quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22789: Historiografia da presença portuguesa em África (293): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Não se pode esconder que há um claro desequilíbrio no propósito de uma viagem à Rota dos Escravos, e ao papel preponderante desempenhado por Portugal desde o século XV ao século XIX, pôs-se acento tónico no Golfo da Guiné, pode aceitar-se privilegiar São Tomé e não ter havido necessidade de ir a Luanda para dar a imagem de entreposto e lugar de roças com escravos (mais tarde aqui arribarão os trabalhadores cabo-verdianos), foi útil ir ao Benim e visitar S. João Baptista de Ajudá e os seus entrepostos negreiros. 

Visitar Goré sem visitar Cacheu já é um pouco estranho e mais estranho é ir à Ilha de Santiago e não se dar uma só linha do que aqui se passou como ponto culminante da Rota dos Escravos, vinha-se da Senegâmbia e era nestes entrepostos cabo-verdianos que se partia para as Américas ou para Portugal. Porquê esta omissão, nem uma palavra de quem organizou a viagem nem de quem a passou a escrito, o escritor Miguel Real.

Enfim, silêncios que deixam na escuridão a grande linha da Rota dos Escravos.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. 

Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, A viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

Os visitantes estão neste momento no Museu de História de Ajudá. A diretora do Forte faz uma incursão pelo passado.

“Nos finais do século XVIII, o Administrador do Forte, Francisco de Fonseca e Aragão, recém-chegado a Ajudá, queixava-se dos costumes dissolutos dos brancos da região e dos mestres-negreiros portugueses (brasileiros), acusando-os de total ausência de prática cristã, nem a missa dominical frequentavam, queixava-se”.

 Nos últimos vinte anos do século XVIII o Forte entrara em total decadência e a sua importância fora substituída pela emergência de Porto Novo e Onim. E assim continuará a ser até que Francisco Félix de Sousa, a partir da segunda década do século XIX, faça reviver Ajudá. E o autor carreia elementos históricos. Desde a sua fundação, S. João Baptista de Ajudá em nada interessa ao Portugal de D. João V, mas sim aos banqueiros baianos e pernambucanos, que duplicavam fortunas investindo no negócio da escravatura.

 Quase ao longo de todo o século XVIII, o enclave de Ajudá depende do vice-rei do Brasil, mas não possui importância. Quem faz sair Ajudá da letargia é Francisco Félix de Sousa que aqui arribou nos primeiros anos do século XIX, vindo de S. Salvador da Baía. Nada se sabe sobre o seu passado, chegou pobre, não mais regressou ao Brasil. Chega e nasce uma lenda. Conta-se que desembarcou sozinho, numa piroga, no embarcadouro de Ajudá, não fora molestado por um bando de negros porque ostentava um anel com uma serpente gravada.

É a partir da história deste anel que se presta algum crédito à tradição que o faz adorador de Dangbé, a píton, vodu africano. Desconhece-se como viveu os seus primeiros anos em Ajudá, terá sido ajudado por um negreiro francês, tomado como feitor ou guarda armado do depósito de escravos. Esse negreiro francês terá levado Francisco Félix de Sousa à presença do rei e este ter-lhe-á permitido entrar no negócio da escravatura. Não se sabe a proveniência dos seus haveres, mas começou a oferecer ao rei e aos régulos e aos caçadores de escravos armas de fogo, pólvora, ferro, panos finos, tabaco de terceira categoria, aguardente e bricabraque. É bem possível que o rei que recebia ofertas gradas deste negreiro não lhe tenha retribuído com a proporção correspondente de escravos, insolvente, o negreiro dirigiu-se à cidade dos palácios reais e apresentou o seu protesto.

 Conta-se a história que o negreiro foi metido na prisão, mas que fez um pacto com o irmão ou sobrinho do rei, este ascendeu ao poder, o negreiro voltou ao seu negócio próspero. Tudo isto é narração lendária, o facto é que ele se tornou no mercador português do reino de Ajudá, é o período dos anos de ouro de Francisco Félix de Sousa que fez uma fabulosa fortuna. E dentro da lenda fala-se das suas riquezas, sempre indumentado à europeia, com casa mobilada à europeia, servia-se à mesa com talheres de ouro e prata, segundo relatos da época.

Prosseguiu a viagem atravessando Ajudá, no centro lá está a praça Chachá, com a casa de Francisco Félix de Sousa que o escritor Bruce Chatwin consagrou no romance O Vice-Rei de Ajudá.

 Francisco Félix de Sousa morreu, dizem uns com 90 outros com 70 anos, os seus negócios já estavam em declínio, a abolição da escravatura afetou-lhe a riqueza. E Miguel Real faz o histórico da família, que não deixa de ser empolgante. Visitaram depois o 17.º rei de Ajudá, assistem a um ritual vodu, para o autor fora o dia mais importante da viagem, a visita ao Benim e ao mundo de Francisco Félix de Sousa e o autor adverte o leitor que lhe está a nascer a ideia para um romance baseado nesta figura espantosa da rota dos escravos. E partem para Dacar, dá-nos um quadro lisonjeiro da chegada: 

“A genuinidade tropical do mercado de São Tomé desapareceu, o abarracamento caótico do mercado da Rua do Benim desapareceu também, os pés nus, descalços, dos jovens africanos desapareceram, o pano-da-costa que enrola o corpo da mulher africana desapareceu, as papaias, os mamões, os ananases, as pencas de bananas desapareceram das ruas, remetidos para os expositores dos supermercados, a parafernália dos trajes garridos africanos desapareceu, substituída pelas camisas brancas, os polos de cores discretas, as calças de fazenda, os jeans ocidentais, o ponto de madeira e zinco onde se talha a melancia e espreme a toranja desapareceu. Dacar é, com exceção dos arredores, a cidade africana mais europeia que visitámos”.

Haverá referências a Benjamim Pinto Bull, que ensinou na Universidade de Dacar e que deixou um relevante trabalho sobre o crioulo da Guiné-Bissau. Viajaram até à ilha de Goré, a três quilómetros da capital, é um ilhéu para sermos mais precisos, de 900 metros de comprimento e 400 de largura. Dali avista-se o Cabo Verde continental. 

“Goré é constituída por uma fortaleza acastelada, construída pelos holandeses no século XVII, um pequeno forte que funcionou como prisão e depósito de escravos. Sustentado na força internacional da França, o Senegal viu aprovado, em 1978, a elevação de Goré a Património Mundial pela UNESCO. Goré, de flagelo humano vivido entre os séculos XVI e XIX, tornou-se atração turística de massas, com excursões contínuas de ricos negros americanos procurando a emoção de pisarem a terra que seus pais históricos pela última vez pisaram quando abandonaram África.

A Casa dos Escravos constituí hoje o centro histórico africano do ilhéu, cujo casario denota uma forte influência muçulmana. Aqui eram depositados os escravos vindos de toda a região da Senegâmbia, esperando partida para as possessões francesas na América”.

E depois o autor discreteia sobre a chegada do escravo à América, são elementos de divulgação bem conhecidos. E de Dacar parte-se para o aeroporto da Praia, é o termo da Rota dos Escravos. É a parte mais dececionante do relato, diga-se em abono da verdade. Falar-se-á pouco de escravatura e muito do Tarrafal, sem prejuízo de boas referências à cultura cabo-verdiana, predomina a descrição do campo de concentração do Tarrafal, visita-se a Cidade Velha e abonam-se elementos sobre a primeira fase de Cabo Verde, em dado momento fala-se na tabanca, uma das festas culturais profano-religiosas mais antigas e singulares de Cabo Verde, escreve-se que tabanca significa aldeia em guineense, o que pode denotar a existência primitiva de sociedades secretas; a tabanca é atualmente uma confraria ou irmandade de socorros mútuos.

 Percorre-se a Cidade Velha ou Ribeira Grande e parte-se para a Ilha do Sal, elogia-se a camaradagem do grupo e nem uma palavra sobre a importância do comércio negreiro desta Senegâmbia onde fomos o principal interventor.

 Durante a fase da luta ideológica do PAIGC pretendeu demonstrar como indiscutível a unidade histórica da Guiné e Cabo Verde, esqueceu-se de dizer que os escravos da Senegâmbia negociados por mercadores e os seus atravessadores vinham desde o Cabo Verde continental até à Serra Leoa e de regiões do interior que excediam o que é hoje a geografia da Guiné-Bissau. Forjou-se o mito de uma miscigenação jamais comprovada. Recordo-me de uma vez Teixeira da Mota me ter dito que era preciso compulsar muito bem os documentos existentes quer no Arquivo Histórico Ultramarino quer em Cabo Verde para se poder com o mínimo de rigor especular sobre as origens dos escravos chegados a Cabo Verde. A questão ideológica arrefeceu, tanto quanto sei está completamente silenciada, mas parece-me um tanto tosco fazer uma viagem desta dimensão, com a chancela do Centro Nacional de Cultura, não se ter ido a Cacheu e não se falar do tráfico de escravos em paragens cabo-verdianas.

E disse, fica feita a recensão de um livro que relata uma viagem à Rota dos Escravos, onde Portugal foi ator e não pode negá-lo.

Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O que será hoje a fortaleza de S. João Baptista de Ajudá? O que seria ela há 50 anos ou até em 1961 no início da guerra e na sua ocupação? Para que serviria? Como é que lá se vivia? Que guarnição teria e como é que ela se relacionava com a população circundante?
Não creio que os visitante de antes de 2005 e da reconstrução pela Gulbenkian saibam responder a estas perguntas. Seria interessantíssimo escrever-se a História daquele sítio.

Um Ab. e bom FdS
António J. P. Costa