É certo que, quando chegávamos ali aos treze ou catorze anos, entrar pela primeira vez no lagar era sinal de que já éramos homens e essa assunção, havia muito tempo almejada, de uma pretensa maioridade, envaidecia-nos.
O meu avô nunca pisava, mas estava sempre presente para servir vinho e cigarros aos pisadores, ao mesmo tempo que apontava para um ou outro ponto do lagar onde a grainha ainda não tinha chegado à superfície, sinal de que era preciso ali mais pé. O meu pai, esse andava por ali a dessarroar as pipas e a apertar-lhes as aduelas ou agarrado à prensa a aproveitar os últimos litros de vinho.
No fim de cada pisa, à ordem do meu avô, saia o primeiro pisador e só se lhe seguia o segundo depois do primeiro ter lavado as pernas, e assim sucessivamente até ao último.
Alguns pediam aguardente para se livrarem da comichão nas pernas aproveitando para, de um só trago, engolir um pequeno copo dela, antes que todos subissem as escadas de acesso à nossa grande cozinha, onde a minha mãe e a minha tia tinham posto na mesa três travessas grandes de arroz de tomate com bacalhau frito.
Lembro-me de me sentir grande quando já fazia parte do grupo dos pisadores, sentado ali à mesa, com os meus irmãos mais velhos e o pessoal de fora.
As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele.
Havia sempre um dos meus irmãos a subir a escada de acesso ao canastro, onde cabiam mais de seis carros de milho, enquanto outro se ocupava a acomodar as espigas dentro das divisórias.
Era ali que as espigas ficavam a secar, para serem debulhadas, à mediada que precisássemos do milho, em qualquer dia de céu limpo. Debulhava-se sempre para cima de um carro de cada vez, guardando-se o milho, já limpo, numa das caixas grandes que tínhamos em casa.
E era dessa caixa, enorme aos meus olhos de criança que, todas as semanas, se enchiam dois sacos para entregar ao moleiro que os arrochava sobre o dorso das mulas.
E não era demasiado o milho que mandávamos moer, porque para além da farinha para a fornada semanal, também os dois porcos grandes, que se queriam gordos, gastavam dela.
A CULTURA DA BATATA
Logo a seguir ao milho e ao vinho, a batata era o produto mais representativo na nossa casa de lavoura, em termos de volume e de rendimento.
Desde a década de quarenta até à minha adolescência uma parte significativa do trabalho era dedicado ao cultivo deste tubérculo que, semeado entre março e abril, não carecia de rega, adaptando-se assim muito bem aos nossos terrenos onde a água não abundava.
O meu avô e mais tarde o meu pai deram uma especial atenção ao incremento desta cultura e terão sido, durante duas ou três décadas, os maiores produtores de batata da freguesia.
Em quase metade dos nossos campos, bem estrumados, semeávamo-las, ficando os restantes, aqueles que podiam ser regados, dedicados ao milho e feijão consociado. Depois de se ter coberto o terreno com uma boa camada de estrume, lavrava-se e gradava-se com os bois.
O trabalho de que mais gostava, aí pelos meus oito ou nove anos, era de me sentar na grade, agarrado com uma das mãos a uma das travessas enquanto que, com a outra munida de uma vara, tangia os bois à ordem do meu pai ou de um irmão mais velho que os guiava à soga.
Não me dói a consciência por , com o meu peso, exigir aos bois aquele esforço suplementar, porque, se não fosse eu a desfrutar daquele prazer, um calhau grande seria lá posto na minha vez para fazer os dentes da grade penetrar bastante na leiva.
Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado.
A minha avó materna também ajudava algumas vezes bem como a minha tia Quina, mas ficavam-se por um terço do despacho da minha mãe. O meu avô dirigia as operações dos homens da enxada, enquanto o meu pai já andava a lavrar outro campo.
Havia normalmente dois ou três homens a abrir regos e meu avô, sabendo da capacidade e vontade de cada um, mandava sempre o mais lento começar no primeiro rego, deixando o último para o trabalhador melhor, forçando deste modo os mais lentos a andar da perna, antes que o mais rápido esbarrasse com ele, o que seria uma vergonha para o atropelado.
A mim, como a qualquer um dos meus irmãos, a partir dos sete ou oito anos, estribados por uma varinha de vinte e cinco centímetros, cabia-nos a tarefa de dispor as batatas nos sulcos que os adultos iam abrindo.
Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva.
Entretanto era preciso pulverizar os batatais com calda bordalesa e inseticida de modo a erradicar-se o míldio e o escaravelho. Julho e agosto eram os meses da colheita e do armazenamento numa loja fresca e escura. Tínhamos batatas em barda e, como a produção excedia largamente o consumo, vendíamo-las para as mercearias da freguesia e até para o Porto onde as fazíamos chegar por barco rabão.
Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado.
A cultura do nabal era também muito rentável, até aos anos sessenta, quando vinham diariamente meia dúzia de mulheres da outra margem do rio, comprar grandes quantidades de nabos que carregavam em gigos bem acogulados, destinados à alimentação humana e à engorda de porcos.
A
ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA
Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem
sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao
terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as
camas do gado.
E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por
queiró, carqueja e tojo, tornou-se mesmo
decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da
cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a
estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de
estrume.
Ora nessa área de terreno inculto, dispersa por várias parcelas a que
os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas por sorteio, em número proporcional à área
agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e
o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o
castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução.
Os
lavradores maiores que tinham excedentes de mato, vendiam, para os fornos do Porto, alguma
carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles,
anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.
Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros,
reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das
casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada
família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam
nas lareiras de quase todas as casas, antes
da chegada dos fogões a gás e a eletricidade.
A lenha das videiras que
resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis
excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não
tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos
em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa.
As medas de
ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família,
faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e
pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.
O
AZEITE , O ÓLEO DOURADO
Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse
importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura.
Mas
a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso
dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia
meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa
casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados.
Entre
novembro e dezembro era a altura de se
colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos,
para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por
isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e
tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados, deixando que as copas se desenvolvessem na
vertical, sempre com o propósito de evitar que se apoderassem do solo com a sua
sombra.
A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com
passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na
mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso
varejar os ramos mais altos.
Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas
oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que
varejávamos do chão e de cima das escadas.
A azeitona colhida mais cedo e
sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas
talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era
servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não
fossem acompanhadas de carne gorda.
Na culinária a gordura que se usava mais
frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano.
António Carvalho
(Continua)
PS - Selecão de excertos, itálicos e negritos, da responsabilidade do editor LG.
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.
O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar
Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036__________
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
24 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I