segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22785: Notas de leitura (1397): "Cartas de Amor e de Dor", por Marta Martins da Silva; Saída de Emergência, 2021, com prefácio do general Pezarat Correia (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não deixa de assombrar a variedade de cartas de amor que Marta Martins da Silva coligiu, uma paleta de cores muito garrida de sentimentos tão diversos, abarcando ansiedade dos pais que pedem insistentemente notícias, as namoradas e aqui vamos ter a temperatura de uma comissão por inteiro, desde do deslumbramento ao desalento, as mulheres, a quem nem sempre tudo se encobre e a rede das madrinhas de guerra, por vezes com remates felizes, radiantes descobertas de quem chega e tem a madrinha à espera e caem nos braços um do outro.
Deixa-se terceiro e último texto correspondência com muita dor... se também não nos esquecermos que há nestas cartas de amor implicitamente dor, tensão profunda na espera, o terror de vir a receber um aerograma como receberam aqueles vizinhos que ficaram em luto perpétuo.

Um abraço do
Mário



Cartas de Amor e de Dor, por Marta Martins Silva (2)

Mário Beja Santos

Descobriu na sua atividade jornalística na revista Domingo do Correio da Manhã, através de desabafos de antigos combatentes, que há uma vertente de guerras gradualmente sumidas na memória dos portugueses que merece ser revitalizada, é constituída por aerogramas, cartas, bilhetes-postais, folhas de apontamentos, fotografias, é um acervo de consulta marginal pelos historiadores e investigadores dos diferentes países envolvidos. No entanto, são documentos onde podemos aquilatar a vida emocional desses jovens, abruptamente retirados de um ambiente familiar, de uma profissão ou dos estudos, e que vazam na escrita o que descobrem em novas paragens, nem sempre contidos nas saudades, por vezes discretos na narrativa da hostilidade permanente, perguntando pela família e pelos amigos, disfarçando os estados de alma com descrições pacíficas sobre a comida, a vida do quartel, omitindo, tanto quanto possível, quem morre e quem se sinistra. Marta Martins Silva procura veios novos para interpretar o universo psicológico destes jovens vestidos de camuflado. Começou por os pôr a conversar com as madrinhas de guerra, e agora, em "Cartas de Amor e de Dor", Desassossego, chancela do grupo Saída de Emergência, 2021, parte de cartas da I Guerra Mundial, fala-nos do ano de 1961 em Portugal, explica a não-iniciados os dados fulcrais do Serviço Postal Militar e então entramos numa grande torrente, primeiro a do amor, os parentes mais próximos, as namoradas e as mulheres e todo este ímpeto epistológrafo desagua numa dor que não se pode esquecer, os pais que reclamam o corpo do filho, a carta que anuncia a morte de um amigo muito querido num outro teatro de guerra, as cartas anónimas infamantes.

A reportagem de investigação centra-se no fundamental em duas dimensões da correspondência entre os combatentes, os ente-queridos, as amizades e a todos aqueles a quem era imperativo dar notícia, mais não fosse para comunicar a morte de um filho, de um marido. A jornalista reparte o tema das Cartas de Amor em namoradas, mulheres e madrinhas. Procurando sempre contextualizar a correspondência do quadro de evolução da guerra, logo dá a estampa a carta de uma mãe para o filho em África, estamos obviamente no inicio da guerra, os chamados valores pátrios sobrelevam, de modo que esta mãe fala nos deveres, algo que nos recorda uma mãe patrícia nos tempos gloriosos do Império Romano quando escreve: “Se de si for exigido o sacrifício máximo: a vida, pois aceite, meu filho, com os olhos postos na Cruz de Cristo, Cruz que fomos nós mostramos ao Mundo inteiro, e na bandeira verde e rubra, que representa a pátria mais amada de todas as pátrias. A alma portuguesa é grande como este Portugal interno, amado e indivisível”.

Filhos que escondem às mães a aspereza das suas missões, filhos que nem se despediram dos pais para fugir aquelas cenas lancinantes no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, porque há pais que choram, mães que desmaiam, mulheres e namoradas que rabiam de dor e não a escondem. Numa sequência bem organizada, a autora põe estes pais e filhos dissimulando a saudade, pedindo mais notícias, e mesmo quando se dissimula não se resiste a um desabafo em conversa com a autora: “Um dos meus camaradas morreu em combate e nada disso a gente podia contar nas cartas. Vivia com eles mais de dezoito meses na frente militar norte e leste de Angola”. O camarada António Amadeu da Fonseca Frade, mortalmente atingido por uma rajada de Kalashnikov. O corpo deste soldado só viria a ser resgatado ao quinto dia por um grupo helitransportado. Há quem recorde que a mãe lhe entregou uma moeda embrulhada, como se fosse uma relíquia, muitos anos mais tarde, um dia depois da morte da mãe, deu com esta prova de amor indistinguível. Há uma mãe que pede ao filho que se faça acompanhar do seu terço, e que o ponha ao peito. E sempre falando ao querido filho, fazendo votos para que este ao receber o aerograma se encontre bem de saúde e, quando necessário, um pai pede ajuda ao filho combatente para admoestar o irmão mais novo um tanto rebelde: “Pedia-te que escrevesses ao teu irmão Jorge a dizer-lhe que estás informado ele não anda lá muito bem na escola, portanto a dares-lhe uma ensaboadela das tuas. Espécie de um conselho de um irmão mais velho experiente”. Há quem destetasse o bacalhau até ir para a guerra, depois habituou-se a tudo, quando faltava um mês para regressar a mãe escreveu-lhe um aerograma a perguntar “o que tu gostavas que a mãe te fizesse, estava a pensar fazer um almoço e um jantar para uns amigos, diz-me o gostavas que a mãe fizesse”. E ele respondeu: “Faz o que tu quiseres, até bacalhau com batatas”.

Há namoradas, súplicas, arrufos, desânimos, as fúrias dele quando ela conta que participou numa festa, há narrativas envinagradas, há pedidos de fidelidade, tais como: “Gostava de te pedir que nunca abusasses das africanas porque há quem diga aqui na metrópole que os soldados brancos se servem das raparigas daí”. Há desabafos de solidão, há quem conte a autora muitos anos depois que chegou o anoitecer, pegou na motorizada e foi à casa onde a namorada trabalhava como ama. “Dirigimo-nos um ao outro e o reencontro deu-se num forte abraço e num longo e recatado beijo. O tempo suficiente para nos apaziguar toda a saudade que evaporava de nós naquele momento”. Há quem ajudasse os camaradas analfabetos, recorda alguém escreveu cinco aerogramas com cinco endereços diferentes que começavam sempre assim: “Meu eterno amor: aqui longe de ti e das tuas caricias passei mais um domingo só. Só com a minha dor e o meu desespero e como este outros domingos já se passaram e muitos mais tenho de passar e eu tal como a maioria dos meus colegas temos de resistir a esta tragédia quando ainda há pouco tínhamos uma vida tão alegre”. E o escrevinhador de então comenta a autora: “Escrevia frases de todos os géneros. Muitas de cariz sexual. Pedidos dos maridos para as esposas se portarem bem. Muitas juras de amor que, na maioria das vezes, se foram perdendo com o decorrer dos dias. Li cartas de mães extremamente pungentes”. Há muitas zangas pelo caminho que vão sarar na carta seguinte, há quem escreva dando pormenores, caso das descrições da ceia de Natal.

Há correspondência de marido e mulher e quem, pelo caminho, também mantinha cartas com as madrinhas de guerra. O artista Manuel Botelho, com Marta Martins da Silva conversou, montou uma instalação baseada num grande maço de cartas que adquiriu na Feira da Ladra, explorou admiravelmente o entusiasmo narrativo dos primeiros meses, de ambos os lados, e gradualmente foi grassando uma melancolia, uma inquietação, os últimos meses eram manifestamente duríssimos, o casal afligir-se com a dor de tanta espera e até o medo de sucumbir mesmo em cima do regresso.

Às madrinhas de guerra, caso houve acabaram em casamento, um afilhado descobrira o mau casamento que fizera, houve divórcio e veio a entender-se muito bem com a sua madrinha. São histórias maravilhosas, nota-se que o grau de desabafo ganha intensidade, o tempo passa e a intimidade cresce. Há um relato soberbo que a autora apanha por inteiro e vale a pena reproduzir, ele regressa à metrópole, “vê-la pela primeira vez foi engraçado. Eu sabia que ela era pequenina, eu tinha 1,65m e era magrinho, cheguei ao pé dela para lhe dar um beijinho, mas ela baixou-se e deu-lhe um beijinho na cabeça”. Despede-se da fábrica em Alcobaça e vai para Setúbal, trabalham juntos. “Namorávamos quando íamos e vínhamos do trabalho, depois à noite ia à casa dela namorar mais um bocadinho, mas sempre vigiados, ninguém me conhecia e surgiram determinados boatos a meu respeito e a família dela tinha medo”. Para conseguir casar com a sua amada, que antes de ver ao vivo conheceu por carta, contou com grande ajuda do padrasto. “Foi ele que me deu tudo para eu casar. Eles queriam que eu vivesse com eles, mas eu quis alugar uma casa. A renda era cara, e embora eu ganhasse mais ou menos bem, as coisas foram difíceis no principio”.

E não há cartas de amor sem as cartas de dor, tantas vezes elas se confundiram, é dessas dores que falaremos em seguida, é um dos pilares determinantes desta bela reportagem de investigação que ninguém deixará indiferente.

(continua)

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Nota do editir

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22762: Notas de leitura (1396): "Cartas de Amor e de Dor", por Marta Martins da Silva; Saída de Emergência, 2021, com prefácio do general Pezarat Correia (1) (Mário Beja Santos)

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