segunda-feira, 24 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17275: (Ex)citações (324): Quando se dizia, no final da I República, que a Guiné era uma colónia de Cabo Verde... (Armando Tavares da Silva, historiador)

1. Texto enviado em 19 do corrente por Armando Tavares da Silva, membro nº 734 da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Caminhos Romanos, 2016)


Caro Luís Graça,

Notei no Post P17250 de 17 de Abril de Mário Beja Santos referente ao livro do Embaixador António Pinto da França, Em Tempos de Inocência (Prefácio, 2006) (*), alguns parágrafos que atraíram a minha particular atenção. Beja Santos escreve que o autor “está atento e regista um conflito racial que muitos pretendem iludir”, e transcreve as suas palavras:

“Muitos guineenses olham os cabo-verdianos como uma classe colonizadora que os despreza e explora e não querem nem ouvir falar em tal união, achando que já lhes basta a predominância de cabo-verdianos nascidos aqui, instalados no Governo e em todos os postos de comando. Eles foram no tempo da colónia a classe intermédia, como na Indonésia os chineses e, politicamente mais preparados, puseram de pé o PAIGC, herdando assim o poder dos portugueses”.


A terminar a sua referência ao livro de António Pinto da França, Beja Santos faz nova transcrição das palavras do autor:

"Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático… Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua resignação ou sofrimento. Ensinaram-me algumas coisas importantes. Passados estes anos de iniciação, na euforia da independência, tempos duros e difíceis se desenham no horizonte, toldando as esperanças dos guineenses”.



Estas palavras fazem-me pensar na sucessão de acontecimentos que têm moldado a vida da Guiné-Bissau desde a independência até aos dias de hoje, e ainda em situações e acontecimentos que tiveram lugar na Guiné muito antes da luta do PAIGC contra os portugueses, e sobre as quais se manifestaram várias autoridades com responsabilidade na administração do território.

Por exemplo, vejamos o que diz Manuel Maria Coelho (um dos revolucionários do 31 de Janeiro, governador de Angola no início da República, e que veio ainda a chefiar o governo a seguir aos acontecimentos de 19 de Outubro de 1921), que no início de 1917 fora enviado para a Guiné, por António José de Almeida (na altura presidente do ministério e ministro das colónias), como sindicante na sequência de alegadas irregularidades que haviam rodeado a campanha de Teixeira Pinto na ilha de Bissau em 1915, e ainda para esclarecimento das muitas e variadas queixas que chegavam ao ministério sobre a vida pública da colónia.

Na ausência do governador Andrade Sequeira, Manuel Maria Coelho assumiria interinamente o governo da província afastando o secretário-geral Sebastião José Barbosa, e ao fazer a análise das acusações que eram feitas a Teixeira Pinto por Andrade Sequeira, e referindo-se ao facto de Sebastião Barbosa considerar desnecessária a guerra, considera não haver nisto surpresa e que tudo era fácil de explicar. Escreve:

“Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo, e é sobrinho, ou coisa parecida, de um célebre Caetano José Nosoliny, que foi o encarregado de ir a Lisboa pela Liga Guineense, pedir ao governo para que não fizesse a guerra aos papeis! Este Nosoliny tem sangue estrangeiro e, como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.

Vejamos ainda o que mais tarde escreve Vellez Caroço, que governou a Guiné por dois períodos consecutivos, de 1921 a 1923, e de 1924 a 1926, no seu relatório referente ao primeiro ano da sua governação, referindo-se à qualidade do funcionalismo e da organização da secretaria do governo. Depois de notar que a província se encontrava “enxameada” de empregados recrutados em Cabo Verde, acrescenta:

“Hoje é já vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”. E Vellez Caroço pergunta, talvez premonitoriamente: o que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?”.

Por considerar que a obra de desnacionalização da Guiné era lenta, mas era contínua e persistente, tornava-se necessário actuar para que não se não continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era uma colónia de Cabo Verde. E, a propósito, nota que “o nativo de da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”.


A influência cabo-verdiana na vida pública da província pode ser notada ainda em anos muito anteriores e mesmo como factor importante ou mesmo determinante no desencadear de alguns conflitos e operações militares, nomeadamente na ilha de Bissau nos anos 1890.

Notemos, a terminar esta pequena nota, que no grupo de fundadores do PAIGC estavam dois cabo-verdianos: Pedro Pires, também natural da ilha do Fogo, e Amílcar Cabral (nascido em Bafatá, segundo consta). E que o “conflito racial” acima referido continua presente num clima de “desconfiança e intriga” que – como recentemente me tenho apercebido – se sente na Guiné-Bissau.



2. Nota do editor:

Meu caro Armando, queria dizer "Aristides Pereira" e não "Pedro Pires", como cofundador do PAIGC, em 1956 (na altura ainda só PAI - Partido Avricano para a Indepedência, só em 1960 é que passa a designar-se PAIGC). (**)

Dos seis fundadores do PAI, só há três cabo-verdianos de nascimento: Júlio Almeida e Fernando Fortes, ambos naturais da ilha de São Vicente, e Aristides Pereira, natural da Boavista. Os restantes nasceram na Guiné: Amílcar Cabral, em Bafatá, o seu meio irmão Luís Cabral, nascido em Bissau, e Elysée Turpin, também nascido em Bissau, em 1930. Luís Cabral é o mais novo dos seis (,é de 1931), seguido de Elysée Turoin (que nasceu em 1930); todos os outros são da década de 1920: Aristides Pereira, o mais velho, nascido em 1923, seguido do Amílcar, que é de 1924, Júlio Almeida (1926) e Fernando Fortes (1929).

Amílcar e Luís são filhos do mesmo pai, cabo-verdiano, professor primário. A mãe de Amílcar era cabo-verdiana, nascida na ilha de Santiago, a mãe de Luís teve uma vivência cabo-verdiana, mas nasceu em Portugal. Ambos os irmãos têm uma dupla vivência, cabo-verdiana e guineense.

Pedro Pires é de facto da ilha do Fogo, mas dez anos mais novo do que Amílcar Cabral. Desertou da Força Aérea Portuguesa, tendo ingressado depois nas fileiras do PAIGc.

Sobre esta questão, ler a comunicação "As Trajectórias dos Fundadores do PAIGC (1923 – 1960", de Ângela Sofia Benoliel Coutinho (CESNOVA – IPRI/ UNL) in: Atas do Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné-Bissau: percursos do saber e da ciência, Lisboa, 21-23 de junho de 2012. [Consult 23/4/1017]. Disponível em https://coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/p03c02-angela-coutinho.pdf


3. Comentário, posterior, do Armando Tavares da Silva:

Obrigado Luís Graça pelas achegas sobre a fundação do PAIGC. Eu não investiguei a fundação deste partido, mas lembro-me de ter lido – já não sei onde – que Pedro Pires estava incluído num grupo de três pessoas que o teriam fundado. Notemos contudo que a sua biografia em http://www.barrosbrito.com/5498.html nos diz que em 1961 abandonou clandestinamente Portugal para se juntar ao PAIGC. 

Possivelmente haverá mais do que uma versão sobre os acontecimentos da altura, e António Duarte Silva, no seu trabalho que se pode ler em https://cea.revues.org/1236#tocto1n5, nos parágrafo 32 e 33 deste documento escreve:

“Segundo a versão consolidada, a 19 de Setembro de 1956, domingo à tarde, inter­vindo num círculo de amigos convidados para o efeito, Amílcar Cabral propôs a constituição de um partido político para alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde e defender a união entre os povos guineense e cabo-verdiano, numa perspec­tiva geral de unidade africana. Seria o Partido Africano da Independência (PAI)”. E a seguir: “A reunião durou cerca de uma hora, foram poucos os presentes (a maioria de ori­gem cabo-verdiana) e não há qualquer documento comprovativo”. E acrescenta: “Elisée Turpin afir­ma que teriam sido «aprovados os Estatutos do PAI, elaborados por Amílcar», mas o tes­temunho de Turpin, habitualmente indicado como um dos seis fundadores, está posto em causa”.

Penso que podemos concluir que cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) foram determinantes na criação do movimento de oposição à presença portuguesa, e que o que se terá passado na altura não constitui hoje uma certeza.

Armando Tavares da Silva


24.Abril.2017
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3 comentários:

Manuel Luís Lomba disse...

Salvo erro ou omissão, o PAI (Partido Africano Independência) da Guiné, extensão do Partido Comunista Português, foi fundado por Rafael Barbosa e não por Amílcar Cabral, etc, também ele de costela caboverdiana; a este(s) coube a sua metamorfose em PAIGCV.
A História regista que Rafael Barbosa alinhou na sua deriva cabralista, que o manteve como seu presidente, mas que terá estado sempre "ligado" a Portugal.
Ab.
Manuel Luís Lomba

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Citando a comunicação "As Trajectórias dos Fundadores do PAIGC (1923 – 1960", de Ângela Sofia Benoliel Coutinho (CESNOVA – IPRI/ UNL) in: Atas do Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné-Bissau: percursos do saber e da ciência, Lisboa, 21-23 de junho de 2012. [Consult 23/4/1017]. Disponível em https://coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/p03c02-angela-coutinho.pdf:

(...) "De acordo com as fontes oficiais, o PAIGC foi fundado na clandestinidade na cidade de Bissau, no dia 19 de Setembro de 1956. Todas as fontes consultadas ao longo do nosso trabalho de investigação são concordantes quanto ao facto de que o partido usou apenas as siglas PAI até ao ano de 1960." (...)

(...) "de acordo com as fontes do PAIGC, o acto de fundação do partido [PAI] teve lugar em Bissau, a 19 de Setembro de 1956, no nº 16 da R. Vieira Machado, que era na altura a residência de Aristides Pereira e Fernando Fortes, tendo participado na reunião Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Elysée Turpin e Júlio Almeida." (...)

(...) "Foi somente em 1960 que a denominação de PAIGC foi adoptada, de forma a não ser confundido com um partido senegalês que tinha as mesmas iniciais" (...)


(...) no caso de Cabo Verde, é pertinente saber que idade tinham estes dirigentes aquando da última grande fome, a de 1947, e se a vivência desta grande calamidade teve um papel nas suas tomadas de posição políticas muitos anos mais tarde. Um outro exemplo está ligado aos anos da Segunda Guerra Mundial e à presença militar portuguesa na ilha de S. Vicente. Tendo em conta as idades dos dirigentes que residiam nesta ilha naquela época, podemos perguntar-nos se o ambiente de animosidade geral da população mindelense, tal como foi descrito relativamente a esta presença militar, foi um elemento a ter em conta na formação da opinião acerca do poder colonial e da imagem e representação popular deste poder." (...)


(...) "Quanto aos fundadores nascidos em Cabo Verde, eram eles próprios emigrantes de primeira geração na Guiné-Bissau.

Estes dados levam-nos a colocar muito claramente a questão da emigração cabo-verdiana na Guiné, já que 5 dos 6 fundadores do movimento viveram esta experiência nas suas vidas, e é um dos principais pontos que têm em comum em termos de trajectória. Carlos Cardoso (Cardoso, 1992, p. 51) informa-nos que em 1950 havia 1703 cabo-verdianos na Guiné, que representavam 21,6% da população de nacionalidade portuguesa no território, chamada “civilizada” (...). Esta presença era antiga na Guiné : Elisa Andrade evoca os pequenos proprietários cabo-verdianos em meados do século XIX e, citando António Carreira, ela afirma que os naturais do arquipélago ocupavam a maioria dos lugares na função pública entre 1920 e 1940 (Andrade, 1971, p. 202).

A verdade é que ainda não se fez um estudo aprofundado sobre a presença dos Cabo-verdianos na Guiné-Bissau ao longo do século XX. No entanto, tudo indica que, juntamente com os Sírio-libaneses teriam constituído as duas maiores comunidades estrangeiras no território durante o século XX, pelo menos na época colonial. (...)

(...) a emigração para a Guiné no século XX assim como uma parte da emigração para Angola e
Moçambique distinguir-se-ia das outras por ser composta na sua maioria pelos letrados do arquipélago, contrariamente ao que sucedia na emigração em direcção à América do Norte e do Sul, a outros países africanos e mais tarde, à Europa. Mas estas hipóteses deverão ser testadas.

O que é certo é que os cabo-verdianos fundadores do PAIGC foram exclusivamente recrutados no seio da comunidade emigrada na Guiné" (...)

Antº Rosinha disse...

Os verdadeiros braços direitos da colonização portuguesa em África, foram os caboverdeanos, os mestiços e assimilados de São Tomé, Benguela, Luanda e Lobito e Lourenço Marques e Beira etc. e ainda os Goeses, toda esta gente, que fizeram de Portugal, durante 500 anos, um país que até parecia grande.

E foi meia dúzia desses portugueses, ultramarinos, os mais preparados de todo o país do «Minho a Timor», e da selecção nacional, que se meteram na aventura das independências.

Motivação? Só e apenas, para não "perderem o comboio".

O comboio daqueles ventos da história, de mau agoiro para toda a África, e da própria Europa.

Fizemos tudo para evitar o pior, que é o que aí está.

E não é a Guiné, dos que ficaram em pior estado.