Queridos amigos,
Paulo arruma a casa de Lisboa, vai ser ocupada por dois filhos, é menos uma despesa para estes dois filhos que vivem tão precários. É arrumação de papéis, Annette insiste que ainda podem vir acasos felizes, uns papéis soltos, umas fotografias, alguns documentos esclarecedores que melhor iluminem tudo quanto até agora se escreveu. Faltava a chegada a Lisboa, já tinham conversado sobre as peripécias daquela viagem que durou 12 dias, a satisfação de conhecer a ilha de S. Vicente, ter encontrado ali gente a falar um português tão doce e tão bem articulado, aquela chegada a Ponta Delgada, uma multidão silenciosa, as mulheres de preto, a mesma expetativa a bordo, os em terra à procura de descobrir o ente-querido, e este ansioso por ver diante dos seus olhos a gente do seu sangue. Ouve-se um grito estridente e por magia vão-se fazendo reconhecimentos, é quase alucinante a vozearia estentórea que toma conta daquele cais e daquele velho paquete. E nós, que ainda vamos continuar até Lisboa, não resistimos a choramingar. No último dia a bordo, escrevinha-se no caderninho a agenda social, bem pesada de encargos, há tanta gente a agradecer, a beijar, a abraçar, houve tantos amigos que deram consolo, houve aquela mana que em todos os sábados, fizesse chuva ou sol, percorria enfermarias na Rua Artilharia 1 para visitar os feridos companheiros do irmão, nunca ia de mãos vazias, sempre a sorrir e com voz consoladora. São as recordações que subsistem em Paulo, nada disto passou a letra de forma, nem mesmo, no dia seguinte à sua chegada, quando recusou vir a integrar-se na vida militar, fez um contrato que lhe permitia acabar os estudos. Ora acontece que Annette quer ir mais longe, é uma verdadeira Penélope, não desmancha o que fez na véspera, mas reclama mais tecido para continuar. "Conta-me, Paulo, tudo quanto aconteceu depois, os tais meses que passaste na Guiné. Depois veremos se o romance da Rua do Eclipse chegou a seu termo, mas só depois".
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Annette adorée, percorro a nossa casa de Lisboa na azáfama de deixar tudo limpo, a Delfina esteve cá ontem a limpar os vidros de todas as janelas, quero entregar a casa ao Henrique e à Mafalda, bem como ao Ricardo, nas melhores condições, os móveis brunidos, a cheirar a óleo de cedro, os tapetes desempoeirados, as estantes dão-me um trabalhão imenso e nunca me esqueço do teu pedido de mexer em todas as pastas à procura de mais elementos sobre a Guiné, que eu descubra fotografias, relatórios, pasmei com a nossa conversa de ontem à noite, também queres começar a ler livros escritos por outros, comparar emoções, como os outros sentiram a adaptação, as emboscadas, as penúrias alimentares, os sobressaltos das flagelações. Prometo-te que não regressarei a Bruxelas sem vasculhar toda a papelada que ainda possa andar dispersa por algumas estantes ou gavetas.
Está a correr-me muito bem este final de ano letivo, tanto no Monte da Caparica como em Santarém. Foi rapidamente deferido o meu requerimento, vou entrar em licença registada, coincidente com a data em que começa o meu contrato com a Confederação Europeia dos Sindicatos. Acho que o Bengt Ingerstam persuadiu bem os outros elementos da Direção que aceitaram a nomeação da Rossana Olivieri para me substituir. Já chegou a minha agenda do mês de setembro, tenho uma deslocação a Dublin e outra a Haia, haverá dois dias de seminário em Turim, compete-me a organização, prende-se com a temática dos novos padrões sustentáveis no consumo, abarcando a habitação, o transporte e o empacotamento dos bens perecíveis, em Dublin estará em discussão o futuro do tratamento dos resíduos eletrónicos e qual a melhor resposta a ser dada pelos consumidores, em Haia far-se-á o ponto da situação dos cemitérios para os automóveis em fim de vida. Já me está a ser enviada documentação, mas para nosso consolo não vejo que as nossas férias fiquem minimamente comprometidas. Fiquei feliz por teres aceite prontamente passarmos três semanas de agosto em Portugal, beneficiarás de uma casa com menos pó, mais arrumada, estou a dar uma nova ordem às coisas para que os meus filhos sintam espaço desafogado, se bem que toda a traquitana do pai ande pendurada pelas paredes. Ficaram muito contentes com a ideia de pouparem nas rendas de casa, informei-os que viremos em princípio no Natal, com a Noémie e o Jules.
Não me quero esquecer de contar que aceitei ficar com a responsabilidade de algumas páginas de jornais, quando falei com diferentes diretores eles ficaram profundamente agradados com a possibilidade de eu ir dando em primeira mão informações sobre o que se está a passar nas instituições comunitárias e com fortes incidências não só no consumo como na Saúde e no Ambiente.
Por último, minha adorada Annette, dou-te conta das minhas recordações, que não constam de correspondência nem de quaisquer papéis, daqueles doze dias de viagem até Lisboa. Não conhecia nada de Cabo Verde e apreciei a ilha de São Vicente, creio que já te disse que a cidade do Mindelo me pareceu uma vilazinha tipicamente de província, mas com marca de água africana, claro. Reencontrei a bordo gente com quem convivi em Mafra e na Guiné, muita conversa sobre tiroteios, minas e emboscadas, mortos e feridos. Vivi uma situação de comédia no camarote em que fiquei com dois camaradas, tínhamos recebido instruções de que a água para os banhos estava racionada, no nosso caso havia chuveiro e água no lavatório entre as 6h45 e as 7h30, impreterivelmente. Nós os três nem comentámos, havia somente que repartir a dosagem do tempo, ofereci-me para ser o primeiro, o Gonçalves ofereceu-se para segundo, o Faria nem resmungou, demos a situação como tratada, tacitamente. Tudo parecia correr bem, fui a correr para o duche às 6h45, chamei o Gonçalves, 15 minutos depois, ele disparou para a casa-de-banho, vinha o Gonçalves a sair e gritei ao Faria que a casa-de-banho lhe pertencia, resmungou entre lençóis que não precisava de tomar banho. Esta cena repetiu-se três dias a fio, e então abordei o Gonçalves no convés, na maior discrição, seria que o Faria considerava que tínhamos agido incorretamente com ele, queria começar primeiro, onde, com os diabos, ele tratava da higiene? O Gonçalves pareceu-me surpreendido com a minha inquietação, não havia ninguém na Guiné que não soubesse que o Faria nunca tinha tomado banho, viesse de uma operação ou depois de um jogo de bola molhava uma pequena toalha ensaboada e lavava-se sumariamente, o que surpreendia todos, ele não cheirava mal, fazia de facto a barba e punha camadas de brilhantina no cabelo. Nunca mais esqueci o Faria, como podes imaginar.
O mais impressionante da minha viagem, Annette, foi quando o Carvalho Araújo se aproximou do porto de Ponta Delgada, imagina uma multidão onde predominava a indumentária de preto, como se todas aquelas mulheres estivessem lutadas, um silêncio sepulcral, o paquete a aproximar-se do cais, todos nós nas diferentes amuradas a presenciar aquela multidão quieta, e eis que súbito ouve-se um grito de uma mulher a chamar pelo filho, uma resposta vibrante vem de bordo e então ergue-se um clamor como nunca vi igual, era a festa do reencontro, toda aquela alegria esfusiante se irá intensificar quando os militares açorianos começam a descer o portaló e a serem afogados pelos abraços das famílias, ver toda aquela multidão em movimento da amurada parecia um ballet gigantesco a dar hossanas à vida. Também fui premiado, tinha amigos à espera, organizara-se um jantar para me receber, pude confirmar, se dúvidas subsistissem, que também tinha o meu coração ligado a São Miguel.
À chegada a Lisboa, metido num táxi com carregamento ligeiro, sabia que no dia seguinte iria a um quartel na Calçada da Ajuda buscar os malões feitos em Madeira, dei comigo deslumbrado a caminhar pela cidade, na véspera desenhara no meu caderninho um programa para os dias seguintes, visitas obrigatórias, ir ver a minha mana e os meus sobrinhos, a mãe do Carlos Sampaio, os meus doentes no Hospital da Estrela, uma lista com muitos nomes, muitos agradecimentos a fazer, e mal sabia eu que no dia seguinte, no tal Regimento da Calçada da Ajuda um senhor major insistia que eu me inscrevesse no Quadro Especial de Oficiais, nada de fazer contratos como eu desejava para acabar o curso, o senhor major insistia que com aquela folha de serviços eu teria o mais promissor dos futuros na glória militar. Bem tristonho ficou com a minha resposta, depois das férias iria dar recrutas em Mafra, no horizonte perfilava-se um serviço ligeiro num qualquer departamento do Ministério do Exército, com força de vontade, e com o estatuto de estudante militar, era bem possível ir fazendo exames ao longo de cada ano escolar, como veio a acontecer.
Dou voltas à cabeça, minha adorada, que emoções mais fortes houve no termo desta viagem, talvez de olhar à volta e rever a minha cidade e os lugares conhecidos com o profundo agradecimento de guardar o meu entusiasmo, a minha curiosidade, os meus sonhos, mesmo sabendo que vinha muito diferente do que fora. E talvez valha a pena terminar esta elucubração lendo-te uma linha numa carta que me esperava assinada pelo meu amigo Ruy Cinatti: “Você veio diferente, veio liberto e melhor preparado para lutar na vida. Não se arrependa pelo amor que deu e recebeu. É bom tê-lo de volta. Não se esqueça do que viveu. Não se esqueça do que sofreu. Transforme tudo em dívida consigo”. Minha companheira para toda a vida, não achas que seria neste parágrafo que devíamos pôr ponto final para o nosso romance da Rua do Eclipse? Tu decidirás se é o momento do ponto final. Milles bisous, en attendant ton retour à Lisbonne, Paulo, à partir du mois d’août à vivre à Bruxelles.
(continua)
Carta da Guiné Portuguesa, 1899
Era assim no nosso tempo e permanece a disposição comercial, uma autêntica caverna de Ali Babá, não vemos nesta imagem mas há seguramente fita de nastro, candeeiros, tecidos, loiça esmaltada e muitíssimo mais. Quando o consumo não muda de perfil a organização das prateleiras acompanha a rotina das necessidades dos consumidoresO que deslumbra nesta imagem no Pidjiquiti é o imenso colorido, a azáfama de partir, talvez para Catió ou Bolama, os barcos de pesca, aquela imensidão de azul que parece prolongar as águas do Geba e aquele contraste de gruas e de contentores que nos falam da contemporaneidade, em choque com o que vemos em primeiro plano
Bissau em perpétuo movimento, entre o mercado de Bandim e Bissalanca, é um ritmo frenético que a noite não quebra, quando escurece abrem as discotecas, acendem-se lampiões, o comércio não pára
A Andrea Wurzenberger cedeu-me três imagens muito semelhantes para a contracapa de um dos meus livros, ainda hoje me emocionam com aquela luz translúcida, o avanço sereno daquela mulher (que até pode ser uma bideira), a sensação de apaziguamento que no seu todo nos provoca este caminhar onde até podemos querer supor que ao fundo o paraíso espreita
Quem vem do cais do Pidjiquiti confronta-se com este busto de Amílcar Cabral que parece olhar para o fundo da Guiné, para o Sul, onde começou a realizar-se a sua estratégia militar. É hoje um herói esquecido, como nos parece sugerir este ciclista que passa por ali, indiferente ao pai fundador, parece que no seu itinerário é totalmente dispensável lançar um olhar ao construtor da nação
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22776: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (81): A funda que arremessa para o fundo da memória
1 comentário:
Olá Camaradas
Não tenho nada a ver com isto, mas gostava de saber se, nas escolas da Guiné, se ensina quem foi Amílcar Cabral e se, entre os jovens e boa parte dos adultos, haverá muita gente que saiba quem ele foi.
Por mim, considero o busto um monumento irrelevante a alguém que tanto terá feito pela "refundação" daquele país, mas isto sou a pensar e ninguém me paga para isso.
Um Ab.
António J. P. Costa
Enviar um comentário