Guiné-Bissau > Bissau > Hospital Nacional Simão Mendes > 2006 > O Fernando Sani é o que está de pé, ao centro, junto da restante equipa de apoio à cólera. A cólera, felizmente foi extinta, pouco tempo depois.
Foto e texto: © Paulo Salgado (2007). Direitos reservados
Caro Luís,
Soubera eu que tinhas estado aqui, na minitertúlia (1), e teria aparecido, com todo o prazer.
Como sabes, a minha relação com o Povo da Guiné é de grande simpatia e carinho.
O que se segue - já nem sei se escrevi algo sobre isto anteriormente - já foi produzido na Gestão Hospitalar [, revista da Associação Portuguesesa dos Adminisytradoires Hospitalares]. Dei-lhe um retoque e eu penso que não vai mal ao mundo se for reproduzida aqui para os queridos tertulianos saberem que há alguns camaradas que andaram pela Guiné depois da guerra e que os Homens se entendem quando querem...
Fazes o arranjo como quiseres e se quiseres.
Um abraço de estima,
Paulo Salgado
Comentário de L.G.: Paulo Salgado é administrador hospitalar no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. Acaba de regressar de um mais um ano de cooperação na Guiné-Bissau, onde esteve à frente do Hospital Nacional Simão Mendes. Com esta crónica, e com o regresso do Paulo (e da Conceição) a casa, podemos dar por finda a crónica que ele alimentou ao longo de mais de um ano (2). E acaba bem: é o testemunho de um homem da saúde e um cidadão do mundo, o Paulo Salgado, de grande sensibilidade e generosidade, a outro homem, grande, o Fernando Sani, que trabalhou com ele no Hospital Nacional Simão Mendes e que a morte já levou. Claro que o Paulo e o seu 'bombolom' não vão ficar mudos... Um retemperador regresso a casa, à pátria, aos nossos hospitais, é o que lhe desejo (com um beijinho para a São). E, à volta, cá o(s) espero.
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Camaradas Tertulianos:
Desejo transmitir-vos um dos factos que vivi nesta minha comissão de 12 meses (tudo somado são cerca de seis anos na Guiné que me dão força para poder dizer: quando querem, os Homens entendem-se…). Isto para vos significar o apreço e carinho que tenho pelo POVO da Guiné-Bissau. Hoje e antanho.
Fernando Sani – homenagem a um Guineense
Conheci o Sr. Fernando Sani há cerca de quatro anos, nas minhas actividades no Hospital Nacional Simão Mendes. Não são muitos anos se considerarmos que os homens vivem muitos mais; todavia, foram os suficientes para construirmos uma sã convivência, e para eu me aperceber que estava lidando com um homem superior.
Durante estes anos, tive oportunidade de colher dele: a humildade intelectual – ele que fora um homem viajado e culto; a solidariedade – ele que partilhava o magro salário que auferia com muitos familiares e amigos; a bondade – que irradiava através dos actos praticados junto dos que ainda eram mais carenciados; a educação fina – que dele brotava em gestos de simpatia de homem habituado a falar nhô ou nhá quando tratava com alguém, homem ou mulher, que lhe merecia respeito segundo as tradições da Guiné-Bissau, que ele prezava. Um Homi Garandi.
Muitas vezes conversámos de diversos assuntos, e havia sempre alguma novidade que me surpreendia agradavelmente.
Numa das conversas, falou-me dos tugas e daquilo que com eles aprendeu quando jovem: fora apadrinhado por um médico que fizera a sua vida profissional clínica no Hospital Militar e no Hospital Civil, e dele recebeu incentivos na sua via escolar, em Bissau, já no tempo da guerra.
Compreendeu, todavia que o rumo da sua Terra era outro e foi bolseiro no Leste onde adquiriu bagagem múltipla que não desejo referir, por honra da sua memória.
Assumindo a chefia do sector de saneamento do HNSM, detinha conhecimentos que o colocavam no lugar cimeiro da profissão: dominava os conceitos de higiene e limpeza que deveriam ser praticados; sabia dirigir os funcionários que lhe estavam adstritos com palavras amigas e não com modos agrestes; era capaz de dar o exemplo carregando às costas – admito que já cansadas pelo sofrimento – o pulverizador e, protegido e sabedor das regras de utilização, e com os instrumentos adequados, desinfectar as salas, as enfermarias, para, de seguida, com muito profissionalismo, limpar os materiais e guardá-los de novo.
Foi no período da cólera que ocorreu entre Julho de 2005 e Fevereiro de 2006, durante meses, que este homem se revelou ainda mais aos meus olhos: incansável, encaminhava os doentes para a enfermaria, de noite e de dia, entregando-os ao pessoal de enfermagem; solícito e zeloso, ia buscar os soros e outros produtos de hidratação oral para aplicação e tratamento dos doentes; imperturbável face ao cheiro nauseabundo provocado pelas diarreias, caminhava pela enfermaria, protegido, para acudir a um ou outro doente; atento às informações e ensinamentos que a equipa de Médicos Sem Fronteiras lhe indicavam, e que nele viam um Profissional conhecedor e interveniente.
Neste período da cólera, outras mulheres e homens estiveram na frente da luta contra o perigo escondido, mas ali bem visível no sofrimento de crianças, velhos e adultos. Para esses homens e mulheres que permaneceram ao lado dos doentes, também a minha amizade.
O Sr. Sani veio, um dia, dizer-me:
- Amigo, estou muito cansado. - E eu li-lhe no rosto esse cansaço.
Com outros amigos, o visitei ao longo das semanas que sobreviveu. Mas sempre um leve sorriso lhe esmorecia a face magra à medida que a doença o fustigava. Da última vez, apenas balbuciou o meu nome.
Cá fora, eu chorei. Chorei pelo Homi Garandi. Pelo Amigo.
Que os Deuses, o teu e o meu, Querido Amigo, te coloquem no lugar mais bonito que existe nos céus, pois tu, Fernando Sani, mereces como poucos.
No seu funeral, os seus Familiares, muçulmanos piedosos, chamaram-me para acompanhar o corpo até ao repouso final.
Obrigado, meu Amigo, por aquilo que me ensinaste, nesta Terra que não é minha, mas que aprendi a amar através das crianças, dos homens e mulheres que sempre têm um sorriso de esperança.
Paulo Salgado
Abril de 2006
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 9 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1412: A minitertúlia de Matosinhos e... Leça da Palmeira (Carlos Vinhal / Xico Allen)
(2) . posts anteriores:
5 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXX: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)
(...) "Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha)"(...).
13 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXL: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (2)
19 de utubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (3)
(...) "Hoje, sábado, fomos até ao Saltinho, com os cooperantes da Saúde que chegaram ontem no avião (já agora: a Dra. Adelaide, ginecologista; o Dr. Justiça, hematologista e que também fez a guerra em Angola) e ainda o João Faria, engenheiro hospitalar (que já cá está há oito dias… Manga di tempu! , que esteve em Angola, e que se está a aguentar com brio e companheirismo nas lides do Hospital Civil... Todos eles emprestaram à viagem de 350 km um sabor especial)" (...).
5 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXI: Crónicas de Bissau ou o 'bombolom' do Paulo Salgado (4)
29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (5): para onde ?
3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (6): HN Simão Mendes
5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXVIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' de Paulo Salgado) (7): Suleiman Seidi
30 de Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CDIII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (8): novos tertulianos
18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias
30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque
1 de Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 -CDXC: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado)(11): Beethoven e batuque no Olossato
2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?
(...) "Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:- Por que razão não bombolaste?
(...) Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar? Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?)" (...).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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