1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2014:
Queridos amigos,
Confesso que a grande, muito grande, surpresa, é o prefácio de Avelino Teixeira da Mota a este modesto mas inovador trabalho, um jovem segundo-tenente que assessora Sarmento Rodrigues e que será o dinamizador cultural e científico de tudo o que de melhor ocorrerá na colónia, nesse pós-guerra que acalenta tantos sonhos. Estas monografias são também produto do fervor e talento organizativo de Teixeira da Mota, não se pode, ainda hoje, estudar etnologia e etnografia guineenses sem as ler, são pioneiras de um novo modo científico em que os autóctones deixaram de ser encarados como entidades exóticas e seres abrutados, foram estudados como produto do meio, tinham passado, manifestações artísticas, curvavam-se respeitosamente perante os mistérios da vida.
Um abraço do
Mário
Organização económica e social dos Bijagós
Beja Santos
O Governador Sarmento Rodrigues tinha como adjunto o Segundo-Tenente Avelino Teixeira da Mota, que será o obreiro do Museu da Guiné, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do Boletim da Guiné Portuguesa e das comemorações do V centenário da descoberta da Guiné. O jovem oficial da Marinha acomete-se a estas empreitadas com 24, 25 anos, é inacreditável esta capacidade de trabalho, esta organização e os seus invulgares dotes de sapiência. Elabora um inquérito etnográfico e espalha-o por toda a administração da colónia. E incita os funcionários à testa das circunscrições a produzirem monografias, aproveitando os elementos recolhidos do inquérito. O administrador de circunscrição Augusto Santos Lima, colocado nos Bijagós, estuda este povo, redige um estudo singelo que é dado à estampa em 1947.
O prefácio é Teixeira da Mota, é um texto notabilíssimo, permite avaliar os dotes daquele que será o mais importante historiador da Guiné, do período colonial aos dias de hoje. Refere as navegações de Cadamosto, 1456, a acreditar neste comerciante veneziano, é a primeira referência ao arquipélago dos Bijagós que se conhece. E cita-o, luminosamente: “e olhavam para nós extraordinariamente maravilhados, vendo que éramos homens brancos; admiravam também a forma do nosso navio, com o mastro e antena encruzada, porque é coisa que eles não usam, nem sabem o que é”. Diogo Gomes ali viaja depois de Cadamosto, chefiando uma frota de três caravelas. Pedro de Cintra desembarcou numa das ilhas do arquipélago e meteu-se pela terra dentro. Não se entabulou a conversa, brancos e Bijagós não entendem patavina do que dizem. A partir de 1463, ou mesmo antes, o arquipélago entra na cartografia. A explanação de Teixeira da Mota ganha vivacidade, convoca toda a historiografia da época, os nomes proeminentes são citados, os possíveis nomes das ilhas, quem as habita, como vivem. E adianta: “Os bijagós eram guerreiros e piratas desenfreados. Continuamente assaltavam o continente fronteiro, fazendo presa nos bens e pessoa de Buramos (Brâmes, Papéis e Manjacos) e Beafadas. Nas suas correrias chegavam mesmo a Cacheu”. Sucedem-se os relatos dos viajantes e navegadores do século XVII em diante. Desmonta mitos acerca do matriarcado e até aspetos sensacionalistas como aqueles que diziam que os Bijagós tinham como ancestrais a Etiópia, a Fenícia, o Egipto e o Hindustão, diz não haver provas sobre estas misteriosas ligações com tais povos nem estar provado que os Bijagós tinham rainhas. E adianta a descrição do tenente Manuel Marques Duarte, redigida em 1937, diz mesmo tratar-se do trabalho etnográfico mais extenso até então feito sobre os Bijagós. E exalta o trabalho que está a prefaciar, que saiu do punho de Augusto Santos Lima, recorda-nos que não existe uma sociedade Bijagó, mas sim várias sociedades, distintas de ilha para ilha, e até de povoação para povoação. E propõe ao administrador que continue os seus estudos, que investigue mais sobre a vida material, a vida psíquica, a vida familiar e os dialetos dos Bijagós.
O autor refere a geografia do arquipélago, as classes etárias, a organização económica, fala nos “chefados” e chama à atenção para as grandes dificuldades do cultivo do solo: uma orla marítima cheia de plantas, o tarrafo; os riquíssimos palmares; e a porção arenosa, por natureza estéril para as culturas. Queixa-se da falta de trabalho na produção de riqueza pecuária, na falta de trabalho na exploração intensiva dos palmares, na falta de trabalho nos riquíssimos mares circundantes. Enumera as categorias da realeza e de sacerdotes, o mundo de interdições e até o fascínio animista deste povo. Diz abertamente que não há nem nunca houve entre os Bijagós rainhas. Regista as atividades dos sacerdotes e das sacerdotisas, o feiticismo, o totemismo e o culto dos tabus. Observa o regime familiar, o conteúdo da habitação, as iniciações até adulto, como se processa o casamento, desmonta o matriarcado, como se organiza a hierarquia social. Quanto à moral, adianta o seguinte: “O Bijagó não se limita à moral relativa e utilitária, antes a eleva à filantropia, especialmente no que diz respeito à criança, mulher, velhice, cegos, aleijados, etc. Faz parte dela a correção, a seriedade e a verdade. A mentira é repelida. É quase atirada para o campo patológico”. Vê-se que observou, que separou a lenda ou o exotismo das práticas quotidianas: “Entre o Bijagó não existe o conceito de honra tal como nós o concebemos. Existe um sentimento que eles denominam falta de respeito. Deve ter-se em vista que a mulher tem um período de livre mancebia, sem restrições, em que predomina o seu arbítrio e o seu temperamento. Tudo porém muda completamente quando casa”. E faz-nos compreender o sentido da justiça, a natureza da sua hospitalidade e as relações hostis e como se processavam.
Terá sido um relato escrito a grande velocidade, para corresponder aos apelos de Avelino Teixeira da Mota, o instigador da aventura destas monografias que ajudaram a pôr os guineenses no circuito mais amplo da etnografia, da etnologia, da investigação de toda a ordem, tudo o que então faltava àquela Guiné que foi posta no mapa por Sarmento Rodrigues e a este seu discreto adjunto que nunca mais largará o fascínio guineense, a despeito de se ter abalançado, finda a sua participação na missão geo-hidrográfica, na Monumenta Cartográfica, um dos trabalhos mais valiosos das comemorações henriquinas.
Folheia-se o trabalho de Augusto Santos Lima e admira-se o portentoso trabalho de Teixeira da Mota e de muitos administradores coloniais que passaram ao papel aquilo que era fábula ou conhecimento oral. Eram monografias que incluíam muitas imagens, era dever obrigatório que o texto fosse complementado e assim ajudasse a melhor compreender a gente de carne e osso, mostrando habitações e no caso dos Bijagós que pudéssemos ver a genialidade das suas esculturas, de primeiríssima água.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15120: Notas de leitura (757): "O seminarista e o guerrilheiro", de Cândido Matos Gago, ex-presidente do município de Grãndola... Uma obra de ficção sobre a guerra colonial no leste de Angola, sobre a dupla perspetiva de um combatente português e de um guerrilheiro do MPLA
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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