Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Joaquim Costa [, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74); natural de V. N. Famalicão, a residir em Fânzeres, Gondomar; eng téc e professor ref]:
Data - 6 dez 2021 12h47
Já se sente no ar o cheirinho de Natal.
Aqui vai o meu modesto contributo para o blogue (*), lembrando com emoção os maravilhosos Natais da minha infância. Deixo ao teu critério a publicação do mesmo.
É minha convicção que o Menino Jesus (não o Pai Natal) me vai colocar no sapatinho o meu livro de memórias.
Um grande abraço
Bom Natal, Joaquim.
Como acontece com a maioria de nós, os Natais que nos vêm à memória são sempre os da nossa infância:
A semana que antecedia o Natal era vivida com tanta intensidade e alegria que quase doía.
Ansiava com grande nervosismo e entusiasmo pela grande aventura que era ir com os meus quatro irmãos, noite escura, roubar um pinheiro a uma bouça do lavrador da aldeia para o madeiro da noite de Natal. Vivíamos este momento como numa patrulha noturna nas matas da Guiné já que se constava que nessa semana os filhos do lavrador emboscavam na mata, toda a noite, armados com caçadeira.
Na altura ainda não tinha chegado (do estrangeiro!) a moda do Pai Natal acompanhado do seu pinheirinho e da sua coca-cola. Hoje, para guardar os seus pinheiros, o agricultor só contratando dois grupos de combate armados de G3, bazuca e morteiro.
Por uma questão de estratégia militar, evitávamos estar muito tempo no campo de batalha, pelo que repetimos a patrulha noturna num outro dia para roubar pinhas mansas, que colocávamos junto do madeiro a arder para abrirem e libertarem os pinhões, elemento imprescindível para o jogo do rapa (rapa - tira - deixa - põe) fazendo horas para a missa do galo.
Estes “santos” pecados eram perdoados, sem grande esforço, pelo confessor, na véspera de Natal: 3 Padre Nossos e uma Salvé Rainha por cada pinheiro e uma Avé Maria por cada pinha.
Como eu executava com sentido de responsabilidade e zelo a tarefa que me estava reservada de apanhar musgo para o presépio!
Fazia questão em participar em todas as tarefas, nomeadamente na construção do presépio (fazendo chegar os bonecos), que de ano para ano era maior e mais sofisticado, com quedas de água e azenhas a funcionar
E a consoada?
Bacalhau (na altura comida dos pobres – para quem é bacalhau basta!), batatas e muita hortaliça.
As sobremesas todas preparas à base de pão:
- rabanadas embebidas em vinho branco verde;
- mexidos (também conhecido por formigos noutras regiões do país), pão embebido em água que ia ao lume até fazer uma papa e onde se juntava açúcar e canela (e algo mais que é segredo de chef); também se juntava: pinhões, uvas passas e nozes na percentagem dos estilhaços de carne no nosso arroz da Guiné.
- sopas secas: camadas de fatias de pão sobrepostas embebidas em vinho branco e onde se acrescentava canela e açúcar.
Todos os anos faço os mexidos já que recrio com emoção os felizes Natais da minha infância.
Mas o dia mais esperado era o dia seguinte, quando os pais autorizavam ainda de madrugada, dada a ansiedade, o ansiado assalto à lareira da cozinha onde estavam colocadas em fila as nossas chancas/socas onde o Menino Jesus todos os anos colocava, religiosamente, duas tangerinas e 3 pequenos bonecos de chocolate.
Claro que não faltava a roupa velha no almoço do dia 25.
Também nunca mais me saiu da memória o último dia de aulas antes do Natal que mais parecia o mercado da vila aos sábados de manhã.
Tive duas professoras na escola primária: a primeira, já muito gasta da idade, que foi a professora de todos os meus irmãos, metia-me mais medo que o óleo fígado de bacalhau (mistela que tínhamos de tomar todas as sextas feiras). A mulher era mal encarada, de mal com a vida, vingando-se nestas pobres criaturas. Granjeou na aldeia fama de excelente professora: disciplinadora, exigente e intransigente, atributos que agradavam, no contexto da altura, a todos os pais daquelas pequenas cobaias. Reguadas (a que eufemisticamente chamávamos de bolos!) por tudo e por nada, puxões de orelhas, vergastadas e orelhas de burro na cabeça virados para a parede era o habitual em todas as aulas. Mais parecia um campo de batalha.
Para nossa felicidade a mulher reformou-se, passando nós da noite para o dia com a nova professora. Passei a gostar da escola e particularmente da professora (meiga, de pele sedosa, simpática… e linda de morrer). Mesmo quando era apanhado a manter na boca o óleo fígado de bacalhau para logo a seguir deitar fora, sorria e fazia de conta que não via.
As duas professores eram de facto muito diferentes, ao ponto de baralharem as minhas ideias (incutidas pela velha professora e pela minha catequista) sobre o que é certo e o que é errado.
Em plena época natalícia e na sequência da leitura do texto: “o sapateiro”, do nosso mítico livro do tempo do Estado Novo, fomos desafiados a fazer uma redação sobre o tema: “Se eu fosse rico”.
A minha redação foi apresentada como exemplo à turma (mais não fiz que despejar mecanicamente todos os ensinamento da professora e da minha catequista).
Numa nova redação sobre o mesmo tema, repeti, obviamente, as mesmas ideias que tanto sucesso tiveram com a antiga professora. Com toda a surpresa minha, a nossa querida nova professora, para além de um medíocre a vermelho, valorizou antes a redação do colega de carteira que “rezava” assim:
Não obstante esta atitude, incompreensível da professora, percorreu-me um sentimento de pena e compaixão pelo meu colega de carteira, pela sua “infelicidade” e pelo inferno que tinha como certo…
A professora granjeou um respeito e carinho muito grande na aldeia, agora não só dos pais mas também dos alunos. Razão pela qual no Natal os nossos pais lhe enviavam todo o tipo de presentes: galinhas vivas, coelhos vivos, dúzias e dúzias de ovos, e todo o tipo de produtos que colhiam na horta
Para quem vivia no centro da vila num andar não era nada fácil acomodar todos estes produtos, pelo que no último Natal (na minha quarta classe) ganhou coragem e mandou-nos uma pequena mensagem para casa:
Já o padre da freguesia se tinha antecipado trocando a tradicional oferta de ovos na visita pascal por um envelope fechado com dinheiro (que só podia ser notas), simplificando a logística…
Um bom Natal para todos. Joaquim Costa