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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26923: Humor de caserna (200): "Bomba" no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, Bissau, em plena sessão de cinema ao ar livre (Abílio Magro, ex-fur mil, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)


Guiné > Bissau > Outubro de 1973 > O António Graça de Abreu, em boa forma, no regresso de férias na Metrópole, na  piscina do Clube de Oficiais, Santa Luzia,  enquanto aguardava transporte para o CAOP1, em Cufar, no Sul].

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné ] 



Guiné > Bissau > c- 1973/74 > Clube de Oficiais, QG/CTIG em Santa Luzia > "Eu, na messe e piscina em Santa Luzia; ao fundo vê-se o ecrã de cinema, que funcionava à noite... Os sargentos podiam frequentar a piscina aos sábados, o cinema era acessível a oficiais e sargentos.

Foto (e legenda): © Carlos Filipe Gonçalves (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É uma história hilariante (*), esta, vivida e contada pelo  Abílio Magro, um dos seis manos Magro que a Pátria chamou ao seu serviço em Portugal e terras de alé-mar em Áfriica:

(i) foi fur mil, CSJD/QG/CTIG, 1973/74);

(ii) trocado por miúdos, a sigla quer dizer "Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné";

(iii) entrou para a Tabanca Grande em 2013;

(iv) é nosso colaborador e tem mais de seis dezenas e meia de referências no blogue;

(v) vive no Porto.


"Bomba" no Clube de Oficiais do QG/CTIG, em Santa Luzia, Bissau, em plena sessão de cinema ao ar livre

por Abílio Magro

Nas Instalações Militares de Santa Luzia existia um Clube de Oficiais, composto de acomodações, messe, piscina, esplanada bar e cinema ao ar livre. (Podia-se fumar enquanto se via uma "sessão"... "Porreiro, pá!").

A classe de Sargentos tinha acesso a esse Clube para assistir à exibição de filmes e, uma vez por semana (às quintas, julgo eu) [e/ou sábados, segundo o Carlos Filipe Gonçalves, que trabalhava na ChefInt] tinha também acesso à piscina.

O local era circundado por um muro formado com aqueles tijolos geométricos que permitem ver de um lado para o outro.

O cinema era montado no recinto da piscina e a tela era composta de um grande pano branco suportado por duas altas estacas. 

As cadeiras eram metálicas, daquelas de fechar, usadas normalmente nos parques de campismo e nas nossas praias.

Nestas circuntâncias, as sessões de cinema eram efetuadas à noite, como é óbvio,  e, como do outro lado do muro existiam tabancas, os respetivos habitantes viam o filme do outro lado da tela com as legendas do avesso, o que nunca impedia uma razoável assistência nativa.

Quando no filme se desenrolava uma qualquer cena de pancadaria entre um branco e um negro (Sidney Poitier, por ex.) e o negro dava um murro no branco, invariavelmente se ouvia uma grande salva de palmas vinda do outro lado do muro. Compreensível, diga-se de passagem.

Alguns soldados sentavam-se nos muros e também assistiam ao espectáculo.

Naquela altura pairavam no ar receios fundados de provável início de guerrilha urbana em Bissau. Ali, no cinema ao ar livre e com as luzes apagadas por via da exibição cinematográfica, e com as tabancas do outro lado do muro, uma bombita era "canja!"

O pessoal andava nervoso.

Naquela noite o cinema estava cheio, como de costume. Eu também lá estava a ver uma "sessãozita".

De repente vê-se um clarão... e a debandada foi geral! Com a confusão, algumas cadeiras "ensarilharam-se", provocando tropeções e quedas e os que caíam ao chão eram, espezinhados pelos outros, como foi o meu caso.

No chão, a ser espezinhado e com as cadeiras a atrapalhar, não conseguia fugir e entrei em pânico! Ouvia o som das "Kalashnikov"! Ia ser apanhado à mão, despedi-me da família!

Passadas longos minutos, lá me consegui erguer e, já pronto para saltar o muro, ouço risadas!

O pessoal da primeira fila tinha-se safado bem das cadeiras e, junto à tela, deliciava-se com o espectáculo. 

Extremamente nervoso e com o coração a bater a 200 r.p.m., mandei umas "bocas foleiras" aos de "tacha arreganhada" e dirigi-me ao chuveiro da piscina para lavar os arranhões (face, braços e pernas)... Tive a companhia do brig Galvão de Figueiredo que lá foi fazer o mesmo às mãos e que vociferou:

− Cambada de cretinos!

Entretanto:

− De quem são estas chaves?...

− Ó Magro, olha aqui o teu cartão!

Os meus "bens pessoais" lá foram aparecendo aos poucos.

Resumindo:
  • a "bomba" tinha sido uma caixa de fósforos que se incendiara a um soldado, enquanto acendia um cigarro em cima do muro e que se terá desequilibrado; 
  • na queda, terá arrastado consigo mais dois ou três camaradas;
  • os longos minutos no chão a ser espezinhado, ter-se-ão resumido a meia dúzia de segundos;
  • os tiros de Klashnikov seriam, afinal, as cadeiras metálicas a bater umas nas outras.
Mais um filme que ficou a meio e eu, novamente, fui direitinho ao quarto (no "Biafra" dos Sargentos).

Acreditem que foi o maior susto que apanhei em 18 meses de Guiné. Acreditem que, em pânico, a ser pisado, sem me poder levantar, nem ver o que se passava ao redor, nem que fosse feijão fradinho entrava no "uropígio"!

No dia seguinte, quando entro na CSJD,  vejo o cabo condutor-motorista do ten cor com a mão esquerda ligada.

− Então, que foi isso?

− Queimei-me ontem à noite no cinema.

Ali estava o autor do "crime"! (**)

(Revisão / fixação de texto / título: LG)



Guiné > Bissau > Santa Luzia > QG / CTIG >"Cartão que nos foi distribuído para podermos circular no QG depois da bomba. Reparem nas datas de emissão e validade (parece que contavam comigo até ao fim da comissão)"

De facto, o cartão era válido de 27 de abril de 1974 a 27 de março de 1975... A bomba no QG/CTIG terá sido em 22 de fevereiro de 1974... A burocracia militar levou dois meses a emitir o cartão de acesso ao QG/CTIG!...

Foto (e legenda): © Abílio Magro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné- Bissau > Bissau > c. 1975 > Novo mapa, pós-colonial, da capital da nova república, já com as novas designações das ruas, avenidas e praças, que vieram substituir o roteiro português: Av 3 de Agosto, Av Pansau Na Isna, etc. Veja-se a localização do porto do Pijiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante).

Santa Luzia e o Cupelon (já fora da malha urbana da "Bissau Velha") ficavam paredes meias... 

Pensando bem, o QG/CTIG podia ser, teoricamente, um alvo fácil para uma ação terrorista do PAIGC... Até porque trabalhavam muitos civis naquelas instalações militares, onde se integrava o Clube de Oficiais e o "Biafra" (dormitório dos oficiais milicianos em trânsito por Bissau).

Foto: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2025 >  Guiné 61/74 - P26835: Humor de caserna (199): O meu grande "bubu" azul!... Que pena não mo terem deixado levar, vestido, no avião da TAP, de regresso a casa !... (Jorge Cabral, 1943-2021)


(**) Excerto do poste de 7 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11164: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (6): Regresso a Bissau

domingo, 15 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26922: A Bissau do Meu Tempo (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte III: O "Biafra", "o barraco-dormitório dos oficiais milicianos de passagem", que fazia parte do "Clube de Oficiais" do QG/CTIG, em Santa Luzia (Fotos de 1 a 10)






Foto nº 6A e 6



Foto nº 1 e 1A


Foto nº 5


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 8


Foto nº 7


Foto nº  9


Foto nº 10


Guiné > Bissau > Santa Luzia > QG/CTIG > 1967 > "Biafra" e outras instalações do "Clube de Oficiais" (messe, piscina, esplanadas...) > 

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do Virgílio Teixeira, segunda, 9/06/2025, 23:44


Boa noite, Luis,

Antes de chegar o dia 10, o Dia de Portugal e dos antigos combatentes, estou a enviar aquele poste que foi o mais difícil e trabalhoso, dado o seu melindroso tema.

Ando há um mês com isto, e já iniciei o fim da estória em 1 de junho, agora já acho que é tempo de mais e quero trabalhar noutras coisas.

Espero que não vamos abrir aqui uma fenda, entre os privilegiados e os outros. Mas foi assim, e tudo o que está escrito, salvo erro de algumas datas ou omissão de outros comentários, fiz aquilo que sei, e para quem não teve esta oportunidade, fica aqui a saber como foi no meu tempo.

Atenção que eu não vivia lá, no "Biafra", só uma vez por mês no máximo, e aproveitava o que podia.

Penso que depois, nos anos seguintes e pelo que já vi por aí em novas fotos dos anos 70 e tal, de outros camaradas, as coisas mudaram muito para melhor, e abriram as portas à classe de sargentos, não havia justificação de ser um espaço elitista.

Os dormitórios não sei como se aguentavam, falo do "Biafra", como parte do "Clube de Oficiais"...


Abraço, Virgilio


2. A Bissau do Meu Tempo > "Biafra" (Fotos de 1 a 9)

Sabado, dia 01 Junho , 20h50


ARQUIVO SOBRE BISSAU > BIAFRA – CLUBE MILITAR DE OFICIAIS DO QG – PISCINAS – MESSE DE OFICIAIS


Nota de introdução:

O presente Poste sobre este tema pode ferir a suscetibilidade de alguns antigos combatentes, que não se reveem nestas fotos e descrição das mesmas.

É um tema que esteve sempre guardado, por respeito àqueles que não tiveram estas oportunidades, posso até dizer que pode ser um atentado a todos que tiveram uma guerra que não esta.
´
Uns excessivamente mais dura, mas há muitos que também tiveram melhor vida.



A minha Vida em Bissau:

O nome de "Biafra" foi das primeiras noções sobre a Guiné desde que aterrei em Bissau no dia 21 set 67 pelas 9h da manhã.

O "Biafra" era o nome dado ao barracão de madeira, com cobertura de zinco, onde pernoitavam naquele tempo os oficiais milicianos subalternos, alferes e tenentes.

Para os restantes oficiais existiam vivendas com quartos individuais de qualidade razoável.
A conotação vinha exatamente do apoio dado por Portugal à guerra do Biafra que se desenrolava na Nigéria (#), tal como depois a guerra do Catanga no Zaire (ex-Congo Belga).

Quando parei no Sal onde pernoitamos, encontravam-se dois aviões diferentes que logo soubemos que iam para o Biafra, nome que já conhecia antes, tal como o Catanga.

Este barracão era dotado de nada, apenas camas de ferro, colchão verde de espuma. E, para quem o conseguisse, podia ter uma rede mosquiteira, para nos salvar dos mosquitos   
indesejáveis. Beliches de dois andares, sem limpezas nenhumas. E, como já foi dito,  era um calor sofucante, que nem as portas abertas resolviam o ambiente brutal de cheiros.

Não era uma prisão porque não havia presos especificos e condenados, pois todos que tinham o azar de cair na Guiné,  já eram presos à nascença sem culpa formada, mas condenados a 2 anos de pena efetiva, não beneficiavam de pena suspensa, como a maioria dos fora-de-lei exceto aqueles que cairam no terreno, mortos ou feridos e evacuados.

Como comodidades havia um espaço de casas de banho, sem sanitas, à caçador, e julgo que 2 ou 3 chuveiros para o duche. Havia uns lavatórios, não havia sabão nem toalhas, nada.

Isto era o "Biafra" que conheci, e onde fui parar logo na primeira noite do dia 21set67.

Nos anos seguintes era a mesma coisa, com a agravante da degradação por ausência de obras.

Este barracão-dormitório, destinado àqueles que chegavam em rendição individual, ou que partiam e regressavam de férias à metrópole, ou regressados pós-consultas externas e
tratamentos no Hospital da Estrela, entre outras situações, eram por isso mal dotados em tudo.

Mas diga-se que na minha cabeça pairava outro cenário bem pior, por isso não fiquei com traumas, aceitei aquilo que tinha.

Este pessoal não ia para as instalações dos Adidos (o Depósito Geral de Adidos) em Brá,   
porque aí só ficavam as unidades completas, que chegavam ou partiam.

Era este o meu caso, que, embora não tivesse ido em rendição individual, parti antes do
embarque do Batalhão em avião militar C6, juntamente com o comandante, o oficial de 
operações, dois alferes milicianos de duas companhias operacionais e os dois respetivos sargentos do quadro.

Embora não venha a propósito do tema, quando lá voltei à Guiné em outubro de 1984, fui hospedar-me naquele empreendimento, que era o Hotel 24 de Setembro, com poucas modificações introduzidas. No local do barracão, o "Biafra",  foram construídas meia dúzia de pequenas vivendas iguais às que já existiam do tempo da tropa, para os oficiais superiores, mas tudo era muito pior do que antes.

Voltando e para falar do "Biafra", o barracão- dormitório, mal amanhado: fazia parte de um grande complexo, a que se dava o nome pomposo de "Clube de Oficiais" do QG – Quartel
General – ou de "Santa Luzia".

Faziam parte do Clube,  além do dormitório, um amplo espaço de ruas asfaltadas, com valas fundas para o escoamento de águas, jardins por todo o lado, bem tratados por pessoal profissional.

Completavam as instalações uma dúzia ou mais de pequenas vivendas individuais, para os oficiais superiores e famílias, muito bem tratadas e ajardinadas.

Além disso tinha então um amplo e grande espaço, a "Messe de Oficiais",  um edificio para as refeições, os bares, as salas de jogos e filmes, salas de conferências, tudo espaços de lazer
impecáveis, que toda a oficialada frequentava, servidos por pessoal civil, empregados locais, de luva branca, e outros mimos que, pela minha parte, não conhecia.

Cá fora um amplo espaço de  "Esplanadas e Bar", para as tardes quentes e as noites húmidas inundadas por carradas de mosquitos, que atormentavam o pessoal. 

A luz era fraca, e havia aquelas coisas que não me lembro do nome, que queimavam e faziam um fumo indesejável à mosquitada [o repelente antimosquito, o mais conhecido era o de marca "Lion Brand"].   

Muitos sofriam as agruras das picadelas, e os efeitos nas peles brancas. Por acaso, eu fui um sortudo, a minha pela escura era um tampão às picadelas, não me faziam nada de especial, embora as quantidades enormes chateavam pela sua presença.

Finalmente tinhamos a "Piscina privada do Clube", uma boa piscina diga-se em abono da verdade. Dotada de bar e instalações sanitárias completas.

À volta tudo ajardinado com relva sempre bem tratada, àrvores de frutas, sombras, alguns equipamentos de ginástica.

Tudo isto era o chamado complexo do Clube, que não era o "Biafra", este era apenas o barraco- dormitório dos oficiais milicianos de passagem.

Todo o complexo era gerido por um coronel de Administração Militar a quem davam o pomposo nome de "O Lavrador", por ele se dedicar muito a tudo que dizia respeito às plantas,
flores, relvas, árvores e frutas. Nunca falei com ele, apesar de o ver muitas vezes, era gordo e anafado.

Mas tinha,  a complementar tudo, a sua bela filha Suzy, uma rapariga nova que ornamentava as vistas da piscina, com quem tive uma relação próxima, sem nunca lhe ter tocado.

Poucas mais mulheres brancas se viam, mas algumas, poucas, eram as esposas de oficiais que ali viviam na sua comissão de serviço.

Vivia ali muita gente, ligados quer ao QG, às Companhias de Intervenção, alojadas no quartel, ali ao lado, a que se dava o nome de ‘O 600’, por ter sido construído por esta companhia ou batalhão.

O QG tinha todos os serviços, todas as REP , o Serviço de Justiça, a Chefia de Contabilidade, a Chefia da Intendência, a CHERET, com muita gente, empregados civis, muitos.

A entrada para o complexo, era feita pela estrada de Santa Luzia, que partia cá de baixo junto ao Pilão, e acabava na Porta de Armas. E para lá chegar havia uma viatura militar de hora a
hora, para baixo e para cima, para o transporte do pessoal apeado.

Eu pouco usufruí disso, pois em pouco tempo já tinha o meu próprio meio individual de 
transporte motorizado,  de duas rodas.

Além dos residentes habituais, eram enviados para lá os oficiais que tinham de ir a Bissau, e por Guia de Marcha iam lá parar. Depois da apresentação, acho que ficava lá o meu nome (bem como o dos outros) como comensal habitual, e eram mais as vezes que ficava fora do que lá dentro, por isso podia ser um bom filão de receitas colaterais.

Ali bem perto, a uns 100 metros tive a oportunidade de conhecer a primeira amiga cabo-verdiana, e ganhar uma relação de amizade, que acabou mal para ela, por razões de iintimidades com um militar do quadro.

Isto é aquilo que eu conheci, tal e qual com estes nomes, nos anos de 67, 68 e 69. É natural que muita coisa se tenha alterado, mas não no meu tempo. Isto era o que eu conhecia.

Foi o primeiro local que visitei quando cheguei, vindo diretamente do aeroporto , em jipe militar, e feita a minha apresentação às Autoridades Superiores do QG, onde cheguei, com a farda número um, incluindo o blusão, completamente encharcado dos cabelos aos pés.

Recebido num gabinete que mais parecia uma casa mortuária, era um congelador onde vivia aquela gente, e no pouco tempo que lá passei a tiritar de frio, ainda hoje me lembro como a
pior experiência climática da Guiné. Daí para diante comecei a ter problemas com os dentes, e nunca mais suportei em toda a minha vida, presente e futura, o chamado ar condicionado.

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Nota de VT/LG:

(#) A Guerra do Biafra (também conhecida como Guerra Civil da Nigéria, Guerra Civil Nigeriana, Guerra Nigéria-Biafra...) prolongou-se de 6 de julho de 1967 a 13 de janeiro de 1970; foi um conflito político causado pela tentativa de cessação ou separação das províncias ao Sudeste da Nigéria, como a autoproclamada República do Biafra. Traduziu-sde numa imensa tragédia humanitária com mais de 2 milhões de mortos, e muitos mais deslocados e refugiados, devido a guerra e á fome.
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As Fotos:


F01 – O "Biafra" que encontrei quando ali cheguei. Tem uma cruz, era a porta onde eu fiquei. O acesso nem tinha um passeio ou coisa parecida, era um caminho, que já todos depois lhe chamavam de picada. Ao lado parece que tem um aparelho de ar condicionado, mas é uma
simples ilusão de óptica.

F02 – O "Biafra" com telhado em zinco, bom para aquecer mais, e uma vista da rede mosquiteira. Agora vendo melhor, pensei que era mais fina, mas parece-me agora um pano
grosso, tipo um lençol, que abafava a boca e protegia dos mosquitos.

F03 – A entrada para o "Clube de Oficiais" do QG, com muro separador e uma vista geral da
messe. Foi a primeira imagem que tive, no dia 21set67, ainda estava em melhoramentos. No dia seguinte, 22 de setembro,  segui de Dakota para Nova Lamego, para a minha tomada de posse do CA (Conselho de Adminiustração)  cessante do BCAV1915.

 A primeira missão que me deram à noite, ou foi por acaso, mas agora me lembro que podia ser uma praxe para os periquitos que chegavam. Fazer ou comandar um grupo de militares numa cerimónia de Velório a um militar num caixão de chumbo. Não fiquei com traumas por isso, mas preferia ir beber uns copos com a malta que estava de saida e conhecer alguns que nunca os vi. 

Passados 2 dias voltei para Bissau, para receber mais instruções do major, Chefe da Chefia de Contabilidade. Ele ficou tão atrapalhado com a minha total ignorância, pois soube que eu nunca tinha estado num CA, quer lá quer cá, nunca tive estágio nem a formação, que mais tarde ele foi lá a Nova Lamego pessoalmente para ver como eu me desenrascava. Tive sempre ali um amigo. Mas nem sei o nome dele.

F04 – A Piscina do Clube, quase nova. Parece-me que nem água tinha, visto agora, mas tem
uma boa sombra ao fundo.

F05 – O edificio da Messe, tudo muito novo, será que ainda não tinha aberto ao público? É uma que faço agora por ver as fotos com outros olhos.

F06 – Esta foto ainda em setembro 67, junto à piscina, ainda me parece tudo novo, e sem água ainda, porque estou vestido de roupa normal.

F07 – Já estamos em novembro de 67, e já se vê água e nadadores, já tinha os meus calções que nunca os larguei, mesmo depois de vir ainda usei uns anos, gostava do amarelo. Foi uma
sorte ter comprado no Rossio em Lisboa, na tarde de 19 de setembro, pois por causa de o avião não pegar, fiquei ali um dia, e lembrei-me que na Guiné devia haver também água!! Foi a visita de um camarada do Porto, da Escola e do Instituto Comercial e depois 
colega  na  EPAM no Lumiar. 

Era um bom rapaz, assim transmontano, entroncado à minha beira, os pais tinham uma Pensão e Casa de Pasto, na Rua do Loureiro, ao lado da Estação de São Bento. Hoje está tudo em obras para novos hotéis e alojamentos de turistas. Ali ao lado paravam as camionetas que nos traziam de Mafra e Lisboa, e depois nos levavam no domingo à noite. Por amizade chamavamos de  o "Artolas", pois foi um nome dado a 5 comparsas no curso, que ficavam na mesma tenda, onde eu me incluia também. Chama-se Policarpo e era alferes,  mas não sei o que fazia lá, qual era a sua função. Mas, filho de peixe sabe gerir uma messe ou intendència!

F08 – No espaço da piscina, já com piso relvado, não se vislumbra ainda a água. Ainda em set67 junto de um trabalhador civil, que tratava da limpesa e arranjos de jardins e plantas.

 F09 – Em 5nov67 já está a funcionar a piscina, e inicio eu a minhas maratonas de saltos em alturas, das pranchas para a água, era a minha habilidade. Mesmo sem saber  formalmente nadar como uma pesoa normal, atirava-me sempre em mergulhos para a parte mais funda, depois já sabia o caminho debaixo de água para dar umas braçadas e apanhar umas escadas para me segurar.

Acho que depois de ir para Nova Lamego com o Batalhão, pelo Rio Geba acima, em 040ut67,
este mês não devo ter estado em Bissau, e em novembro já estou lá, para a prestação de contas na Chefia de Contabilidade, e já passo umas vezes pela piscina, ou estou lá instalado, ou noutro sitios de Bissau, como seja o meu preferido, o Grande Hotel, que era um Oásis no meio aquilo tudo. Tinha dormidas em quartos pessoais e independentes e Casa de Banho privativa, pequeno almoço na sala, e almoços e jantares para quem quisesse. Um excelente espaço de bar com muito artigos que nunca tinha visto nem comprado. Assim comprava roupa especial, camisas manga curta, polos Fred Perry, que não existia em Portugal,  calças de ganga, cintos, canetas de marcas, isqueiros, charutos, cachimbos, tabacos para os mesmos, bebidas na sua aioria desconhecidas na metrópole, embora no aquartelamento , verdade seja dita, tinhamos a nossa dose mensal de distribuição militar de bebidas e tabacos importados.

O Grande Hotel" tinha uma esplanada uns degraus abaixo, com mesas à sombra   das  palmeiras, passeavam entre nós grandes sardões, que subiam e desciam das palmeiras, e pela primeira vez vi aterrar perto de mim, um grande jagudi que pegou numa peça morta e a levou para bem longe. Era um animal muito feio, mas muito útil para um ambiente sustentável,  como se diz agora para tudo.

 É a natureza a atuar como sempre fez e vai continuar, por isso não me atormentam os
terrores lançados pelos ambientalistas, pois a natureza tudo resolve.

Por coincidência hoje vi uma reportagem sobre os milhares de milhões de toneladas  plástico nos oceanos, e a ciência descobriu que existe uma fórmula para eliminar os plásticos, são absorvidos pelos fungos. Não sei se estou a dizer uma barbaridade mas foi o que percebi.

F10 – A segunda fase do salto, o lançamento pelo ar tipo pato bravo, a esperar-me uma barrigada na água, pois não tinha ainda a noção das posições, algum amigo encarregava-se de cá fora fazer as fotos, já com a máquina programada por mim, era só bater a chapa.

(Continua)

(Revisão / fixação de texto / negrit0s, título: LG)

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sábado, 14 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26921: (In)citações (274): Brancos, pretos e morenos (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74), com data de 13 de Junho de 2025:


Brancos, pretos e morenos

Numa noite de Dezembro, há 54 anos, num dia de calor asfixiante, chegamos à entrada da barra do porto de Bissau de águas barrentas, e atmosfera tensa, de quem não sabe para onde vai, se íamos desembarcar directamente num cenário de guerra generalizada onde todos andavam armados em posição de reacção a qualquer confronto.

Ficamos pois admirados, porque quem conduziu o Angra do Heroísmo até ao cais foram pilotos nativos negros, nas suas vestes pouco menos que andrajosas, e quando amanheceu, na vez de viaturas militares onde seríamos prontamente inseridos no dispositivo militar pronto para tudo, estavam viaturas civis de mercadorias, conduzidas também por africanos. Sem escolta fomos transportados durante 40 quilómetros até ao Cumeré.

Fez-se noite no caminho. Nós, mais três companhias madeirenses, chegamos e fomos alojados nas longas casernas. Era véspera de Natal e umas cervejas fizeram a festa até ao inesperado disparo das antiaéreas, que nos fez acordar para uma guerra que havia por ali, quase ao virar da esquina. Nessa noite o PAIGC atacou 16 destacamentos, entre eles Nhacra. Aprendemos assim como eram festejados os nossos dias mais queridos, o PAGC fornecia o fogo de artificio com que se iniciavam os festejos.

A partir daí Geba acima, aproveitando a enchente do Macaréu, fomos transportados para Leste até ao Xime e de lá, transportados novamente em camionetas civis até Galomaro, Dulombi, Cancolim e Saltinho. Tinha começado o nosso relacionamento com as populações, baseado nos serviços que nos prestavam na medida em que lhes pagávamos. O expoente máximo do comércio era entre nós e as lavadeiras, mais as vendedoras de mancarra e, no tempo dele, de caju. Os mais afoitos começaram a visitar os locais onde se bebia vinho de palma e até uma ou duas prostitutas. O bar do Regala era também um dos sítios mais cobiçados com as suas cervejas de litro bem frescas e um bitoque confeccionado pela Dona Maria, que não ficava nada atrás dos que por cá comíamos.

A ligação com as pessoas da tabanca era pois constante e nas colunas de abastecimento era comum camionetas civis fazerem connosco os reabastecimentos aos destacamentos mais isolados.

Depois começamos com os reordenamentos, que de muitas maneiras estreitou as nossas relações com as populações com negociações por vezes hilariantes, onde o homem grande prometia duas galinhas para ser o primeiro a ser contemplado com a sua morança concluída. Bem no final havia sempre muita discussão porque nós dizíamos duas galinhas e ele nem uma queria dar.

Nós fomos cidadãos do Mundo desde 1500. Convivemos e cruzamo-nos com todas as raças sem preconceito se era negra, índia, asiática ou indiana. Diz-se por graça que Deus criou o homem e mulher, os portugueses a mestiçagem tal são os traços do resultado que deixamos pelo Mundo. Também nós emigramos à procura de vida melhor fugindo à guerra ou à miséria e falta de horizontes.

Que sempre houve racismo, é verdade, mas não era generalizado. Hoje assistimos a esse fenómeno, onde parte da nossa sociedade tenta segregar a outra, rejeitando-a, esquecendo que essa gente que habita nos nossos piores bairros, que tem os piores transportes e os piores empregos, são descendentes dos que connosco conviveram, muitos dos quais combateram ao nosso lado e sofreram dores tamanhas.

A sua música e sabores, os idiomas, as suas práticas religiosas, a sua arte, fazem Portugal albergar o Mundo inteiro neste pequeno rectângulo. O Portugal plurirracial é hoje posto em causa por quem antigamente o usava para prolongar aquela guerra sem sentido.

Usam-no para colher votos, achincalham as instituições, provocam, agridem gratuitamente nas ruas com violência das biqueira de aço e poluem os nossos ouvidos com sua constante aparição nas TVs, onde vomitam ódio, muitas vezes às claras.

Albergam-se em partidos que beneficiam da democracia para acabar com ela.

Fazem bandeira dos não assunto, mentem descaradamente e arrastam atrás de si veteranos que acreditam nas suas patranhas usando as nossas justas aspirações.

Como podem resolver o que está mal se eles são o mal?

Juvenal Sacadura Amado
13/06/2025

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Nota do editor

Último post da série de 10 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26906: (In)citações (273): Envelhecer... com dignidade?!? (Joseph Belo, José para os "tugas")

Guiné 61/74 - P26920: Os nossos seres, saberes e lazeres (685): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (208): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 8 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março 2025:

Queridos amigos,
Um dos aspetos mais impressionantes na arquitetura da Catedral de Limburgo é o diálogo perfeito entre os elementos essencialmente românicos e o vislumbre do gótico, dentro daquela conceção medieval da nova Jerusalém e da descida de Deus à terra. Se é facto que a catedral perdeu o mosteiro que ali existiu quase como um anexo, o interior deslumbra por ser visível o gótico nas semicolunas na frente dos pilares, no transepto, olhando para a cúpula percebe-se essa conceção, não só pela monumentalidade desta igreja com as suas sete torres que descem das alturas como o diálogo que se processa com o exterior colorido e com doze pilares, é um dos fundamentos da fé cristã, são os doze apóstolos. A Catedral de S. Jorge assenta num penhasco, o seu castelo, ali ao lado, está em processo de restauro e como se poderá ver introduz uma dimensão castelar feudal, é como uma imponência da construção civil a suportar a grandiosidade religiosa. E depois desceu-se ao centro histórico, restauro irrepreensível, após amesendar com amigos queridos, com a chegada da noite, regresso a Idstein. Amanhã é o último dia de folgar, visita ao mosteiro do século XII, Eberbach, por ali houve filmagens de Em Nome da Rosa, baseado no romance de Umberto Eco, Sean Connery era um frade detetive que desvendou mortes misteriosas, belo filme por sinal, não desmerecendo do fulgor do romance.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (208):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 8


Mário Beja Santos


O que se mostra na primeira imagem é a Catedral de Limburgo a sofrer obras de restauro. Antes de passarmos ao seu exterior, permita-me o leitor uma pequena recapitulação deste belíssimo e singular templo religioso católico. É essencialmente românico, com influências de gótico e até mesmo do estilo mourisco; o seu interior dá-nos a entender o que pretende a conceção arquitetónica, ver a casa de oração como uma nova Jerusalém. O que aliás se sente no exterior, com as suas sete torres descendo das alturas, e aquele colorido do exterior tem um poder ornamental invulgar, é como se estivéssemos numa cidade celeste; o interior foi restaurado e pintado várias vezes, procurámos mostrar no apontamento anterior obras originais e as respetivas cores; o mosteiro que lhe estava apenso desapareceu, houve adaptação de instalações como é o caso da capela do Santíssimo Sacramento. O leitor irá verificar a magnificência dos sinos desta catedral de S. Jorge. O carrilhão consiste de nove sinos de bronze. Na torre do noroeste há dois sinos históricos datando da Idade Média. Um dos aspetos mais impressionantes que sensibiliza o visitante é verificar o pleno diálogo entre os cromatismos do interior e os do exterior. Vemos na fachada o tipo de janelas, a quantidade de luz que vem incidir sob o seu interior, e atenda-se agora à natureza das torres, ao arredondado das faces que dão a tal lógica de cidade celeste.
Fachada da Catedral do Limburgo a sofrer pequenos arranjos
O outro lado da torre, veja-se a robustez do contraforte, a janela rasgada ao nível do solo e as entradas da luz pelas janelas e óculos
Veja-se o arredondamento típico da arte românica
Descendo em direção à cidade, deslumbrou-me esta imagem do rio Lahn, estava num ponto intermédio do rochedo mas a vegetação parece que pairava sob o arvoredo, há como que uma sensação de neblina, quando aqui se chegou o céu estava um tanto plúmbeo, felizmente que desanuviou
De novo a cidade celeste e a visão de S. João no Apocalipse, vendo a nova Jerusalém e Deus descendo à terra
Foi-me então explicado que o velho castelo do Limburgo, que vem do século X, ganha de novo forma com as construções que estão em restauro no alto deste penhasco em que assenta também a catedral, só vou mostrar obra acabada
Vê-se claramente que é uma construção idealizada noutra de um passado profundo, mas bom gosto não falta e seguramente que o arquiteto teve acesso a esboços do que teria sido o original
Já estou a caminho do Limburgo junto da margem do Lahn, aceito que não era exatamente assim na Idade Média mas que o castelo é uma construção impressionante, não há dúvida
Nunca mais! Estava-se na Alemanha em campanha eleitoral e a igreja católica do Limburgo resolveu lançar o seu pretexto: todos unidos pela democracia e contra a extrema-direita!
É só uma pequena amostra dos encantos arquitetónicos do Limburgo, para ser sincero já passava das 15h00 e não se escondia a vontade de comer, bem procurei um prato de joelho de porco assado, em vão, irei desforrar-me com um arroz de rim que não comia há anos
Outro pormenor do belo casario no centro histórico
Última imagem antes de ir mordiscar, talvez tenha tido sorte com este plano de baixo até ao topo da catedral. Depois dos comes e bebes, já com a chegada da noite, regresso a Idestein. Amanhã é a última jornada, o Mosteiro de, uma extraordinária construção cisterciense, do século XII, aqui os monges levavam uma vida caracterizada pela ascese, nada de salas aquecidas, pouca conversa e comida frugal, mosteiro fundado em 1136, a sua arquitetura e a sua história é um espelho da história cultural do Ocidente, como iremos ver em seguida, antes de dizer adeus à região de Frankfurt.
Duas imagens à entrada do mosteiro de Eberbach, aqui houve filmagens de Em Nome da Rosa, baseado no romance de Umberto Eco, não sei se se recordam.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 7 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26896: Os nossos seres, saberes e lazeres (684): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (207): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 7 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26919: Tabanca Grande (576): Jacinto Rodrigues, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 57 (Cutia e Mansabá, 1969/71), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 906

1. Mensagem do nosso camarada, e novo tertuliano, Jacinto Rodrigues, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 57 (Cutia e Mansabá, 1969/71), com data de 12 de Junho de 2025:

Caro Luis Graça,
Largos anos passados desde a minha "estadia" na Guiné, entre Setembro de 1969 e Setembro de 1971, onde comandei o Pelotão de Caçadores Nativos 57, no Destacamento de Cutia e em Mansabá, aqui estou a candidatar-me a “tabanqueiro”, apadrinhado pelo Carlos Vinhal, meu “escrivão”, segundo ele diz, pois coadjuvava-me na elaboração dos autos de procedimento disciplinar, quando os havia.

 O outro meu padrinho é o meu amigo Ernestino Caniço que comandou um pelotão de Daimlers  quando estava em Mansabá. Foram eles que chegaram até mim, passados tantos anos! E, por isso, estou-lhes grato.

Estive a comandar o Pelotão de Caçadores Nativos 57, entre Setembro de 1969 e Setembro de 1971, em Cutia, um pequeno destacamento, a meio caminho (15 kms) entre Mansoa e Mansabá, e, depois, em Mansabá, aquando da construção da estrada entre Bironque (a 5/6 kms a norte de Mansabá) e Farim.

Tal como tu, certamente, vivi momentos difíceis e complicados, agravados pelo facto de ter comigo apenas meia dúzia de camaradas metropolitanos, pois os soldados do pelotão eram todos eles naturais da Guiné, de diversas etnias e viviam na tabanca cá com a respectiva família.

Apesar de tudo, foram dois anos que jamais poderei esquecer e que lembro todos os dias. E nessas memórias estão os camaradas com quem convivi e de quem tenho as melhores recordações.

Tal como me referiste no teu mail, remeto uma foto desses tempos da Guiné e uma actual.

Será um privilégio fazer parte deste grupo de combatentes.

Um abraço, Camarada,
Jacinto Rodrigues
ex-alferes miliciano

Alf Mil Art Jacinto Rodrigues
Mansabá > Cap Inf Carreto Maia, cmdt da CCAÇ 2403 (de cabeça descoberta); Alf Mil Art Jacinto Rodrigues, cmdt do Pel Caç Nat 57 (sentado) e Alf Mil Cav Ernestino Caniço, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (à direita da foto).
Mansabá > Uma equipa de futebol, onde o editor reconhce o Alf Mil Art Jacinto Rodrigues, na fila da frente, à direira. O Alf Mil Cav Ernestino Caniço é o terceiro, a partir da esquerda, na fila de trás.
Interior do destacamento de Cutia. Foto © César Dias
Localização do destacamento de Cutia, sensivelmente a meia distância entre Mansabá e Mansoa
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (Carta da Província da Guiné - Escala 1:500.000)
O nosso camarada Jacinto Rodrigues na actualidade
Arganil > Encontro de 2025 do pessoal do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Três ilustres tertulianos do nosso Blogue: ex-Alf Mil Cav Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Art Jacinto Rodrigues e ex-Cap Mil Jorge Picado
Arganil > Encontro de 2025 do pessoal do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Jacinto Rodrigues e Ernestino Caniço

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2. Comentário do editor CV:

Caríssimo camarada Jacinto Rodrigues, está apresentado oficialmente à tertúlia. Terá ao seu dispor o lugar estatístico 906 debaixo do nosso poilão, mas "sentar-se-á" onde muito bem entender.

Dizem as nossas normas, "muito rígidas" (ver aqui), que na tertúlia nos tratamos por tu e não distinguimos os antigos e actuais postos militares; profissões; habilitações académicas e outras possíveis distinções sociais.  

Une-nos aquela terra vermelha, manchada com o sangue de portugueses e guineenses; a água daquelas bolanhas que bebemos quando a sede já não era mais suportável; os sustos das emboscadas; as muitas noites mal dormidas, no mato e nos aquartelamentos, e a incerteza do regresso para junto das nossas famílias. Além de tudo, só nós nos compreendemos já que a família está farta de nos ouvir.

O editor Luís Graça delegou em mim a missão de receber o ex-alferes Rodrigues, meu contemporanêo em Mansabá, um camarada cordial no trato. É uma honra e um gosto fazê-lo, tratando-se de quem se trata.

Lembro-me de entrar na secretaria da CART 2732 e, dirigindo-se a mim, dizia algo parecido como: "nosso furriel, tem disponibilidade para me escrever aí à máquina umas notas para eu enviar para Bissau?" Segundo me dizia, era preciso manter activos os autos de que era responsável, pelo que de vez em quando havia que mandar papelada para a Secção de Justiça e Disciplina.

Quando há uns bons meses o camarada Rodrigues me contactou por me ter encontrado na net, foi um desfilar de lembranças daqueles tempos que,  sendo maus, são vivências da nossa juventude, irrepetíveis, que jamais se apagarão da nossa memória de velhos combatentes.

Neste blogue temos a oportunidade de deixar escrito o que ainda retemos daqueles dois difíceis anos da nossa vida, pelo que convidamos o "alferes" Rodrigues a contribuir para esta feitura de memórias.
Que retém do comportamento dos seus militares guineenses enquanto combatentes ao lado dos portugueses? Que experiência lhe trouxe para a vida o contacto tão próximo com pessoas que tinham um modo de pensar e de viver tão diferentes dos nossos? A história, filosofia de vida e religião daquele povo, apesar dos nossos estúpidos preconceitos, mantinham-se praticamente intactos, resistindo a séculos de evangelização. 


Caro Jacinto Rodrigues, está apresentado. Não termino sem antes de lhe deixar o habitual abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores, com a certeza de que estaremos aqui ao dispor para o que nos achar úteis.
Se quiser que lhe façamos um postalinho de aniversário, só tem que nos indicar o dia e o mês em que nasceu, o resto é connosco.

Os meus votos de boa saúde
Um abraço a título pessoal do furriel escrivão
Carlos Vinhal, por acaso, também coeditor deste Blogue.

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Nota do editor

Último post da série de 25 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26845: Tabanca Grande (575): Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 905

Guiné 61/74 - P26918: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): os arraiais e as fogueiras dos santos populares



Alcachofra brava (Cynara cardunculus)

Coisas & loisas do nosso tempo de meninos 
e moços >  Os arraiais e as  fogueiras dos santos populares

por Luís Graça



Havia as fogueiras do Sant'António, 
do São João, e do São Pedro,
os arraiais populares,
a queima das alcachofras, 
os balões, os refrões
("um tostãozinho, vizinho, vizinha,
p'ros santos populares,
primeiro o Sant'António,
depois o Sã João
e por fim o Sã Pedro,
p'ra
nossa reinação!”)

Havia as bichas-de-rabear,
as bombas de carnaval,
o calvário e as suas catorze estações…

Alguém sabia lá o que era o solstício de verão,
e o eterno retorno,
e as festividades cíclicas,
e a purificação do corpo
e o exorcismo do mal...
E, muito menos, as fogueiras da Santa Inquisição.

Sabia-se da salvação da alma,
e dos raspanetes do padre vigário
e dos puxões de orelhas da catequista
quando a malta não decorava a doutrina,
porque só queria jogar à bola.

Não se dizia “alcachofra”, mas “cardo”…
“Cardo florido”,
no dia seguinte, posto à janela,
depois de queimado na fogueira,
era sinal, para as raparigas, de amor correspondido.
Tinha que ser sofrido, mas eterno, o amor, naquele tempo.

Saltei três vezes á fogueira,
Fazendo fisgas à morte,
Sant'António, dai-me sorte,
E amor p'ra vida inteira.

P'ra que o mê amor não sofra,
Oh Sant'António querido,
Queima-me  bem a alcachofra,
E dá-lhe o cardo florido.

Havia as fogueiras dos santos populares.
E a rivalidade dos bandos dos rapazes da tua rua 
e das ruas vizinhas,
da rua Grande, do Clube, das Aravessas...
Faziam-se e desfaziam-se por essa altura, os bandos, as alianças,
E tudo por causa dos santos da nossa devoção.
Era ver quem conseguia roçar, juntar e acarretar
mais mato e lenha para as fogueiras. 

Durante as semanas anteriores,
já andavam a roçar mato
e a escondê-lo uns dos outros.
Chegava a haver assaltos, roubos, ataques, cabeças rachadas…
Arranjavam-se aliados ocasionais, guardas e sentinelas,
nos mais velhos que tinham currais ou fazendas por ali perto,
à volta dos moinhos de vento 
e do castelo dos mouros.
O Néu, da ti Albertina, que já morreu,

emprestava a carroça,
puxada por uma burra…

Era um mundo estritamente masculino,
de brincadeiras de rapazes, aprendizes de machos,
futuros bravos soldados do império.
As meninas, essas, de saia de chita, brincavam entre elas
com bonecas de papel ou matrafonas de pano
sob a supervisão das irmãs mais velhas, das mães ou das avós.

As fogueiras faziam-se no largo inclinado dos Celeiros
(ou da Bica, por que havia lá um fontanário de 1936,
obra pública do Estado Novo).
Na rua mais alta da vila, 
a do Cemitério ou do Castelo ou dos Valados.

Só havia uma fogueira.
A rivalidade consistia em saber alimentá-la,
e não deixar apagá-la.
E, quanto maior fosse a labareda, melhor.
E só os valentaços se atreviam a furar aquela parede de fogo.

O arraial do largo dos Celeiros
era o orgulho dos meninos da vila velha
e atraía os vizinhos das ruas adjacentes
e os parzinhos,
mais os  casados e os solteiros.

“Um tostãozinho, vizinho, vizinha, 
p'ro Sã João!”…
Era o mais querido dos três santos populares, o São João,
porque era menino.
A seguir vinha o Santo António, 
matreiro, casamenteiro e brejeiro.
Ao São Pedro, de barbas brancas compridas,
já ninguém lhe ligava nenhuma.
E depois já se tinha gasto a lenha toda…

P'lo São Pedro os felizardos juravam amor eterno.
E os rapazes iam às sortes.

Com os tostões angariados,
os pequenos donos do arraial dos santos populares
compravam bichas-de-rabear,
estalinhos,
serpentinas
e até bombas de Carnaval…
E, claro, guloseimas e pirolitos.
Os sonhos pequenos de gente de palmo e meio,
que gostava também de brincar 
ás guerras de índios e cobóis.

Mal sabiam eles que dentro em breve
iria estalar uma guerra a sério,
e que os brinquedos da guerra
já não seriam as bombas de carnaval
nem as bichas-de-rabear
nem as fogueiras de saltar.

Lourinhã, Luís Graça (2005). Revisto, 13/6/2025.

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Nota do editor LG: