas vindas de um barranco próximo, ou de um local húmido das redondezas do povoado. Valia o calor emanado das labaredas e o sempre sonhado colo da mãe. E quando as noitadas se prolongavam para horas que iam para além do comum, eu, docilmente, adormecia no regaço de minha mãe.
Meu pai era um homem do campo. Conhecia os adágios populares. Vivia permanentemente na sombra dos ditos que diziam comandar a lida dos trabalhos futuros que a própria natureza decidia. Tudo em prol da labuta seguinte. Os sinais emanados da lua, ou do astro, assim como as mudanças do vento, ditavam afazeres futuros. O cheiro do enxofre trazido pelo vento do minério arrancado às entranhas da terra proveniente da Mina de São Domingos, aglomerado populacional próximo da aldeia, trazia odores que intrinsecamente se associavam às eventuais calamidades, a chuva que estava para chegar, ou a temperatura no quente verão que ia subir. Conhecer os sinais do tempo era uma prioridade para o homem desenhar as suas tarefas seguintes.

Camaradas, e é neste permanente deambular pelo mundo da escrita, a minha praia, que a memória, já usada, continua a vaguear, mas até um dia que a mente o permita.


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

 3 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22777: Agenda cultural (792): Apresentação do livro "Cartas de Amor e de Dor", de Marta Martins Silva, a cargo do Gen Pedro Pezarat Correia, dia 7 de Dezembro, às 18h30 na FNAC Colombo

Guiné 61/74 - P22782: Blogpoesia (762): "Pelas ruas de Berlim"; "As nuvens da horta" e "A vida é uma lição", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


Pelas ruas de Berlim

Correm rios de frio pelas ruas de Berlim.
Não tarda vira gelo.
Caiando de branco o chão negro.
Onde dormita o húmus da fertilidade.
Se acocoram ali os vermes
Fugindo à voragem devastadora dos corvos famintos.
Cá de cima, os olhos se deliciam com a brancura alvinitente que veste a natureza.
Consolação para a tristeza imobilizadora do covid 21.


Berlim, 26 de Novembro de 2021
16h57m
Jlmg


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As nuvens da horta

As nuvens cansadas voltam ao mar.
Secaram ao sol ao fogo de Agosto.
Morrendo de sede encheram a pança.
Voltaram à terra emprenhando as hortas de couve e flor.
Grelaram-lhe os olhos.
Encheram as mesas de sal e azeite.
Quem me dera comê-las faminto
Como foi em criança.


Berlim, 2 de Dezembro de 2021
20h00m
Jlmg


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A vida é uma lição

Nossos erros são a aprendizagem.
Quem os desperdiça despreza a vida
E as lições que ela nos dá.
Eles são nosso caminho
Que os pés aprendem bem.
Não importa voltar para trás.
É maior o bem que o que custa.
Para é perder tempo.
Para ganhar há que perder.
Não haveria grandes obras
Se seus autores tivessem desistido.
Não importa o tempo que falta.
Enquanto há vida há que viver.


Ouvindo "Liebestraum" de Liszt

Berlim, 3 de Novembro de 2020
18h27m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22736: Blogpoesia (761): "Não deixes arrefecer"; "Semeio palavras"; "Ramagens de letras" e "Nem só massa com feijão", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22781: Parabéns a você (2011): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil Arm Pes Inf da CCAÇ 2366/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete e Quinhamel, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22771: Parabéns a você (2010): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2771 e CCAÇ 3477 (Nova Sintra, Guileje e Nhacra, 1970/72)

sábado, 4 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22780: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXI: Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico, fevereiro de 2020


Taiti > Polinésia Francesa > 27 de fevereiro de 2020 > O António e a a esposa, a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai,


Taiti > Polinésia Francesa > 27 ou 28 de fevereiro de 2020 > Uma das praias da ilha


Pormenor do quadro a óleo de Paul Gauguin (1848-1903), "De Onde Viemos? O Que Somos? Para Onde Vamos?
, de 1897. Imagem considerada de domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 8 de novembro último.


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.

Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico

por António Graça de Abreu


Sob o caramanchão de glicínias lilás,
as abelhas e eu,
tontas de perfume.


Sophia de Mello Breyner Andersen


Lembrei-me de Sophia, cujos versos trago comigo nesta viagem de volta ao mundo, grande senhora da poesia portuguesa do século XX, a quem os deuses concederam o privilégio da exaltação da palavra poética, em lusitanas paragens, mais por grécias do que por polinésias.

Sophia recorda que existem perfumes que nos entontecem, tal como acontece às abelhas, espalhados por todas as proximidades e lonjuras do mundo.

Chego a Tahiti, em finais de Fevereiro de 2020, perdida no imenso Pacífico, protectorado francês desde 1842. Tenho dois dias para tentar descobrir, entender onde estou.

Papeete, com 30 mil habitantes – franco falantes, gente simpática e educada --, é a capital da ilha. Cidade limpa, organizada, no mercado central rivalizam as cores das flores, da roupa e da comida. 

Por aqui, as mulheres costumam colocar uma flor por cima da orelha esquerda ou da orelha direita. A flor na cabeça, à esquerda, significa que a mulher já é casada, ou comprometida. A flor à direita corresponde a uma donzela livre de compromissos, esperando o namoro de um qualquer príncipe ou plebeu. Nesta ilha, esquerda e direita, civilizadas, em flor, são duas opções indiscutíveis. Era bom que fosse assim, em todo o mundo.

Tahiti tem uma superfície de mil e quarenta e dois quilómetros quadrados, um pouco maior do que a nossa Madeira. Nos dois dias de estadia, circundei toda a ilha em transportes públicos, só me faltou avançar para a península de Tahiti Itti, com baías e praias de areia branca em todo o seu esplendor que só visitarei numa próxima reencarnação, quando aproveitar um fim de semana, lá pelas paragens do céu, para regressar a Tahiti, nadar num mar esmeralda e me pôr a tostar em Pointe Vénus, neste pedaço de paraíso na terra.

Na primeira meia volta à ilha procurei, na aldeia de Maitreia, o museu Paul Gaugin, junto à última casa que o pintor habitou, antes do exílio definitivo e morte em Huiva Ao, nas ilhas Marquesas, onde também viveu e foi enterrado o genial Jacques Brel, em 1978.

O museu Gaugin está fechado “para obras” desde 2013. Neste lugar, Paul Gaugin pintou algumas das suas obras-primas, lânguidas mulheres polinésias que soube ou não soube amar, em paisagens de estarrecer. Gaugin, aos cinquenta e muito anos, manteve relacionamentos sexuais e tomou por companheiras raparigas polinésias de dezasseis ou vinte anos de idade e retratou-as em quadros plenos da delicadeza da sensualidade. Será por isso que o actual “politicamente correcto” mandou fechar o Museu Gaugin. Eu entendo. 

Contudo, Paul Gaugin deixa em todos nós um legado mágico, intemporal e louco e é um dos grandes mestres da pintura universal. Basta olhar os seus quadros sobre Tahiti, esfuziantes de cor, a simbiose da alegria e da tristeza, basta beber os seus verdes intensos nas folhas das palmeiras, basta passear os olhos nos azuis acariciando o ondular do mar, basta, tonto pelo perfume da ilha, levitar nos amarelos aquecidos pelo grito do pôr-do-sol.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22735: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XX: Grécia, Ilha de Rodes, 2010

Guiné 61/74 - P22779: Os nossos seres, saberes e lazeres (480): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (27): O génio de Almada Negreiros nas gares marítimas do Porto de Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Nestas gares marítimas do porto de Lisboa, Almada Negreiros trabalhou entre 1943 a 1949. Assombrou uns, desgostou outros, Duarte Pacheco terá dito desdenhosamente que teria sido um desperdício gastar aquelas centenas de contos com tais mamarrachos. Almada teve grandes defensores, logo no Arquiteto, Porfírio Pardal Monteiro, com quem já antigamente trabalhara na Igreja de Nossa Senhora de Fátima e na ampla sala do rés-do-chão do Diário de Notícias. Não deixa de ser curioso, cerca de três quartos de século depois, verificar a perfeita integração desta pintura naquele espaço, assenta como uma luva. O mundo da viagem marítima alterou-se radicalmente mas estas obras-primas da pintura modernista possuem tal vibração, deixam antever o olhar provocador do génio Almada, que é um gosto permanente aqui regressar. Para nós, antigos combatentes, nem sempre as recordações são boas, falando por mim, ali a umas centenas de metros, num lance de escada me despedi dos meus entes queridos debulhados em lágrimas, eu disfarçado de pimpão, era uma viagem de pouca mossa e com regresso assegurado, acreditassem todos. Foi grande a fezada e o regresso se assegurou, mesmo por debaixo dos painéis geniais de Almada, era agosto mas para mim era a primavera.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (27):
O génio de Almada Negreiros nas gares marítimas do Porto de Lisboa

Mário Beja Santos

Historiadores de Arte como José-Augusto França consideram que o trabalho de Almeida Negreiros nas gares marítimas da Rocha do Conde d’Óbidos e Alcântara é o ponto mais elevado das Artes Plásticas do chamado Modernismo Português, tal como ele se exprimiu entre os anos 1930 e 1940. Tudo terá começado pela necessidade de construir gares marítimas no Porto de Lisboa, era um apelo do início da década de 1930, a urgência consumou-se nas vésperas da II Guerra Mundial, entregou-se ao Arquiteto Pardal Monteiro a tarefa de executar o traçado das gares, pensou-se inicialmente em três, Alcântara, Rocha do Conde d’Óbidos e Cais do Sodré que nunca chegou a ser executada. Pretendia-se, dada a importância que as viagens marítimas tinham no tempo, de fazer um belo cartão de visita para um verdadeiro cais da Europa para os passageiros e para as malas postais da navegação marítima. Era indispensável dar uma boa impressão de conforto e igualmente de grandeza, era assim que se entrava no Portugal do Estado Novo. Porfírio Pardal Monteiro já trabalhara com Almada em dois projetos de tomo: a Igreja de Nossa Senhora de Fátima e a receção do Diário de Notícias, empreitadas hoje tidas como indiscutíveis pegadas do génio de Almada.

O pintor andou por aqui anos e anos, começou obviamente por Alcântara e arquitetou um espetáculo de cor e uma garridice temática que desgostou profundamente a Duarte Pacheco, felizmente que Almada tinha defensores de peso como António Ferro e o próprio Pardal Monteiro. No exterior, temos as linhas puras da Arte Déco, uma sábia entrada de luz e uma conveniente arrumação do espaço, naturalmente que não se suspeitava ao tempo ter ali na vizinhança a ponte sobre o Tejo. Há que recordar ao leitor que aqui se arribou em dia chuviscoso, pretendeu-se circunscrever a visita à gare de Alcântara. Para os interessados, chama-se a atenção que as gares marítimas são visitáveis nos sábados e domingos do último fim de semana de cada mês, com entrada gratuita.

Houve um apelo da memória, daqui se partiu em outubro de 1967 para Ponta Delgada, aqui o Uíge atracou em agosto de 1970, ao tempo o serviço de transporte de militares estava concentrado na Rocha do Conde d’Óbidos. Depois de contemplar o espaço do vestíbulo, hoje praticamente sem vida, sobe-se uma escadaria de linhas equilibradas, com uma bela entrada de luz, é-se rececionado por uma escultura dedicadamente patriótica onde não faltam o escudo com as quinas, e veio espreitar-se o dia brumoso por aquela janela e naquela varanda onde muitas lágrimas se devem ter vertido em dias de partida e aclamado com exclamações ululantes quem regressava para o convívio dos seus.

Ó mar salgado, que desta varanda guardaste a memória de dolorosíssimos acenos das partidas e júbilos de regressos, antes e depois de se erguer aquela ponte.
Aqui se fica em contemplação, atento aos pormenores, a entrada vigorosa da luz não se faz por acaso, o país era muito pobre mas o Estado era rico, havia que mostrar boa pedra marmoreada em todos os andares, em todos os espaços que o visitante trilhasse, como se se procurasse dar a sensação de se entrar numa infraestrutura quase apalaçada.
Outro pormenor que abona o talento do arquiteto, a relação entre o comprimento, largura e altura, a dimensão das portas, o espaço reservado para a pintura mural, as janelas rasgadas, a esplêndida iluminação do teto, é verdadeiramente uma sala de espetáculo, a voz ecoa, são pouquíssimos os visitantes, é uma vibração que enche de vida aquele enorme salão de espera ou boas-vindas e aonde era suposto que Almada Negreiros deixasse o traço resplandecente da grandiosidade do Estado Novo. Mas ele trocou-lhes as voltas, concebeu dois trípticos, um à volta da Nau Catrineta, uma lengalenga que recitávamos na escola e na continuação um mito, D. Fuas Roupinho e o milagre da Nazaré, a Aparição da Virgem, lá no Sítio; o outro fala-nos do Tejo, das embarcações do porto, as lides ribeirinhas e separadamente temos um par amoroso, talvez ele seja marujo e ela peixeira e há para ali uma festa campónia extremamente vistosa. É altura de irmos aos pormenores.
Tudo vai num reboliço a bordo na Nau Catrineta, os marinheiros têm umas solas para comer e há até quem insinue que a primeira vítima de antropofagia seja o capitão, vemo-lo afanoso no cesto da gávea, talvez aquele marinheiro ande à procura de terra à vista, e na vela enfunada vemos o espetro da morte em visita. Mas o mais belo de tudo é o ângulo em que Almada nos põe a ver a Nau Catrineta, de tresvês, como no segundo painel por ali anda a vista abismada por aquele longo mastro, também as velas enfunadas, do lado direito temos umas histórias de encantar, até prelúdios funestos, mas aquele anjo que parece caminhar na linha do painel tudo vai resolver a contento e daí o alvoroço do terceiro painel, as alegrias do reencontro, um esplêndido arraial em que Almada esmiúça os quadros da sociedade, em indumentária moderna. E lá temos o mural isolado com gente da Nazaré, a praia e os barcos e as lides que envolvem homens e mulheres, e milagre dos milagres um D. Fuas Roupinho transmudado em cavaleiro tauromáquico.
No outro tríptico, também de uma beleza extrema, e de um colorido quase efervescente, temos varinas descalças na descarga do carvão, um fabuloso painel com mastros, apetrechos marítimos e barcos, varinas dividindo o peixe e, separadamente, o que se pode chamar piquenique em dia de romaria, manifestamente Almada sentiu-se cativado pelo Tejo e exprimiu o realismo social, como é que aqueles senhores poderosos do Estado Novo não olharam enviesadamente as varinas descalças na descarga do carvão, não seria que o pintor Almada queria desconsiderar o que estava previsto como bonito bilhete-postal?
Perdoe o leitor este gosto pessoal de integrar a pintura de Almada em contexto arquitetónico, enche-me as medidas esta Arte Déco e não quero despedir-me sem pedir a vossa atenção para a natureza desta pintura mural, efetivamente ele trabalhou o fresco sobre a cal, mas introduziu imensos apontamentos pictóricos. Vêem-se para ali umas manchas de humidade, indispensável será o restauro dado que estamos a falar do que há de melhor da pintura portuguesa depois do génio meteórico de Amadeo Souza-Cardoso. E fica prometido um próximo fim do mês se irá visitar a gare da Rocha do Conde d’Óbidos.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22755: Os nossos seres, saberes e lazeres (479): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19) (Mário Beja Santos)