segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26403: Humor de caserna (98): Quando o IN... jabadava!... Até que o goês e pacato alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... (Rui A. Ferreira, Sá da Bandeira, 1943 - Viseu, 2022)


1. O Rui Alexandrino Ferreira (Sá da Bandeira, Angola, hoje Lubango, 1943-Viseu, 2022), ten cor inf ref, duas comissões no CTIG, a última como cmdt da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, jan 71 / set 72). 

Da primeira vez, esteve como alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67). Foi um grande operacional, e também um talentoso escritor, tendo-nos deixado três livros de memórias. Angolano,  adoptou a cidade de Viseu, depois do 25 de Abril,  para viver, amar, escrever e morrer (a sua última obra, de 2017, tem por justamente por título "A caminho de Viseu - Memórias").

Gostava de pregar partidas, e era um bom contador de histórias.


Do seu segundo livro ("Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014), vamos publicar duas histórias sobre Jababá (um dos subsetores do setor S1: Tite, Jabadá, Fulacunda, São João) , em dois postes separados. 

poucas referências no nosso blogue a Jababá (pouco mais de 3 dezenas), na região de Quínara, na margem esquerda do Rio Geba, um aquartelamento que se via quando se navegava no rio Geba, de Bissau para o Xime ou vice-versa (quer no "barco turra", quer em LDG).

A história da reconquista da Ponta de Jabadá en 29/1/1965, já foi aqui contada pelo Gonçalo Inocentes, nosso grão-tabanqueiro nº  810. Até então o PAIGC era "rei e senhor", impondo ali o terror à navegação no Geba.

Pelas nossas contas, esta história com o "alferes Basílio" deve-se ter passado em meados de 1965, ao tempo do BCAÇ 599 (Tite) e com o Pel Mort 912 a guarnecer Jabadá, reocupada após a Op Braçal. (No entanto, ao tempo do nosso camarada Santos Oliveira, ex-fur mil do Pel Mort 912, o comandante seria o alferes Rodrigues, desconhecendo nós o seu primeiro nome; mas Basílio também pode ser um pseudónimo.)

 

Quando o IN... jabava!... Até que o goês e pacato  alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... 


por Rui A. Ferreira (1943-2022)



Jabadá era uma guarnição debruçada sobre o rio Geba. Organicamente dependia do batalhão de Tite e era atacada constantemente, de tal forma que, quando se queria dizer que o IN tinha atacado  Jabadá, se dizia:

− O IN... jabadou!

O alferes Basílio era um moço calmo e sereno, como aliás o são a maioria dos indivíduos com tendência para engordar. Comandava o pelotão de morteiros que ocupava Jabadá e que era na altura a única tropa ali presente.

Farto de ter de aturar  ataques sucessivos, um belo dia, este tranquilo goês, abdicando da sesta, que era prática e unanimemente por todos cumprida (guerrilheiros do IN idem idem, aspas aspas), disfarçou-se a si e a parte do seu grupo, com roupas e artefactos do IN, saiu rapidamente do aquartelamento, entrou por uma casa de mato dos guerrilheiros, eliminou uma série deles e voltou o mais rapidamente que conseguiu para Jabadá.

Continuou a ser atacado, mas agora já sabia a razão porque o faziam.

Fonte: Excertos de  Rui Alexandrino Ferreira, "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014, pág. 346.


( Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, título: LG)
 
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domingo, 19 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26402: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (2): "se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais"... (Luís Graça)

Luís Graça
1. Houve vários casos, no TO da Guiné (e também em Angola e Moçambique), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, granada, mina ou armadilha, etc, ocorridos entre as NT, e que originaram baixas mortais (e feridos graves), tendo invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo" (*).

Precisamos que os nossos leitores, e nomeadamente os antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné, partilhem esses casos.

Interessei-me, em tempos, noutra encarnação, na minha vida académica, pelo tema dos "acidentes de trabalho" (a par das doenças profissionais e das doenças relacionadas com o trabalho)... Aliás fiz o meu doutoramento em saúde pública, na área de especialização em promoção da saúde no trabalho...

Na época (anos 80 do século passado, estávamos nós a prepararmo-nos para entrar no "clube dos ricos", a então CEE...),  ainda tinha muita aceitação em termos de senso comum a teoria do "blaming the victim": a vítima é que é culpada, até prova em contrário... Se é "erro humano" eu não pago, diz o empregador, diz a seguradora (pública ou privada)...

Na maior parte dos casos, o acidente (de trabalho, de lazer, de viação, de comboio, de aviação, de pesca, etc.) era devido a "erro humano" (o "operador"), e só muito acessoriamente a "falha técnica" (a "máquina").

Era/é uma teoria que dava/ dá jeito para a gente (a começar pelo Estado, os empregadores, as seguradoras...) sacudir a água do capote: 

  • ah!, não usava o capacete, os óculos de proteção, os auriculares, as botas de biqueira de aço, o famoso EPI...obrigatório por lei; 
  • ah!, era imigrante, não falava português;
  • ah!, era fumador;
  • Ah!, era epilético, ou tinha vertigens, não devia trabalhar em alturas:
  • ah!, era muçulmano, estava na Ramadão, não comia de dia, estava fraco; 
  • ah!, 'tava com os copos, ao almoço mete-lhe uns bagaços;
  • ah!, 'tava a abrir valas, viu a "garota de Ipanema", de minissaia, sem cuequinha, e ficou soterrado por um desabamento de terras, etc.

Ora eu defendia na altura a abordagem sociotécnica integrada. O acidente é sempre de origem multifactorial (depende de uma multiplicidade de factores de natureza física, química, biológica, psicossocial, organizacional, cultural), pelo que não se pode dissociar o "operador" e a "máquina", o "erro humano" e a "falha técnica, o indivíduo e o sistema, o pescador, a pesca, o barco, os apetrechos de pesca, o mar....

Tendencialmente os sistemas socioténicos, abertos, complexos, integrados (do avião à fábrica, da unidade militar à equipa de futebol) devem aproximar-se do zero erro... O erro pode ter maiores ou menores custos (diretos, indiretos e ocultos) e nalguns casos catastróficos como a queda de um avião, um naufrágio de um barco de pesca, o descarrilamento de um comboio, a queda de um guindaste, etc,...).

Nessa medida, o acidente, todo o acidente pode ser minimizado e prevenido, melhorando ou redesenhando o "sistema sociotécnico de trabalho"... O acidente é sempre, nessa medida, uma probabilidade estatística conhecida...

Os "acidentes com armas de fogo" podem ser equiparados aos "acidentes de trabalho", pelo menos na suas causas e consequências.... Se eu não tenho armas com uma alta fiabilidade e mecanismos de segurança, nem atiradores devidamente selecionados e altamente formados, treinados, competentes (e com boa saúde física e mental), corro o risco de ter um acidente... Isto é válido para todas as situações de trabalho ou atividade humana, no ar, no mar ou em terra, em paz e em guerra, etc.

O uso do álcool como droga "legal", socialmente aceite,  tolerada e até incentivada pelo Exército no nosso tempo, no teatro de operações...) pode também ajudar a explicar casos como o do infeliz Cavaco (que provocou uma tragédia).
 
Centrando-nos neste caso: o Cavaco, apurado para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialidade (era soldado condutor auto, deve ter feito testes psicotécnicos, era portador legal de carta de condução)... Bolas, não era um "básico qualquer" (!)... Mas não fez (nem nenhum de nós fez) testes de avaliação psicológica...

Dir-me-ão: mas era de todo impossível, com uma guerra como aquela em três frentes, a milhares de quilómetros de casa,  mesmo sendo considerada de "baixa intensidade!.. O país que mal conseguia recrutar, instruir, financiar, mobilizar, alimentar, municiar, manter e refrescar o então "maior exército do mundo" (à nossa escala ou dimensão), podia lá dar-se a esse luxo!... 

Bolas, mobilizámos, só na metrópole, 800 mil homens. Um milhão, com os não metropolitanos (ou de recrutamento local). Mais de um milhão, com que os que foram recrutados, e treinados mas que ficaram aqui na metrópole...a tomar conta do quintal.

E depois nem havia psicólogos!...(E os psiquiatras eram só "p'rós malucos"!)... Mas havia capelães, mesmo que a malta já não fosse à missa... E muito menos havia controlo do álcool (a não ser por via do autocontrolo e do medo do RDM ..) para certas funções, cargos ou especialidades...

E afinal de contas "só" tivemos  11,5% (entre as tropas metropolitanas) de baixas mortais por "acidente com arma de fogo" podendo aqui incluires, se quiseres, uns tantos casos, "que se contam pelos dedos" (!), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", e coisas do género sem significado estatístico)... 

Depois dos "ferimentos em combate (58,5%), a "doença" matou mais (12,9%)...E se juntares  o "acidente de viação" (7,6%), o "afogamento" (6,3%) e "outras causas (3,1%)  tens a  segunda causa de morte (17,0%) entre as tropas metropolitanas na Guiné (num total de 2177 baixas mortais, por todas as causas). (*)

Pois é, falta-nos investigação de arquivo: só consultando os processos individuais, as certidões de óbito, os processos de averiguações do acidente, etc., é que poderíamos ter uma ideia mais aproximada destes casos, e do seu contexto, etc.

 Tarefa ciclópica, para daqui a outros 50 anos: a tropa não te permite a consulta destes processos individuais em arquivo  a não ser com autorização (escrita) dos familiares mais próximos...(E todos os casos ainda podem ser dolorosos,  havendo alguns muito delicados: indícios ou provas  de suicídio ou homicídio, etc ..).

Mas tudo isto foi passado num "outro país" e  numa época em que a teoria da "carne para canhão" também era muito "popular" e aceite, com resignação, fatalismo ou  naturalidade, não só pelo "povo" como pelas "elites", políticas, militares, sociais e económicas... (e até religiosas).

O busílis da questão é que só tarde e mais horas é que os "altos crânios" desse tal país onde nasceste,  se  deram conta da crescente rarefação dos recursos humanos qualificados, necessários para alimentar uma guerra de longa duração (e que só poderia ter uma solução política...), a começar pelos comandantes operacionais... (As Academias Militares são bonitas, sim, senhor, mas  só em tempo de paz...).

Sabemos no que deu "fechar os olhos, os ouvidos e a boca" face à realidade (gritante), a de que, mais tarde ou mais cedo, a coisa ia dar m*rda...

Moral da história: se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais...
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966

sábado, 18 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26401: Os nossos seres, saberes e lazeres (664): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (188): From Southeast to the North of England; and back to London (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Venho eufórico de Bath para Londres, dividido entre lautos passeios pedestres, por exemplo deambular entre Blackfriars, Catedral de S. Paulo, trago uma lista de parques, museus e galerias, mas prefiro andar ao sabor da corrente. É a primeira vez que me vou aboletar em Barnes - Richmond, mesmo a beijar o Tamisa, receção calorosa, revisão de histórias de outros encontros, a anfitriã já viveu em Brighton, lá a visitei, felizmente que ela também gosta de Lisboa, tudo conveniente para os dois. O dia seguinte está por minha conta, é exatamente na estação de Hammersmith que foi tomada a decisão de ir até à National Portrait Gallery para iniciação desta imersão londrina. O que aqui se conta, entre passear em museus e vagabundear por estes espaços urbanos opulentos, muita coisa vai acontecer, deu-me para rever os lugares por onde andei quando estagiei na BBC Rádio e TV antes de conceber e apresentar programas televisivos de defesa do consumidor; não vi tudo quanto queria e do que vi matei saudades e colhi algumas deceções.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (188):
From Southeast to the North of England; and back to London – 7


Mário Beja Santos

Viagem de Bath para Londres, apanha-se o tube para a estação de Hammersmith, atravessa-se a ponte que está em obras, avança-se para o requintado bairro de Barnes, em Richmond, receção afetuosa, já se fala no regresso de uma querida amiga a Lisboa, é uma verdadeira andarilha, arrumada a tralha, nada como desempenar as pernas e passear numa margem do Tamisa, aproveita-se um antiquíssimo caminho, é inumerável o número de barcos de regata desde um par a múltiplos, mas o que mais me surpreende é a quantidade de barcos estacionados, daqueles que se veem nos braços do Tamisa, assim como há caravanistas, há gente disposta a passear e até a viver nestes barcos à beira-rio, irei ser confrontado com muitas destas imagens. Regresso a casa, já com as pernas moídas, dou conta que tenho o dia seguinte todo para vagabundear, tinha quatro opções possíveis em museus, apanharei metro para sair perto de Trafalgar Square e, portanto, passar umas horas na National Portrait Gallery, já fiz uma escolha do que pretendo ver. Recordo quando estagiei na BBC Rádio e TV, quando saía do edifício aí pelas 16h30 ou 17h, metia-me a caminho até Charing Cross Road, sempre a paixão dos livros, das galerias, havia para ali muitas lojas de alfarrabistas e obras em saldo. Como contarei mais tarde, grande foi a deceção. Se a arquitetura se mantém intocável, mesmo com a introdução destes gigantescos edifícios com vidros, a parte comercial alterou-se radicalmente, o declínio do livro é chocante. Aqui alinhavam imagens da belíssima ponte de Hamemrsmith, do passeio pedestre a uma margem do Tamisa e pela escolha que fiz na National Portrait Gallery, foquei-me nos Tudor e um conjunto de retratos soltos, nem todos ficam neste documento, virão no próximo.

Pormenor da Hammersmith Bridge, vista do lado de Barnes – Richmond, a seguir vou dar o passeio por este velho caminho por onde outrora os cavalos puxavam os barcos
Pormenor do Tamisa, com a elevada quantidade de barcos de residência
Um outro detalhe dos barcos que se espalham pelo Tamisa
A minha anfitriã deu-me a saber que aquele barco que se avista ao fundo é o mais antigo de Londres
Este velho caminho oferece as suas curiosidades arbustivas, não resisti a fixar esta
Fachada da National Portrait Gallery, junto a Trafalgar Square, tinha saudades de caminhar alguns quilómetros a ver retratada gente que recebeu a bênção da perenidade
Monumento à enfermeira Edith Cavell, heroína nacional, fuzilada pelos alemães em Bruxelas, em 12 de outubro de 1915
Retrato de Isabel I, 1533-1603, por Nicholas Hillard, cerca de 1575
Rainha Maria I, 1516-1558, por Hans Eworth, 1554. Este quadro terá feito parte das negociações para o seu casamento com o primo Filipe II de Espanha. Tal como a sua irmã Isabel, Maria I nunca casou
Retrato de Sir Walter Raleigh, 1553-1618, este senhor fez-nos a vida negra com razias em povoações do litoral português
Retrato de Henrique VII, por artista anónimo
Retrato de Henrique VIII com Catarina de Aragão, sua primeira mulher e mãe de Maria I
Biombo feito com a técnica de découpage, ou papier machê, mostrando cenas de boxe, pertenceu a Lord Byron, obra de Henry Charles William Angelo, 1814
Benjamin Franklin, 1706-90, por artista desconhecido segundo retrato de Joseph Siffred Duplessis
Capitão James Cooke, 1728-79, por John Webber

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 11 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26378: Os nossos seres, saberes e lazeres (662): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (187): From Southeast to the North of England; and back to London (5) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 16 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26397: Os nossos seres, saberes e lazeres (663): Convite para a apresentação pública do livro "Orando em Verso III", da autoria do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves, dia 24 de Janeiro de 2025, pelas 21h30, no Salão 1 da Igreja Matriz da Marinha Grande

Guiné 61/74 - P26400: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (35): Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª C / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) - Parte V


Foto nº 1A  > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Colheita da mancarra (ou milho painço?... É sorgo, diz o nosso especialista Cherno Baldé).

Aqui os homens também trabalham! Em Fulacunda praticamente não havia atividades. Cultivava-se apenas junto ao arame que rodeava a tabanca, alguma mancarra, milho painço, pescava-se muito pouco, apanhavam-se cestos de ostras que cozinhávamos como petisco ao final do dia e havia um milícia que às vezes caçava uma gazela e nos vendia a “preço de ouro”.


Foto nº 1B  > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Colheita de sorgo.



Foto nº 2A Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fazendo tijolos de adobe para uma morança. Durante a minha estada em Fulacunda, construíram-se apenas umas 3 moranças novas. As NT deram a sua ajuda preciosa


Foto nº 2B >  Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fazendo tijolos de adobe para uma morança (2).


Foto nº 3 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fonte dentro da tabanca. Furo feito pela companhia dos “Boinas Negras”, 1968/69 (?) [CCAV 2482, "Boinas Negras",  30 de junho de 1969 / 14 de dezembro de 1970]. 





Foto nº 4 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Horta do Tobias. Alguns soldados e gente da tabanca, sob a orientação do furriel Tobias,  dedicaram-se a esta horta que, como se vê, era bem verdejante, mesmo na época seca. Graças a ela tínhamos, couves, alfaces, pimentos e outras hortaliças.No lado esquerdo, vè-se uma picota (para retirar água de um poço).


Foto nº 5 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Avó com filho de soldado branco. Em Fulacunda, verifiquei que havia 4 crianças filhas de soldados brancos,  pertencentes a companhias anteriores. Também verifiquei que apenas uma das mães continuava a viver em Fulacunda.


Foto nº 6 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Lavadeiras. Fonte antiga. Todos os soldados tinham a sua lavadeira. A lavagem da roupa era feita na tabanca com água retirada através do único furo (foto nº 3), feito por uma companhia de caçadores estacionada em Fulacunda em 68/69 [ou melhor, 69/70], e que penso chamar-se “Boinas Negras” [ CCAV 2482, "Boinas Negras", subunidade que esteve em Fulacunda entre 30 de Junho de 1969 e 14 de Dezembro de 1970, data em que foi rendida e partiu para Bissau]. Contudo, quando havia muita roupa para lavar, as lavadeiras deslocavam-se à fonte antiga (foto), que se localizava na parte exterior do aquartelamento e portanto sujeita a “surpresas” [acções do IN].


Foto nº 7A > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Vista aérea do quartel (à direita) e "reordenamento" (à esquerda)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 7 > Vista aérea da pista, da tabanca e do aquartelamento de Fulacunda... Tentativa de reconstituição de:
  • perímetro de arame farpado (a amarelo, tracejado);
  • espaldões (artilharia, armas pesadas...) e abrigos (a vermelho, círculo);
  • área cultivável em redor do arame farpado (a verde, linha)... 

No sentido su-sudeste / nor-noroeste, vê-se a pista e o heliporto...Para a esquerda era o porto fluvial .  

Pelas minhas contas, o observando a foto aérea, a tabanca de Fulacunda não teria nesta altura mais de meia centena de moranças (300 e tal pessoas): 30 moranças com telhado de zinco e umas 20 com cobertura de colmo... 

A população  vivia em economia de guerra:  homens (milícias) e mulheres (lavadeiras) dependiam da tropa. Não havia bolanhas perto.... Não havia produção de arroz (cujo preço irá triplicar em finais de 1973/74). Nem devia haver nenhum comerciante. 

A região de Qiuínara foi muito afetada pela guerra (que "oficialmente", para o PAIGC, começou em 23 de janeiro de 1963 em Tite; na verdade, começou muito antes; Tite não tinha qualquer importância, e tinha menos população que outras tabancas da região de Quínara como Bissásserma, Iusse, Enxudé, etc. Fulacunda, sim, era sede de circunscroção admonistrativa... Isoladfa, entrouu em total decadència, e hoje não terá mais de 1500 habitantes.

(Com  o ataque estúpido,  precipitado e infantil a Tite, desencadeado por um "djubi" a quem deram uma pistola, Arafan Mané, abriu-se a "caixa de Pandora", e a Guiné tornou-se um inferno para todos... Porquê, para quê, Arafan ?)

No final da guerra, as NT deveriam ter cerca de 220 homens em armas em Fulacunda: além da 3ª C / BART 6520/72 (160 homens) ,o Pel Mil 221 (30 homens) e o 31º Pel Art (3 obuses 14 cm) (30 homens). O setor S1 (Zona Sul, 1) estava sediado em Tite. Havia quartéis e destacamentos das NT em Tite,  Bissássema, Enxudé, Nova Sintra, Ganjauará, Fulacunda (mais de 1100 homens em armas, segundo a minha estimativa ).(LG)


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagemcomplementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. O Jorge Pinto: (i) ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; 

(ii) natural de Turquel, Alcobaça; 

(iii) professor do ensino secundário, reformado; 

(iv) membro da Tabanca Grande desde 17/4/2012, com 6 dezenas de referências no blogue;

(v) tem o melhor álbum fotográfico sobre Fulacunda, região de Quínara, chão biafada;

(vi) pela qualidade técnica e estética, pela sensibilidade sociocultural bem como pelo interesse documental dos seus "slides", estamos a republicar, depois de reeditadas, algumas das suas melhores fotos (*).

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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26399: Notas de leitura (1765): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Se pretendermos sintetizar os acontecimentos deste período, é imperioso lançar um olhar sobre a política da I República que é pautada por movimentos revolucionários, uma sucessão de ministérios, enfim, instabilidade, que se repercute com as nomeações para Bolama; a nomeação de Andrade Sequeira é coincidente com o rol de queixas quanto a Teixeira Pinto e Abdul Indjai, sobretudo este é acusado de barbaridades, roubos, raptos e intimidações em série; Andrade Sequeira informa o Ministério de que Teixeira Pinto tinha como braço direito este torcionário; irão suceder-se os governadores, haverá mesmo um inquérito a Andrade Sequeira, cresce a instabilidade nos Bijagós, houvera um grave incidente em Bor, Portugal já está em guerra com a Alemanha, irão não só acentuar-se as dificuldades económicas e financeiras , os negociantes alemães têm os seus bens apresados, vem aí um tempo de grandes dificuldades.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto (10)

Mário Beja Santos

1915, o ano que é dado como o da pacificação da Guiné continental, conhece a polvorosa em Portugal. O general Pimenta de Castro é encarregado de organizar um Ministério, entretanto redobra a agitação republicana, há um movimento revolucionário que provoca largas centenas de mortos, o presidente Manuel de Arriaga é obrigado a demitir-se; virá João Chagas, que era embaixador em Paris, convidado para formar Governo, mal entra em Portugal sofre um atentado, fica gravemente ferido; em junho, Norton de Matos é o novo ministro das Colónias, irá nomear Andrade Sequeira para governador da Guiné (como o leitor estará recordado a sua primeira nomeação fora recusada pelo Senado).

Chega a Bolama numa altura em que já tinham terminado as operações de Bissau, é no rescaldo destas que se irão viver na Guiné conturbados e complexos tempos. Ao considerar que estavam detidos vários Grumetes sem razão fundada, Andrade Sequeira não via razão para eles serem julgados em tribunal de guerra, e os acusados foram enviados para Bolama, medida que deu contestação; os Grumetes, segundo uma petição que chegou ao governador, dizendo que este queria amnistiar gente que se juntara aos Papéis para atacar os europeus e os seus haveres. O protesto era subscrito também por vários funcionários da colónia; o governador irá demiti-los ou suspendê-los. Mas, entretanto, houve uma chacina de Papéis em Bor, praticada por Abdul Indjai e a sua gente, o régulo de Intim terá sido barbaramente assassinado, bem como membros da sua comitiva. Os comerciantes de Bissau pediam ao governador que tomasse providências para salvar os Papéis que eram barbaramente assassinados por estes auxiliares de Abdul. Em novembro, o governador informa o ministro da situação na província, resultante das operações que tinham sido realizadas em Bissau, sob o comando de Teixeira Pinto. Os comerciantes e residentes em Bissau tinham pedido a manutenção deste capitão e escrito ao ministro nesse sentido.

Andrade Sequeira escreve que “a designação de Grumete é dada na Guiné a todos os indígenas cristãos que são, na sua grande maioria, oriundos da raça Papel. São os Grumetes os indígenas que mais têm assimilado a nossa civilização, e são eles também que exercem todas as artes e ofícios, e ocupam vários empregos públicos. Muitos dedicam-se ao pequeno comércio, e pequena cabotagem, e alguns há que são abastados de proprietários, importantes e acreditados comerciantes”. E o governador informa o ministro que era público e notório, terminada a guerra de Bissau, que os auxiliares de Abdul continuavam a praticar toda a casta de violências, extorsões, roubos, assassinatos, saqueavam tudo. Os Grumetes estavam impedidos de se deslocar a Bissau. E mais informava o governador que iria fazer a ocupação militar do território, dá instruções rigorosas aos auxiliares que só poderiam afastar-se dos postos com ordem do comandante, os Papéis poderiam construir as suas tabancas.

Na mesma carta ao ministro dava-lhe conta do que tinha pretendido fazer na ilha de Bissau em 1914; que os Grumetes, representados pela Liga Guineense, haviam pedido insistentemente que não houvesse guerra, considerava que tinha sido péssimo e desastroso esta guerra de 1915, ainda por cima com uma composição de três oficiais, dos quais um era médico, seis praças europeias e 35 soldados indígenas, apoiados por 2 mil irregulares de Abdul Indjai, considerava que com esta proporção de irregulares era materialmente impossível disciplinar e fazer obedecer os auxiliares. “Foi o Abdul que bateu Bissau e que nós fomos, apenas, os seus modestos auxiliares. O governador lamentava ter sido um francês de nascimento e bandido de profissão a prestar serviços à província ‘por seu próprio interesse’”. E juntava documentos que atestavam as irregularidades e as arbitrariedades que Abdul praticara ao longo do tempo. Nesta mesma carta ao ministro, Andrade Sequeira está ciente das dificuldades em apear Abdul, ele ainda goza de popularidade e escreve: “É indispensável tolerá-lo, mas é forçoso desarmá-lo, restringir-lhe a supremacia e não lhe permitir que, impunemente, pratique toda a série de crimes, barbaridades e vandalismos.”
Seguiria esta política desde que obtivesse a anuência do ministro.

Armando Tavares da Silva cita uma informação do administrador de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, enviada a Andrade Sequeira, em síntese: Abdul era oriundo do Senegal, antigo negociante ambulante, tinha exercido comércio de permuta com os indígenas da Costa de Baixo, tinha sido preso pelo régulo dos Manjacos por abusos cometidos, dele se vingou em 1914; um dia desgostou-se das suas ocupações e armou-se em guerreiro, veio viver para a região de Geba, onde cometeu abusos, coadjuvado pela gente que o acompanhava, o que obrigou o comandante militar de Geba a prendê-lo e depois enviado para S. Tomé, de onde regressou em 1908 amnistiado pelo príncipe Luís Filipe, o governador Muzanty não o queria deixar entrar, cedeu ao pedido do régulo Abdulai do Xime; Abdul esteve ao lado de Oliveira Muzanty na guerra com Badora e Cuor, continuaram os abusos, chegou a apresentar-se em Bafatá com mais de oitenta homens armados; trata-se de um esclarecimento longo, cheio de referências a roubos e humilhações de toda a ordem, Calvet Magalhães confessa mesmo que tinha reprovado a decisão do governador Oliveira Duque para a nomeação de Abdul como régulo do Oio, a carta também refere a escravatura que Abdul exercia sobre os desgraçados que apanhava nas guerras.

Vão seguir-se audições de Teixeira Pinto, inumeradas as acusações e é o próprio Andrade Sequeira que incrimina o capitão; há uma participação judicial sobre Teixeira Pinto e Abdul Indjai, Andrade Sequeira manda abrir inquérito sobre o desaparecimento de um processo que implicava Teixeira Pinto, segue-se nova inquirição, Teixeira Pinto vai respondendo aos quesitos, quem coordena o processo é o vice-almirante Brito Capello que concluirá não haver nenhum facto concreto que determinasse procedimento contra o capitão.

Em 1916, temos novo ministro das Colónia, António José de Almeida, Andrade Sequeira abandona a Guiné, em 10 de março Portugal está em guerra com a Alemanha. Surgem problemas nos Bijagós relacionados com a cobrança de impostos, reconheceu-se a impossibilidade de cobrar imposto. Regressado a Lisboa, Andrade Sequeira pede ao ministro um rigoroso inquérito a fim de se averiguarem vários abusos praticados na colónia e que ele documentara nos seus relatórios. O inquérito é entregue a Manuel Maria Coelho, um oficial que foi o primeiro governador-geral de Angola no regime republicano. O relatório deste é absolutamente demolidor quanto ao comportamento do governador Andrade Sequeira, e conclui mesmo que a obra do capitão Teixeira Pinto na Guiné tinha sido tão fecunda em benefícios para a colónia e em glória para Portugal como nefasta foi a obra do governador Andrade Sequeira.

Iremos ver agora o período de 1917 a 1919 marcada por desacatos em Canhabaque, a governação interina de Manuel Maria Coelho, haverá novo governador interino, Ivo Ferreira, e a segunda presença de Josué de Oliveira Duque à frente dos destinos da Guiné, e, no tropel dos acontecimentos, Sousa Guerra também será nomeado governador da Guiné.


Armando Tavares da Silva
Régulo Mamadu Sissé, colaborador de Teixeira Pinto nas operações de Bissau, fotografia de Domingos Alvão, tirada durante a I Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934
Aldeia Mancanha, 1910
Terra Ardente (1960, documentário realizado por Augusto Fraga, pertence à Cinemateca Portuguesa, com a devida vénia

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 10 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26373: Notas de leitura (1763): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (9) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26385: Notas de leitura (1764): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966




guardião das memóras da CART 1613 e de Guileje (1967/68). 
Foi um histórico (e um entusiasta) do nosso blogue
 e o primeiro a "deixar-nos"...  Tem mais de 80 referèncias.




Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224


1. Houve vários casos de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, mina ou armadilha, etc,  ocorridos entre as NT, no TO da Guiné, e que originaram baixas mortais, tendo  invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo". 

Trata-se de um "eufemismo", ou seja, um figura de estilo que usamos para, sem alterar o essencial do sentido,  encobrir, branquear, disfarçar ou atenuar factos, situações ou ideias  grossseiras, rudes, desagradáveis ou dramáticas, recorrendo a expressões mais suaves ("lerpar", por exemplo, em vez de "morrer", "levar um par de patins" em vez de "ser punido")...

O eufemismo é muito usado pelos seres humanos (não sei se os robôs já sabem usá-lo: depois de aprenderem a matar, aprenderão todo o resto). Os portugueses não são exceção. O eufemismo ajuda-nos a alijar a culpa, escamotear a responsabilidade, humanizar a tragédia, dourar a pílula, aligeirar a realidade, suportar o absurdo, fazer humor...e até "fazer amor" (outro púdico eufemismo).

No caso do meio militar, em tempo de paz ou de guerra, a expressão "acidente com arma de fogo" afeta menos o moral da tropa do que expressões ou vocábulos com "carga negativa" como fogo amigo, homicídio, suicídio., erro humano, falha técnica... Não sei como o exército, durante estes período de 1961/75, dava estas "funestas notícias" à família... De qualquer modo, o eufemismo também a ver com o pudor face à morte e sobretudo à "hipocrisia social".

Talvez por isso, por estas e outras razões, se prefirisse usar a expressão "acidente com arma de fogo" em vez  de "chamar os bois pelos nomes"...E no entanto as forças militares e militarizadas correm mais o risco de usar, indevidamente, as armas que estão à sua guarda... (Mas nós, convém dizê-lo,  não somos especialistas em ciências forenses, nem em justiça militar...)

Alguns destes casos já foram relatados aqui no blogue.. Vamos recapitulá-los, esperando com isso sistematizar esta matéria (que é melindrosa e dolorosa) e suscitar eventualmente novos contributos por parte dos nossos leitores.... Em tempo de paz ou de guerra, estes casos não chegam, em geral,  ao conhecimento público. Não chegavam ontem (nem hoje, apesar da liberdade de imprensa)...


2. Foram contabilizadas durante a guerra colonial (1961/75), no conjunto dos combatentes dos 3 ramos das forças armadas (e incluindo os do recrutamento local), em Angola, Guiné e Moçambique:

  • 10425 baixas mortais ("mortos"), por todas as causas (combate, acidente e doença),
  • a par de 31300 feridos graves (3 feridos graves por cada morto; 10 feridos, graves e não graves, por cada morto)
No TO da Guiné, esses números foram os seguintes:

  • 2854 mortos (dos quais 1717 em combate);
  • 9400 feridos graves.
"Excluindo as milícias", os mortos do Exército na Guiné foram os seguintes, discriminados por principais causas:

  • Ferimentos em combate = 1273 (58,5%)
  • Doença = 281 (12,9%)
  • Acidente com arma = 251 (11,5%)
  • Acidente de viação = 166 (7,6%)
  • Afogamento = 138 (6,3%)
  • Acidente de aviação = 2 (0,0%)
  • Outras causas  = 66 (3,0%)
  • Total= 2177 (100%)
(Fonte: adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra em África". Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2021, cap. II, pp. 97 e ss.)

Pelo menos, cerca de 12% das mortes no TO da Guiné foram devidas a "acidente com arma de fogo"... 

Estarão aqui, nestes casos,  as situações, mais frequentes de falhas no manuseamento de minas, armadilhas, dilagramas,  granadas de LFog e de armas pesadas, disparos acidentais com pistolas, pistolas-metralhadoras, espingardas automáticas, erro humano ou técnico, etc.,  mas também "fogo amigo", homicídio, suicídio, automutilação...



3. O caso do cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz é, inegavelmente, um dos que podemos classificar como homicídio.

 O autor, confesso, do crime, o soldado Cavaco,   foi condenado em Tribunal Militar a 23 anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Vejamos, sumariamente, como tudo ocorreu.

Na vésperas da noite de Natal de 1966, uma tragédia vai ensombrar a história da CART 1613/BART 1896, a companhia que estava em IAO em São João, na região de Quinara, frente á ilha de Bolama, e que iria, seis meses depois, para Guileje (onde esteve, como unidade de quadrícula,  de junho de 1967 a maio de 1968). 

BART 1896, mobilizado no RAP2, Vila Nova de Gaia, esteve originalmente destinado a Angola. Tinha desembarcado em Bissau em 18 de novembro de 1966 (e regressaria à metrópole em 18 de agosto de 1968).  (Além da CCS, e da CART 1613, era formado ainda pela CART 1612 e CART 1614.).

No livro da CECA (8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224) diz-se que "o cap mil art com o nº mecanográfico 1036/C", de seu nome Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, a comandar a CART 1613, foi vítima  de "acidente com arma de fogo" (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João (e não Cachil...), vindo a morrer a 24 de dezembro de 1966 no HM  241, em Bissau.(*)

 (Há aqui, parece-nos,  um erro a corrigir: O cap art Fausto Ferraz não era milicino, pertencia ao QO, e foi-lhe,  "a posteriori", feita a correção de antiguidade, ao abrigo da Lei 15/2000, de 8 de agosto:  alferes com a antiguidade de 1 de novembro de 1952; tenente com a antiguidade de 1 de dezembro de 1954; capitão com a antiguidade de 1 de dezembro de 1956; major com a antiguidade de 25 de Maio de 1966; na ficha da unidade, publicada pela CECA aparece como "cap mil grad art"; o seu nome também não consta da lista dos antigos cadetes da Academia Militar mortos ao ao serviço da Pátria durante a Campanha do Ultramar, 161/74).

O malogrado cap art Fausto Ferraz (de que não temos, infelizmente, qualquer foto) foi inumado no cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.

Houve testemunhas desse funesto acontecimento. O cap SGE ref José Neto (1929-2007), um dos históricos do nosso blogue (**), contou-me (e depois contou-nos), antes de morrer,  que o autor dos disparos foi o soldado condutor autorrodas José Manuel Vieira Cavaco. 

O Cavaco era madeirense, tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana de açúcar (rum da Madeira) (ou mais provavelmente poncha, a bebida tradicional da Madeira, feita de aguardente de cana-de-açúcar, açúcar ou melaço de cana e sumo de limão). 

Já não poderemos confirmar se era rum da Madeira, só regulamentado em 2021,   ou a tradicional poncha da Madeira, cuja produção e comércio também só foi regulamentada há uns anos atrás, em 2014, pelo Governo Regional da Região Autónoma da Madeira; de qualquer modo,  o rum tem um teor alcoólico minimo de 37,5º, superior à poncha (25º).

Chegado à Guiné há pouco mais de um mês, a CART 1613  estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional.

A mobilização para a Guiné (em vez de Angola), as andanças do batalhão e da companhia, 
as saudades da terra, a incerteza face ao futuro, as recordações do Natal na ilha e a poncha (ou o rum)  fizeram uma mistura explosiva. 

Sob o efeito do álcool, e sem qualquer motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, "alferes de artilharia, graduado em capitão", Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na véspera de Natal, 24  de dezembro de 1966.

Creio que feriu mais militares. O Zé Neto, na altura 2º sargento a exercer as funções de 1º srgt,  "teve que o esconder para ele não ser linchado" (sic). (***)


3. Voltemos ao relato do Zé Neto (que foi a principal testemunha):

(...) No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia. (...)

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM [Polícia Militar] e dum sistema de deteção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária. (...)

O primeiro ato de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:

 
– Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.

Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o setor da alimentação com os desvarios que o Furriel vagomestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no setor administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.

Em princípios de janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra. 

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:

 – O nosso comandante... é o capitão Corvacho!

Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:

– Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3. (...)

PS - Acrescente-se que a quadra natalícia, coincidência ou não, parece que era propícia à ocorrência de baixas mortais (os nossos camaradas do Portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar publicaram uma lista de cerca de seis dezenas de combatentes, dos 3 TO, que tombaram na véspera e no dia de Natal, por todas as causas, incluindo acidente com arma de fogo, acidente de viação e afogamento. Talvez houvesse mais álcool a correr, nesses dias...
 

4. Eis um excerto do relato do Zé Neto sobre o julgamento do Cavaco, realizado um ano depois em Bissau. (O cap inf Eurico Corvacho ficará entretanto no lugar  do cap art Fausto Ferraz, não sabendo nós o destino que foi dado ao cap art Lobo da Costa que o vinha substituir) (****)


(...) No final do ano [1967], eu, o furriel Martins e o 1º cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do soldado Cavaco . O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido. 

O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.

Tanto eu como o furriel e o cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o juiz auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o caráter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.

Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:

– Um excelente e infeliz soldado.

A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...) (***).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 
13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26386: Humor de caserna (95): Os meus Natais de 66 e 67 no HM 241, em Bissau (António Reis)
 
(**) Vd. postes de:


10 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P417: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)