O que nós
andámos para aqui chegar…
Há quase cinquenta anos (vai fazer em 2025) que venho a Candoz, lembrei eu há dias no poste P24676 (*). E deixei, por outro lado, algumas reflexões avulsas sobre "mudanças" no nosso país, de que fomos todos sujeitos e objetos, atores e espetadores, nomeadamenmte no campo (por oposição à cidade).
Respondendo de resto ao meu desafio, o despretensioso texto mereceu alguns calorosos comentários de alguns amigos e camaradas, a quem fico reconhecido, porque vieram valorizar o tema, complexo, das transformações (económicas, sociais, culturais, mentais, etc.) por que passou a nossa geração, grande parte dela de origem rural... (Na década de 50, metade da população portuguesa ainda vivia dependente do setor primário da economia e, segundo o censo de 1960, um em cada três portugueses ainda era analfabeto!)
E, como eu disse, "foram muitas, essas transformações", para não dizer "profundas, radicais, estruturantes", em todos os domínios, a nível do indivíduo, da família, do habitat, do território, da economia, da sociedade, das organizações e instituições, etc. Da saúde à educação, do trabalho aos transportes, do lazer à cultura, da sexualidade à religiosidade, da política ao futebol, etc., etc.
Utilizei Candoz, por mera conveniência, como ponto de observação e de reflexão, por estar situado a 400 km de Lisboa a capital deste país que ainda é macrocéfalo); longe do litoral, a 340 km da minha terra natal, Lourinhã, a 70 km do Porto; enfim, no “país profundo”, onde o povoamento era (e ainda é) disperso e a predomina(va) o minifúndio, e onde eu ainda apanhei tantas “coisas do antigamente” (ou que ainda estavam frescas na memória das gentes do vale do Tâmega, que pega com o vale do Sousa, berço do velho Portugal, e por onde passa uma fabulosa rota do românico, que poucos portugueses conhecem)…
E cito ainda Candoz porque a elegi também como minha segunda terra... E por aqui andou o Zé do Telhado... E está rodeada de serras, com o rio Douro a fazer fronteira entre o distrito do Porto e o distrito de Viseu: Montedeiras, Aboboboreira, Montemuro, Meadas, Marão, Alvão...
Listo apenas algumas dessas "coisas do antigamente" que, umas felizmente já desapareceram (ou são "peças de museu"), outras ainda estão enraizadas nos nossos "usos e costumes"... São umas cinquenta (para arredondar) as que me acorreram, ao sabor do teclado e no decurso desta época de vindimas (em que vim passar 18 dias a Candoz, já tendo hoje regressado ao Sul).
Aqui váo, de 1 a 50, sem qualquer ordem de precedência, importância ou relevância;
(1) a luta dos rendeiros contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros (em em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);
(2) a estratificação social nos campos:”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);
(3) os salamaleques da “servidão da gleba”: “com a sua licença, meu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância;
(4) as juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;
(5) a criação, em cortes, do gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco (de Canaveses);
(6) a cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da II Guerra Mundial e do pós-guerrra);
(7) a vinha de bordadura e de enforcado (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco, o que se fazia era “para o padre”; e muito do que ia para o "utramar", a tropa, que tinha poder de compra, era vinho branco leve, de 9 / 10 graus, enviado para os armazéns do Porto e de Vila Nova de Gaia, e depois gazeificado e rotulado como "vinho verde branco");
(8) o vinho verde tinto, o tal "berdinho", bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;
(9) as “serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc., em que os familiares e os vizinhos se ajudavam, uns aos outros;
(10) os grandes cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros (e as mulheres à cabeça), por leiras e solcalcos abaixo (ou acima) até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão saibroso por causa da temperatura ambiente);
(11) a matança do porco, o fumeiro e a salgadeira (que eram o “governinho da tia Aninhas”, e também uma das principais causas de morbimortalidade por doenças cérebro-vasculares, como a “trombose”):
(12) o valor comercial da madeira de carvalho, castanho e pinho (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);
(13) a água de consortes, as "levadas" (como a água de Covas, que vinha da serra, e de que o meu sogro tinha direito a utilizar, só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde);
(14) os “montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios (não havia incèndios) como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer a "cama dos animais” e depois o estrume (fundamental para a cultura do milho ou da batata);
(15) a “esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos e se deitava todo o lixo orgânico que não fosse para a “gamela” de, "com a sua licença", o porco);
(16) as longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho, mas também ao médico e o hospital da misericórdia);
(17) a escassez de meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, serras mecânicas, etc.) e de transporte automóvel;
(18) a “venda” que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, palco de mexericos, boatos e notícias, etc. (a da Candoz, ficava no Alto, a 3 km de distância por caminho de carro de bois, que agora é estrada municipal e nos leva à albufeira da barragem do Carrapatelo);
(19) a sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até ao Juncal, e depois era transportada à canastra e vendida de porta em porta) (... e os ovos que se vendiam para comprar a "sardinha para très");
(20) o caldo moado, as cebolinhas do talho, os salpicões feitos em vinho tinto verde, o anho com arroz de forno, as papas de farinha de pau, o arroz de cabidela, o bacalhau “lascudo” no Natal, a aletria, etc.
(21) só os homens usavam calças (!);
(22) a virgindade (feminina) antes do casamento;
(23) o medo das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, do mau olhado, das pragas que se rogavam uns aos outros por ódio, vingança, desamores, etc.;
(24) a importância das feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda (ah!, os pregões dos feirantes!);
(25) as “tunas rurais do Marão” (indispensáveis nos "bailes mandados");
(26) a luz do candeeiro a petróleo ou querosene;
(27) o caciquismo político e eleitoral (do regedor, do padre, do comerciante, do professor, do “fidalgo"...);
(28) o “varapau” como símbolo da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):
(29) a fraca monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho, da cereja e pouco mais; ou trabalhando à jorna, ocasionalmente para o "ramadeiro", para o "construtor civil, etc., que os mais sortudos iam para a polícia e os caminhos de ferro);
(30) a autossuficiência da economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e a “ranchada de filhos” era garantia de mão de obra abundante e gratuita;
(31) a emigração, primeiro para o Brasil (até aos anos 50) e depois para França (muitas vezes "a salto") e Alemanha, também depois Luxemburgo e Suiça;
(32) o obscurantismo não só político e cultural mas também religioso (como o daquele pároco que mandou cortar as pilinhas dos anjinhos na igreja);
(33) as “grandes mulheres” que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes" (e tinham sempre uma palavra de peso, a última, nos negócios, nas compras de propriedade, nos amores, nos casórios dos filhos, etc.);
Mais
mudanças
Era tempo em que ainda…
(34) se andava descalço (ou, tal como em África, se levava os sapatos na mão até à entrada da vila, da escola, da igreja…);
(35) se batia forte e feio nos filhos (em casa e no campo) e nas crianças (na escola) ("quem dá o pão, dá a educação");
(36) se começava a trabalhar muito cedo (“ o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”; "na casa deste home, quem não trabalha não come; e na casa desta mulher, come-se tudo o que ela der"):
(37) havia o “baile mandado” com “mandador” e os homens e as mulheres separados, de pé, encostados às paredes da casa;
(38) ouvia-se o carro de bois a chiar pelos estradões (uma verdadeira sinfonia!);
(39) se cultivava o milho e o centeio;
(40) se cozia a broa de milho e centeio (três “quartos” ou partes de milho e um de centeio), no forno a lenha, e que tinha de durar 8 dias (ou até 15, "duro que nem cornos"!);
(41) em que os mais remediados diziam: “criei-os [aos filhos] fartos e cheios [de pão, que não se escondia na “trave” do telhado de telha vã, fora do alcance dos ratos e… das crianças, isso era sinal de pobreza];
(42) as crianças se habituavam, cedo, às “sopas de cavalo cansado” e eram “sedadas com bagaço” quando se contorciam com dores, tinham fome ou estavam doentes;
(43) as “parteiras” (que não as havia, diplomadas) eram as “aparadeiras” (mulheres curiosas, mais velhas, que já tinham sido mães...);
(44) não se conhecia a contraceção nem o planeamento familiar (mesmo a “pílula” chegaria tarde à cidade…) ("porra e lenha é quanto a venha", um provérbio que pode ter uma conotação sexual, mas não tenho a certeza);
(45) só se bebia leite (de cabra, de vaca era mais raro) quando se estava doente (em geral os adultos);
(46) o fatalismo dos provérbios populares (“boda e mortalha no céu se talha”, "muita saúde e pouca vida que Deus não dá tudo"...);
(47) se jogava ao pião (os rapazes) e se brincava às bonecas de trapos (as raparigas);
(48) não havia saneamento básico, água potável (a não ser o das minas) nem banheiro com duche;
(49) a electricidade, a televisão, etc., só chegariam depois do 25 de Abril (mesmo com a barragem do Carrapatelo a escassos quilómetros de Candoz);
(50) e quando a gente (a nossa geração) nasceu, por volta de 1945, no fim da II Guerra Mundial, ainda morriam 120 crianças em cada mil nados-vivos.
É bom não esquecer, para a gente dar valor ao esforço (individual e coletivo) dos portugueses na melhoria das suas condições de vida, de saúde, de alimentação, de trabalho...
Parafraseando, a canção do Zé Mário Branco, acrescentamos: "o que nós andámos para aqui chegar!"...
E dito isto, continuo a gostar de cá vir, em épocas emblemáticas, festivas, do Natal à Páscoa, da festa da Senhora do Socorro às vindimas... Claro, aos batizados, casamentos, festas da família, enterros… (E há perdas recentes, que nos deixam dor profunda e eterna saudade.)
E gosto de continuar a fotografar Candoz, ao longo das quatro estaçõesm e de preferència com a luz matinal... E em particular nesta época do ano em que aparecem as primeiras cores outonais e os primeiros cogumelos (os "sentieiros").
E continuo a eleger Candoz como tema da minha escrita (em prosa ou em verso, e nomeadamente nos meus/nossos blogues) (**). Afinal, sou um pobre "citadino"...
Que o leitor desculpe esta obsessão... É como a Guiné: estivemos lá menos de dois anos, e o blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné já vai a caminho dos vinte. (**)
(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24676: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Quinta de Candoz, as primeiras cores outonais...
Afinal este país velhinho que herdámos dos nossos avoengos, e de que nos orgulhamos, não tem fronteiras internas a não ser as "metereológicas" como o sistema Montejunto-Estrela ou o anticiclone dos Açores...
(...) Felizmente que algumas das coisas que mencionas acabaram. Felizmente que outras ainda se mantêm e hão-de continuar a fazer feliz quem as aprecia.
Faltou o ir descalço pra escola, que mesmo assim, quem me dera ter sete anos e o cabelo grande encaracolado e estar à espera do 7 de Outubro. (porquê a escola começava a 7 de Outubro?) (...)
20 de setembro de 2023 às 13:55
Um grande abraço, com votos de que possas abandonar, brevemente os empecilhos das muletas. (...)
(vi) José Teixeira:
Assim me fiz o homem que sou. (...)
20 de setembro de 2023 às 18:34
Sei que tiveste uma duríssima infància, tinhas razões de sobra para te insurgires contra Deus e os homens... Porquê eu, meu Deus ?!...
Não foi fácil a nossa infància, adolescência e juventudem em geral... Alguns, creio que poucos, da nossa geração, terão vergonha em dizè.lo em público... que também comeram o pão que o diabo amassou... E a guerra ajudou a nivelar as diferenças,,,
Mas fizémo-nos homens, e isso é que importa sublinhar. E temos orgulho emm dizê-lo aos nossos filhos e netos. Tu bem podes tè-lo, tanto quanto eu sei de ti e da tua história de vida! (...)