Queridos amigos,
Tinha 7 anos quando fui viver no Bairro Social de Alvalade, junto ao Campo Grande, todo o percurso de Entre Campos ao Campo Pequeno, a Avenida 5 de Outubro que acabava num descampado mais tarde ocupado por um colégio e por uma fiada de vivendas, hoje voltadas para a Biblioteca Nacional, as visitas que comecei a fazer à Biblioteca Municipal das Galveias para ler o Cavaleiro Andante, o Mosquito, depois os livros da Biblioteca dos Rapazes, o Júlio Verne e por aí fora, tornaram-me este local familiar. Posso imaginar os problemas postos ao arquiteto para decorar o interior desta estação num território fronteiriço entre a cidade e o campo, assim aconteceu até ao fim da Segunda Guerra Mundial, depois deu-se a explosão da construção para satisfazer novos estratos sociais que emergiram na multiplicidade de serviços que o Estado Novo consentiu. Francisco Simões e a dupla dos arquitetos encontrou soluções engenhosas para representar um quadro de identidade do passado ao presente, todo aquele azul celeste e mármores em policromia acolhem o passageiro e dão-lhe oportunidade, nos minutos de espera, de ir descobrindo a cifra de toda aquela representação humana e animal.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (36):
Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros
Mário Beja Santos
Aí pelos anos 1990 ampliaram-se várias estações do metro, o Campo Pequeno foi uma delas, coube ao escultor Francisco Simões e aos arquitetos Duarte Nunes Simões e Nunes Simões encontrar soluções plásticas e de remodelação num local marcado por uma praça de touros, com reminiscências de moradias, um entreposto de gados num espaço onde mais tarde se implantou uma Feira Popular, e uma vasta tradição à volta do itinerário saloio que passava por Entre Campos, eram negócios de produtos agrícolas levados da região de Loures para os principais mercados da capital. A solução estética a encontrar, diga-se em abono da verdade, não era óbvia, o Campo Pequeno tem um longo passado de zona de fronteira, durante muito tempo era o limite da zona da Lisboa urbana, depois o Campo Grande, deste ao Campo Pequeno passavam os gados para matança e consumo humano, mas havia outras atividades que Francisco Simões estudou e deu resposta com indiscutível talento.
Lembrou as lavadeiras e aguadeiras (vindas de Caneças), as vendeiras de fruta, de galinhas e ovos, as leiteiras e as floristas. Pelo eixo viário paralelo à Avenida da República, e que ainda na minha infância vi marcado por leitarias, carvoarias, tabernas e outro comércio adequado a servir esta tropa de vendedores, muitos deles vindos da Ribeira ou para lá caminhando a partir do chão saloio, pois bem, Francisco Simões perfilou esta mole humana e procurou resposta para o delicado problema da tauromaquia, num tempo em que já crescia a hostilidade às corridas de touros. Também aqui foi hábil, não há representações do ato de tourear, condiciona toda a representação plástica aos elementos do espetáculo: cavalos, touros, cavaleiros, toureiros; obviamente a imagem da mulher, como alusão erótica que a corrida contém.
Se o objetivo do escultor foi o de conceber uma arte ligada às coisas e às pessoas na confluência do Campo Pequeno, no passado e no presente, tomou opções que permitem considerar o produto final como de extrema engenhosidade: cantaria portuguesa, com o recurso ao polimento ou amaciamento dos mármores. Sabe-se que na questão da sua obra Francisco Simões utilizou diversos mármores: lioz, de Pêro Pinheiro; azulino, de Maceira; encarnadão e amarelo, de Negrais; rosa, de Vila Viçosa; ruivina, de Estremoz; brechas, de Tavira; negro, de Mem Martins; verde, de Viana do Alentejo; cinzento, de Trigaches, Alentejo, e azul da Baía, Brasil. Tudo em escultura figurativa. Impossível ao passageiro não se sentir curioso em procurar descobrir o sentido desta ligação entre o passado e o presente.
Impunha-se igualmente um diálogo permanente entre os arquitetos e o escultor. Os arquitetos não podiam fazer alterações de fundo nas dimensões da estação da autoria do arquiteto Keil do Amaral, havia que intervir naquele espaço alargado com as obras de arte, encontrou-se solução na abobada do cais com um azul-céu que aumentou virtualmente as dimensões e renovou os pavimentos mármore, garantido uma fruição dos painéis envolvendo a corrida dos touros e os seus protagonistas. A parceria arquitetura-escultura foi um sucesso.
(continua)
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Nota do editor
Guiné 61/74 - P22949: Os nossos seres, saberes e lazeres (489): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (28): Faiança polícroma, corda seca, ponta de diamante, o azulejo decorativo visto à lupa (Mário Beja Santos)