quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24029: Notas de leitura (1549): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte X: a importância da acção psicossocial: pondo as mulheres a voltar a pescar... peixe e camarão


Guiné > s/l> s/d> Mulheres a pescar no rio... Cortesia do nosso camarada Carlos Rios [ex-fur mil, CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66] (*)


Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Na foto da capa, podemos ver o "capitão Cristo", sentado ao centro, com a mão direita no rosto, visivelmente bem disposto, em agradável convívio na casa do Zé Saldatnha [encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia]. Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o dono da casa, o Zé Saldanha (antigo militar que esteve em Bedanda). 

Recorde-se o que escrevemos na primeira destas notas de leitura (***):

(---) O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego"), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (...)

A intensa atividade operacional é intercalada com pequenas, saborosas (e algumas pícaras) histórias do quotidiano do quartel, da tabanca e seus "vizinhos" (que o autor nunca trata por "turras")...

(...) O estilo narrativo é poderoso. Seco, assertivo, direto, às veses quase telegráfico. A escrita é, visivelmente, de um militar, com experiência operacional, e forte espírito de liderança, que quer "chegar, ver e vencer", mas que vai encontrar uma companhia em farrapos (equipada ainda com a velha Mauser, sem fardas novas, mal alimentada, isolada, desmoralizada, mal vista pelo comando do setor, sediado em Catió).

É decididamente um militar que sabe que uma companhia vale pelo seu comandante operacional, e que quer fazer jus à sua divisa "Aut Vincere Aut Mori" (Vitória ou Morte). Pelo que nos é dado inferir da leitura do livro, é um militar de "mão cheia", para usar uma expressão cara ao cor inf ref Arada Pinheiro, seu amigo e camarada (um ano mais novo na Escola do Exército), e que não regateia apoio aos seus soldados, mesmo que com isso tenha que enfrentar a incompreensão e até a desconfiança da hierarqui militar (em Catió e em Bissau). (...) 

1. Continuação da leitura do livro de  Manuel Andrezo, pseudónimo literário de Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de 1965 e julho de 1967. 

Com mais três comissões, primeiro na Índia, depois em Moçambique, como capitão (1962/64) e  outra em Angola, já como major (1971/73), é um militar condecorado com Medalha de Prata de Valor Militar com palma, Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, Cruz de Guerra de 2.ª classe, Ordem Militar de Avis, grau Cavaleiro, Medalha de Mérito Militar de 3.ª classe e Prémio Governador da Guiné. 

Participou no 25 de Abril, como major, tinha então 41 anos e estava colocado na EPI, Mafra. Em esposta ao "Inquérito a 13 generais de Abril", por Adelino Gomes, jornalista do "Público", respondeu, à pergunta "O que sonhava enquanto militar, enquanto cidadão e enquanto indivíduo, no 25 de Abril?", o seguinte: 

"Mais igualdade, melhores condições de vida, encontrar uma solução que não nos desonrasse nem o povo nem os militares, para o Ultramar."

Está à beira de fazer 90 anos (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933). Vive em Lisboa, víuvo mas rodeado de bons filhos e netos. Em sua honra e para nosso prazer e conhecimento, publicamos  mais um pequeno apontamento das suas memórias, neste caso relativo ao seu dia-a-dia em Bedanda, à frente da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, entre meados de 1965 e meados de julho de 1967. 

O seu "alter ego", cap Cristo, mesmo sem orientações superiores, já na altura procurava pôr em prática a "ação psicossocial" que alguns de nós pensa(va)m ser obra de Spínola e do seu estado-maior... No essencial, e desde cedo, os militares portugueses (a começar pelos comandantes operacionais) se aperceberam que aquele tipo de "guerra subversiva" não se podia ganhar só pela força das armas, e que era preciso ir muito mais longe, ou seja, conquistar ou reconquistar (no caso de balantas, biafadas, mandingas, nalus...) a confiança das populações... O episódio chama-se "Um dia diferente" (pp. 337/339).


Pondo as mulheres a voltar a pescar... 
peixe e camarão

por Manuel Andrezo / Aurélio Manuel Trindade

A alimentação em Bedanda era deficiente, tanto para os militares como para a população civil. Para atenuar tais deficiências o capitão incentivou a cultura do arroz, a plantação da mandioca e da mancarra, essenciais para a alimentação da população nativa. 

Para acompanhar o arroz, o capitão entendeu que era preciso peixe à refeições, e que isso seria resolvido se as mulheres fossem pescar. Após uma conversa com a Tia e outras mulheres grandes, ficou decidido que as mulheres de Bedanda iriam pescar quando quisessem e que o capitão daria uma secção de escolta sempre que a solicitassem. 

Esta decisão caiu tão bem entre as mulheres que passaram a ir pescar todas as semanas pelo menos uma vez. Juntamente com o peixe vulgar também pescavam camarão. Por decisão das mulheres o camarão seria oferecido ao capitão como agradecimento por tudo o que ele estava a fazer em prol da população.

Uma vez, logo nos primeiros dias de pesca, compareceu no quartel a Tia com meia dúzia de mulheres e informaram o Lassen que queriam partir mantanhas ao capitão. E o Lassen informou o capitão. O capitão mandou entrar a Tia e as outras mulheres.

─ Nosso capitão, as mulheres da tabanca estão muito contentes com nosso capitão. Tudo que nosso capitão quiser das mulheres elas fazem.

─ Obrigado, Tia. O que eu quero é que mulheres da tabanca ajudem nosso capitão pescando e trabalhando na bolanha, para haver muito peixe e muito arroz para alimentarem marido e filhos. Vocês têm pescado muito.

─ Temos, nosso capitão. Quando vamos à pesca trazemos muito peixe para comer e mulheres muito contentes por nosso capitão dar protecção com soldados quando elas vão pescar. Elas decidiram que quando vão pescar também trazem camarão que é para nosso capitão. Não é muito mas foi o camarão pescado hoje de manhã.

─ Tia, muito obrigado pelo camarão. Nosso capitão está muito contente com Tia, com mulheres grandes e com todas as mulheres da tabanca por me oferecerem camarão. Nosso capitão gosta muito de camarão e isso vai matar-lhe saudades de Lisboa. Logo nosso capitão vai a tua casa falar contigo e agradecer o camarão que trouxeste.

─ Fico muito contente por nosso capitão ir na minha casa. Nosso capitão não tem que agradecer à Tia ou mulheres da tabanca. A Tia e mulheres da tabanca é que agradecem muito nosso capitão. Nosso capitão pode contar sempre com mulheres da tabanca.

─ Obrigado, Tia. Agradece por mim às mulheres da tabanca. Até logo.

─ Até logo, nosso capitão.

Assim se estabeleceu uma norma em Bedanda. Todas as vezes que as mulheres iam à pesca, traziam camarão para nosso capitão. Camarão muito pequenino, diferente do que se comia em Lisboa mas a que os oficiais da Companhia chamavam um figo. Como nestas coisas não havia propriedade privada, o capitão levava sempre o camarão para a messe, mandava-o cozer e todos petiscavam acompanhando o petisco com cerveja.

Tinha sido de facto um dia diferente. Surgira algo que justificava uma paragem na rotina de todos os dias e que permitia que os oficiais, com um copo de cerveja na mão e um prato de camarões, conversassem amenamente sobre as suas recordações. Um elo que os unia a todos, eles que quase todos os dias jogavam a sua vida em combate e a que tudo se agarravam para se sentirem vivos tanto física como psicologicamente.

Procedendo com a delicadeza tradicional da Guiné que exige que nada se ofereça na hora a uma oferta acabada de receber, porque isso seria ofensivo, o capitão mandou preparar uma encomenda para à noite a levar à Tia, e que seria a retribuição da delicadeza e nobreza de alma que a Tia e as mulheres da tabanca demonstraram. Nessa noite o capitão foi a casa da Tia para partir mantanhas e levou-lhe azeite, arroz, açúcar, conservas e pão. Eram as coisas que os homens e as mulheres da tabanca mais apreciavam. A Tia ficou muito contente por receber o capitão em sua casa com as lembranças que lhe levou.

─ Obrigado, nosso capitão. É uma honra para a Tia receber em sua casa nosso capitão, principalmente quando vem de propósito partir mantanhas. Nosso capitão pode sempre dispor casa da Tia como se fosse sua.

─ Obrigado, Tia. Se me deres licença gostaria de me sentar contigo na varanda um pouco, para conversar, descansar e apanhar o fresco da noite,

─ Fico contente nosso capitão querer ficar sentado comigo na varanda. Vamos, nosso capitão, vamos sentar.

Aí ficaram, capitão e Tia, a conversar como dois bons e grandes amigos, mais de duas horas. Em dado momento, porque a noite já ia avançada, o capitão despediu-se da Tia.

 ─ Agora vou-me embora, Tia. Vou até ao quartel e vou dormir. Obrigado por me receberes em tua casa e por me fazeres companhia. Até amanhã.

─ Até amanhã, nosso capitão. Venha sempre pois tenho muito gosto em o receber.

[Seleção / revisão e fixação de texto / título / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9362: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (11): Fragmentos Genuínos - 9

(**) 20 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

(***) Vd. poste de 5 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

(****) Último poste da série "Notas de leitura" > 30 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
As atas do Conselho prosseguem dominadas pelas discussão de regulamentos, normas, concessão de créditos, a Província vai se dotando de legislação, bem interessante para quem investiga cotejar estas atas com o Boletim Oficial da Guiné e as leituras possíveis que passavam, por exemplo, pelos jornais e pelo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Aqui e ali ouve-se a voz do povo, é o caso do padre missionário que vem acusar a autarquia de Bissau de crueza os indígenas que não pagam a tempo e horas, protestando que há dois pesos e duas medidas; ouve-se a queixa de um conceituado comerciante, Mário Lima Wahnon, que manifesta indignação com a concorrência desenfreada no mercado de amendoim, o que leva outro conselheiro a dizer que não há alfaiate ou sapateiro que não cheguem à Guiné e prontamente queiram enriquecer, sabe Deus como. A descolonização já bate à porta, chegámos a 1957 e as perturbações com a União Indiana movimentam manifestações e vozes calorosas a exaltarem o Portugal uno e indivisível.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (7)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Nunca esquecendo que estes volumes depositados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm lacunas, há saltos da cronologia, por exemplo passou-se de 1951 para 1955, dá para ponderar o que distingue uma governação como a de Sarmento Rodrigues e como as dos seus sucessores acabaram por legitimar o espírito de modernização das instituições, consolidando infraestruturas, abrindo estradas, inaugurando pontes e fontanários, cuidando dos equipamentos de saúde, criando o liceu de Bissau, por exemplo. Referimos no último texto que já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim, iremos verificar grandes ausências do governador por motivos de saúde. Participa no Conselho de Governo um elemento missionário, adiante será mencionado pela importância da sua intervenção. A partir de outubro de 1955 encontramos as atas com bastante regularidade, vejamos sumariamente os assuntos tratados: plano quadrienal de trabalho; crítica por não se incluir no mesmo a construção de silos para a mancarra; há largas referências à necessidade de um grandioso plano de estradas; discute-se a reforma dos serviços de assistência pública, bem como o orçamento geral da província para o ano económico de 1956; concedem-se bolsas de estudos e autorizam-se créditos; é posto à discussão o horário de trabalho dos estabelecimentos comerciais; referencia-se a tuberculose pulmonar como um importante desafio e há consenso para a transformação da missão do sono em missão de combate às endemias; é aprovado uma sobretaxa sobre o preço da gasolina e aprovado o abono sobre as ajudas de custo. Deteta-se que a partir de novembro é contínua a ausência do governador, quem preside ao Conselho é o vice-presidente, o Diretor da Fazenda. É na sessão de 29 de novembro que intervém o padre Cruz Amaral, tinha a ver com uma comunicação que este fizera ao governador, então doente na residência, manifestara discordância de opinião quanto às observações do padre missionário. E abordava publicamente a questão por que se via forçado um esclarecimento.

Assim:
“Há tempos fora abordado por alguns indígenas que lhe disseram ser obrigados pela Câmara Municipal a pagar o chão que ocupam com as suas moradias, vulgarmente de adobes cobertas a colmo. Que o mínimo que lhe cobravam era 200 escudos mensais, afora outros encargos. Fiquei impressionado, solicitei a pessoa da minha confiança para que me obtivesse elementos mais concretos e precisos, pois o assunto interessava sobre maneira ao representante dos interesses dos indígenas no Conselho de Governo. Essa pessoa trouxe-me a mesma notícia devidamente retificada. Os indígenas de Bissau, qualquer que seja o seu grau de assimilação, além de todos os impostos, pagam à Câmara Municipal 100 escudos por cada moradia e se a moradia for alugada passa a pagar 200 escudos; e quando destinada a estabelecimento comercial o imposto camarário pelo terreno que ocupa vai de 400 a 500 escudos.”

E o sacerdote observava a escassez de proventos dos indígenas e a crueza das execuções fiscais, quem não pagava a Câmara arrancava-lhe as portas e delas fazia coleção em monte no recinto do município. E assim verberou:
“Devo dizer a Vossas Excelências tais notícias que me deixaram verdadeiramente atordoado, não se pode ficar impassível perante tal violência. Numa terra como esta em que os CTT não cortam o telefone aos assinantes que estão 2 anos e mais sem pagar; onde a Emissora local sente repugnância em enviar para as execuções fiscais as taxas de recetores atrasadas, nesta terra, vamos descaridosamente arrancar as portas de domicílios que ocupam um chão que antes de ser do município já era dos indígenas. Isto vai contra o que há entre nós de tradicionalmente bom e cristão e compromete bastante os altos princípios de assimilação, de civilização humana que apregoamos”.

As discussões de caráter económico começam a vir à tona, veja-se o exemplo do período antes da ordem do dia aparecer o seguinte alerta vindo de um comerciante, Mário Lima Wahnon: “Avizinha-se o comércio da mancarra. Encerrou-se o comércio nalgumas localidades devido às taxas muito elevadas das licenças de comércio. Mas sei que apesar disso alguns comerciantes servem-se de camiões para comprarem mancarra nas povoações indígenas, com manifesto prejuízo daquelas que se sujeitam a pagar as taxas progressivas e despesas com a manutenção do estabelecimento todo o ano. Esta situação não deve continuar devendo o Governo exercer rigorosa fiscalização sobre este comércio ambulante e clandestino. Também se aproxima a campanha de arroz. Na área de Fulacunda é costume aparecer uma legião de homens e mulheres (chamados cristãos) que conduzem garrafões de água-ardente e tabaco para comprarem arroz de casca e de pilão nas diversas populações indígenas, também com manifesto prejuízo dos comerciantes legalmente estabelecidos. O governo proibiu a comercialização de arroz de pilão, mas a verdade é que o comércio de arroz de pilão continua todo o ano. Começou estes dias a venda de arroz de pilão no porto de Bissau e no mercado”.

Deu-lhe réplica o chefe dos Serviços de Administração Civil, alegando que o problema das limpezas dos produtos é um problema cíclico, observando que o mal tem outra origem, e não se coíbe de dizer qual: “Estamos habituados a ver chegar à província pedreiros, sapateiros, alfaiates, mulheres humildes e homens humildes que nunca tiveram outra profissão se não as que ficam apontadas; no entanto, ou porque o profissão lhes parece deprimente ou porque a sua ânsia é apenas a de enriquecer, 3 dias depois já aparecem licença para estabelecimentos de uma taberna ou de qualquer ramo comercial, intitulando-se comerciante”. Queixa-se que deveria haver regulamentação para instituir a carteira profissional, esta não existe e lembra que se dão fianças aqueles que adquirem camiões que permitem ir às tabancas utilizando meios ilegais e fraudes.

O Conselho continua a ser presidido pelo Diretor da Fazenda, o esforço legislativo prossegue: normas sobre os serviços de administração e funcionamento dos armazéns ou depósitos fiscalizados de regime aduaneiro, revisão do Regulamento dos Serviços das Alfândegas da província da Guiné; normas sobre a entrada, trânsito e saída de peles; regulamento de transportes em automóveis; tabelas de emolumentos a cobrar nos serviços públicos da Guiné. A 25 de abril de 1956 comunica-se a exoneração de Diogo de Mello e Alvim e a nomeação de Álvaro Silva Tavares, este presidirá à 1ª sessão do Conselho em 1 de outubro.

Paira já no ar a chamada questão da Índia e o chefe dos Serviços de Administração Civil apresenta uma moção a propósito de uma manifestação da população de Bissau de solidariedade com o governo central, no sentido de que a nação portuguesa é una, indivisível, e que a província toda está em íntima comunhão com estes princípios. “O Conselho de Governo não pode ficar indiferentes às interpretações que têm havido na ONU, em que o nosso delegado tem procurado mais uma vez demonstrar a inanidade dos conceitos de outros que, evidentemente, ainda não terão a capacidade suficiente para compreender o que seja uma unidade na diversidade”, moção que foi aclamada pelo Conselho com vozes de muito bem e apoiado.

(continua)

Avenida da República, Bissau
Pormenor da Catedral de Bissau
Estatueta Bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24027: (In)citações (228): Na morte do Francisco Silva (1948-2023), relembrando o cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, assassinado por um dos seus homens, em Jumbembem, em 16/7/1973 (Manuel Luís R. Sousa, SAj Ref, GNR)

1. Comentário (*) do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (sargento-ajudante da GNR na situação de reforma; ex-soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74; autor do livro "Prece de um Combatente - Nos trilhos e trincheiras da guerra colonial" (2012) (**): tem 46 referências no nosso blogue, e entrou para a Tabanca Grande em 31/3/2011.
 

A MORTE DO ALFERES NUNO GONÇALVES DA COSTA

por Manuel Luís Rodrigues Sousa

(excerto do meu livro "Prece de um Combatente", 2012, imagem da capa à esquerda).

Em março ou abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com um pelotão de militares nativos, para suprir a falta do 1.º pelotão acabado de ser colocado em Canjambari, um quartel a sul de Jumbembém, a cerca de doze quilómetros, juntamente com outro pelotão de Cuntima, em substituição de uma companhia que dali foi retirada.

Desse pelotão de nativos, o Pel Caç Nat 51,  apenas os comandos, o alferes, Nuno Gonçalves da Costa,  e um furriel, eram de origem metropolitana.

Num dia em que se realizava a habitual coluna de reabastecimentos a Jumbembém, Cuntima e Canjambari, a 
16 de julho de 1973, um dos elementos deste pelotão pediu ao alferes Costa, ao seu comandante, para o deixar seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima para visitar familiares.
Tratando-se de um militar rebelde e indisciplinado, como forma de o castigar, o alferes não autorizou a sua deslocação a Cuntima.

Perante esta recusa, o referido militar deslocou-se ao quarto do alferes, em fim de comissão e quase formado em medicina, com um futuro promissor pela frente, disparando contra ele dois ou três tiros de G3, atingindo-o na região do abdómen.

Foi-lhe prestada a assistência possível na enfermaria, enquanto se aguardava a evacuação por meios aéreos que entretanto foi pedida.

Passada pouco mais de uma hora veio a falecer, perante a impossibilidade de ser evacuado por falta desses meios aéreos, cujo uso era já particularmente restritivo, em consequência dos mísseis Strela ao dispor do PAIGC.

Este caso ilustra bem a perda do controlo aéreo na Guiné das Forças Armadas Portuguesas a que faço referência noutra parte do livro.

O referido alferes Costa era natural de Campos de Sá, S. Jorge, Arcos de Valdevez.

Após a sua morte, foi substituído pelo alferes Francisco Silva. Foi nestas circunstâncias que o alferes Silva chegou a Jumbembém. 

Que descansem em paz o alferes Silva, bem como malogrado alferes Costa. (****)

30 de janeiro de 2023 às 19:24

(Revisão e fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide


(***) Vd. postes de:


(...) Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e, voltou a ser pedido insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia queriam fazer justiça pelas próprias mãos (linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

- Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura “Berliet” e uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do Batalhão 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé. Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante - Ten Cor Vaz Antunes -, ou o 2º comandante Major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a “Ilha das Cobras”.

Para substituir o comando do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva (madeirense), que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. (...)


(****) Último poste da série > 27 de dezembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23921: (In)citações (227): As cheias, estas e as outras (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24026: Os nossos seres, saberes e lazeres (553): As matanças eram tempos de celebração e de paz entre as famílias (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)


Bragança > estaurante  "Solar Bragançano" > Cozinha do restaurante deste "distinto e afamado  restaurante", de que são proprietários a irmã e o cunhado do  Francisco Baptista. Fica na Praça da Sé 34, 5300-265 Bragança / Telefone: 273 323 875... Olhem-me só o que deixa antever a sua página no Facebook: é obrigatório lá ir!... O Francisco este anos todos sem nos dizer nada do restaurante da mana ?!...Em 2017 foi premiado como um dos 10 melhores restaurantes de Portugal!...

Foto (e legenda): © Francisco Baptista (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de hoje, 31 de Janeiro de 2023, trazendo até nós a tradição da matança do porco na sua casa, em Brunhoso:


AS MATANÇAS
por Francisco Baptista

As matanças eram sempre aos domingos, os únicos dias de folga que os lavradores tinham, e repetiam-se por tantos dias quantos os casais de irmãos ou irmãs que cada casal tinha. Procuravam-se escalonar de forma a não haver coincidências, para que todos pudessem estar presentes nesses dias festivos.

Eram tempos de celebração e de paz entre as famílias, em que se procuravam esquecer as querelas ou pequenas guerras que podiam existir entre irmãos e cunhados,  causadas por diferenças de indoles e temperamentos, por divergências nas demarcações dos terrenos, por palavras que no calor das discussões podiam soar a insultos, por dívidas esquecidas ou que tardavam a ser pagas ou por outras questiúnculas. 

 Os cunhados e cunhadas vinham de outras famílias com algumas diferenças de ser e de estar, os irmãos, sendo filhos do mesmo pai e da mesma mãe, nunca eram iguais pois tinham ADN diferentes, herdados de uma cadeia de antepassados de melhor ou pior qualidade e com o crescimento e com a constituição de famílias próprias e exclusivas as diferenças iriam acentuar-se mais, ao ficar também sujeitos à influência benéfica ou desfavorável do respectivo cônjuge.

Estes convívios tão salutares para reforçar os laços familiares, organizados com leis e regras que pareciam imutáveis, se desmoronou como um baralho de cartas, no último quartel do século XX, com a globalização, a desertificação, o abandono dos campos, a diminuição abrupta da natalidade, e a desagregação da família. Serão na sua génese,  não de influência judaico-cristã, mas serão de origem romana mais antiga, que está na base da nossa língua, das nossas estradas e comunicações, do direito civil e familiar, a civilização que nos deixou mais marcas.

Pela proximidade e pela conjugação de todos estes factores, com a morte das mães e dos pais que procuravam mantê-los unidos, os choques e os focos de desunião, motivados também por interesses egoístas e de grupo, iriam acentuar-se inevitavelmente.

Há alguns dias um amigo e vizinho, da minha idade, homem bom e como tal considerado por muita gente (para mim um homem bom tem que o ser no plural) disse-me que tinha sete irmãos e que não falava com quase nenhum. É um artista, um profissional honesto, sempre admirei estes homens e fiquei espantado, a explicação só poderá estar no que escrevi atrás sobre as relações, as diferenças e os conflitos familiares.

Em casa dos meus pais eram criados todos os anos dois porcos, numa loja ao lado da casa. Todos os dias antes do nosso almoço e da ceia, aquecia-se numa caldeira nas grades da lareira a "vianda" com produtos da horta, couves, beterrabas, abóboras, batatas, adubada com farelos, a que se juntavam outros restos que houvesse, pois eles, sendo glutões, não eram exigentes, que seria levada para ser despejada na pia de pedra onde comiam sofregamente. 

 No Outono, quando se aproximavam as matanças, para os cevar, tornando as suas carnes mais rijas, davam-se-lhes também rações cruas de batatas, bolotas e castanhas.

Na manhã do domingo aprazado para a matança, o pai e os filhos varões mais crescidos traziam para a lareira os maiores toros de carrasco ou de sobreiro e outra lenha mais fina de boa qualidade para aquecer o ambiente, dar calor a todos, e aquecer as grandes panelas de ferro que,  guardadas na despensas, depois de lavadas, teriam que cozinhar comida para mais de quarenta pessoas, entre crianças, jovens e adultos.

Havia dois porcos nédios, para serem sacrificados aos Lares, deuses da família, que eram o orgulho da nossa mãe pois tinha sido ela que os tinha criado, e sei, conhecendo-a bem, que se sentia muito contente por ter reunido toda a gente da sua família e da do seu homem, apesar do trabalho que lhe dariam.

Pelas nove apareciam os homens da família que iriam "fazer o mata-bicho", um pequeno-almoço frugal para aquecer, à base de figos secos e aguardente.

Os porcos, um de cada vez eram atados com corda e guiados para um banco, onde os mais velhos e os jovens adultos, os deitavam e agarravam para serem mortos com um golpe certeiro de uma grande faca, chamada porqueira, manejada entre as pernas dianteiras e o pescoço, pela mão hábil do matador, um homem da família, muitos anos um tio, mais tarde um primo, que lhe atingiam o coração com um golpe certeiro, para minorar o seu sofrimento.

Depois era queimado o pêlo com colmo de centeio e raspado com navalhas e com pedaços ásperos de cortiça, para o couro ficar bem limpo. A seguir era aberto, pelo matador, tirando-se todos os "pordentros",  as tripas, o fígado, os boches (pulmões), a bexiga, os rins, etc.

As tripas seriam levadas logo pelas mulheres da família para serem lavadas na água corrente e fria, por vezes próxima da congelação, de um ribeiro, para alguns dias depois a dona de casa ensacar as chouriças, salpicões e outros enchidos.

Parte do sangue do porco era cozido e dado a comer a quem gostasse, outra parte era tratado para não coagular para fazer os chouriços de sangue.

A carne do porco,  um bem primordial tal como o trigo, o centeio, as batatas, o azeite, a hortaliça, seria guardada na despensa, de diferentes formas para alimentar a família durante todo ano. A despensa da casa era uma espécie de grande arca frigorífica onde todos os alimentos se guardavam e conservavam.

Ao almoço em casa iríamos comer galinha, vitela, ou outras carnes em alternativa. Os homens e os jovens adultos bem instalados na mesa da sala com vinho à discrição, que quase todos apreciavam, iriam sair satisfeitos, apaziguados, e a pensar na próxima matança. As mulheres e a garotada na cozinha ou na entre-sala contígua, contentes à sua maneira. As mulheres porque tinham contribuído para a paz da família alargada e os primos e primas porque tinham tido um grande convívio, boa comida e muita brincadeira.

As matanças eram feitas nas ruas por causa do fogo e da água que era necessário utilizar na preparação das carcaças e aos domingos porque, sendo dia de folga,  não iriam estorvar o trânsito dos carros de vacas proibidos de circular, nesse dia, pela Santa Madre Igreja. Nos meses de Novembro e Dezembro, em Janeiro já não porque começavam os lagares de azeite a trabalhar e iriam despejar para os ribeiros o piche, um líquido escuro, que não era azeite, que também saía das azeitonas quando se espremiam e era encaminhado juntamente com a água utilizada, para o ribeiro mais próximo, tornando as suas águas turvas e impróprias para lavar as tripas.

As mulheres que criavam os porcos, preparavam as suas carnes e faziam os enchidos, as nossas avós, as nossas mães, as nossas tias, já morreram ou estão velhinhas, tal como os seus homens que os matavam , os "desfaziam" e plantavam as hortas, com grande abundância de hortaliças e outros bens alimentares.

Os porcos,  depois de mortos e preparados na rua,  eram pendurados em vigas nas despensas dois dias para verterem bem todo o sangue. Ao terceiro dia o chefe de família iria desfazê-lo, serviço que consistia em cortá-lo de acordo com as características das partes que o constituíam. Separar os presuntos, o toucinho, o lombo, as costelas, os pés, o focinho e outras partes, era um trabalho árduo que requeria pulso, uma boa machada e facas bem afiadas. Recordo-me que o meu pai fechava-se na despensa para fazer esse trabalho e não queria ninguém à sua beira.

Em alguns concelhos transmontanos felizmente ainda há casais, alguns jovens, que se dedicam a essa actividade. É bom que não se percam os bons sabores e a qualidade dos produtos da terra fria transmontana.

"Ao ser indagado, sobre qual a ave que mais gostava de comer,  um espanhol citou as qualidades do frango, da perdiz mas suspirou dizendo: Se o porco voasse... seria ele a primeira das aves".

O porco enchia a casa dos lavradores de bons sabores desde o focinho aos pés tudo se aproveitava:

- O focinho, os pés, as orelhas, o bulho (bexiga de porco enchida com carne com osso, curada no fumeiro), tudo cozinhado com casulas (vagens secas) e batatas, compunham um prato delicioso para comer nos dias frios do Inverno, obrigatório nos dias de Carnaval;

- Os presuntos curados com muito sal, depois cinza, a seguir limpos e pendurados nas despensas, não iriam ao fumeiro, o frio seco do planalto completava a sua cura; eram das peças mais importantes e apetitosas do animal, comidos com parcimónia em dias especiais e na recepção de familiares ou amigos;

- O toucinho, o parente pobre do presunto, era curado da mesma forma, tinha os seus admiradores, ficava mais saboroso com a passagem dos meses frios e quentes, quando o sol já desmaiava no horizonte, no tempo das sementeiras em Setembro e Outubro;

- A marrã, a carne entremeada da barriga seria grelhada à lareira acompanhada por batatas cozidas, grelos ou couves;

- Com as carnes magras do lombo e de outras partes, as donas de casa faziam os "chichos" que seriam postos em "suça", a marinar temperados com vários condimentos em alguidares ou barrinhões, durante alguns dias na despensa, muito saborosos; com o amor e as liberalidade das mães, alguns seriam grelhados na lareira e comidos com batatas e grelos ou couves, porém a maior parte seriam para fazer as chouriças e os salpicões, os enchidos mais valiosos do fumeiro;

- O fígado e os rins grelhados, eram petiscos que todos apreciavam; outro petisco guloso eram os rojões do redanho (diferentes dos rojões do Minho) fritos na sertã;

- Com a banha do porco fazia-se o "unto",  muito saboroso para barrar as torradas ou para temperar o caldo.

Aproveitando o tempo frio e seco, o contributo e inspiração do ciclo do porco as cozinheiras iriam encher os fumeiros de todos os géneros de enchidos, alguns com carne dele, outros com outras carnes, outros sem qualquer carne: as alheiras, os azedos, os chabilanos, os brancos, os doces e outros, breves dias depois do mata-porco iriam encher o fumeiro com formas e cores variadas, que consolavam a vista e anunciavam prazeres futuros ao paladar.

Infelizmente não há uma história fotográfica desses encontros familiares, nem das grandes fogueiras à lareira ou dos fumeiros que cobriam o espaço acima. As pessoas gostavam de conviver, sem se preocupar em registar os momentos. Também raramente alguém tinha máquina para tal, não fazia parte dessa cultura.

A fotografia que acima de publica,  é de um fumeiro feito pela minha irmã Ana Maria, há alguns anos na cozinha do restaurante dela e do marido em Bragança. Um restaurante distinto e afamado, "Solar Bragançano",  que continua aberto sendo ela a cozinheira. Foi professora de meninos e foi uma grande aluna da nossa mãe, a trabalhar à lareira com panelas de ferro e a fazer boas alheiras chouriços e salpicões. A história continua...


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Nota do editor:

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24018: Os nossos seres, saberes e lazeres (552): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (87): Uma visita a legados presidenciais, a pretexto da exposição Pintasilgo (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24025: Notícias Lusófonas (2): Morreu Luís Moita (1939 - 2023), grande amigo da Guiné-Bissau, especialista em relações internacionais, esteve com alguns de nós no Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008)




Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2000) > Sessão de encerramento, dia 7, de manhã > O Prof Doutor Luis Moita (*), em nome de todos os participantes portugueses e demais estrangeiros (com excepção cabo-verdeanos e dos cubanos Oscar Oramas e Ulisses Estrada, que fizeram intervenções autónomas) profere, de improviso, um caloroso e brilhante discurso de síntese sobre o balanço daquela "semana inolvidável" que foi o Simpósio Internacional de Guiledje e as perspectivas que se abrem para o futuro da Guiné-Bissau em matéria de democratização interna e de cooperação internacional ...

O conteúdo do discurso de 10 minutos centra-se à volta de quatro ideias-chave: Organização, Rigor histórico, Densidade humana, Qualidade política. É uma intervenção de grande qualidade intelectual e humana, que nos honrou a todos, e em que Luís Moita mostra, para além da sua faceta de talentoso orador, toda a sua grande cultura como especialista de relações internacionais, e sobretudo a sua grande inteligência emocional, como português e amigo da Guiné-Bissau.

Na altura escrevemos que era uma pena este vídeo não estar disponível para os Amigos e Canaradas da Guiné, e nomeadamente na véspera da inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje que vem celebrar, não a derrota de ninguém, mas a fraternidade dos povos, trinta e seis anos depois do fim da guerra colonial, e muito em particular vem contribuir para o reforço da relação especial que une o povo guineense e o povo português.

Recordo aqui a composição do Comissão de Honra do Simpósio (**):

  • Presidente da República da Guiné-Bissau, General João Bernardo Vieira
  • Dr. Francisco Benante, Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau
  • Dr. Martinho N’Dafa Cabi, Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau
  • Doutor Nuno Severiano Teixeira, Ministro da Defesa de Portugal
  • Doutor João Cravinho, Secretário de Estado da Cooperação Internacional de Portugal
  • Professor Doutor Patrick Chabal, docente da King’s College, Londres, Grã-Bretanha
  • Professor Doutor Luís Moita, Vice-Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
  • Doutor Óscar Oramas, Ex-Embaixador de Cuba na Republica da Guiné-Conakry.
  • Professor Doutor João Medina, Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, Portugal
  • Flora Gomes, Cineasta guineense
  • Professor Doutor Peter Mendy, docente no Rhoad Islands College, Boston, USA.

Vídeo (10' 14''): Luis Graça (2009). Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Morreu Luís Moita, que eu conheci pessoalmente na sequência do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008), e de quem guardo, eu e a Alice, gratas recordações desses dias que passámos juntos. Recordo sobretudo a sua afabilidade, empatia e inteligência emocional...ms também a sua inquietação crítica, face ao futuro da Guiné-Bissau  e do que restava da elite do PAIGC...

Sobre o seu currículo de vida (inclundo académico), não me vou aqui pronunciar, mesmo que ele tenha sido meu "vice-reitor" durante algum tempo, no ano lectivo de 1994/95, quando dei colaboração à sua universidade, a UAL - Universidade Autónoma de Lisboa. (Em boa verdade,  colaborei, com o Departamento de Ciências Sociais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), na elaboração dos programas e na docência de novas disciplinas, a Administração de Serviços de Saúde e a Sociobiologia, no âmbito da licenciatura em Sociologia, em 1994/95, por convite do então regente da Cadeira de Ciências Sociais e Humanas da ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública, Dr. João Santos Lucas, mas nunca vi nem contactei o então vice-reitor Prof Luís Moita.)

Deixem-me no entanto destacar aqui alguns pontos do seu CV, relativos aos seus  últimos 20 anos, para se perceber melhor a sua relação com a instituição militar e a sua autoridade, como especialista em Relações Internacionais.

  • 2015-2018: Professor do Doutoramento em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia
  • 2005-2018: Director do Departamento de Relações Internacionais da UAL 
  • 2005-2011: Professor do Curso de Estado Maior no Instituto de Estudos Superiores Militares 
  • 2004-2018: Professor do Curso de Promoção a Oficial Superior no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea e no Instituto de Estudos Superiores Militares 
  • 2003-2018: Professor do Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra 
  • 1998-2018: Conferencista regular do Curso de Defesa Nacional do Instituto de Defesa Nacional
  • 2010-2018: Director da revista JANUS.NET, e-journal of International Relations 
  • 2009-2011: Membro do Conselho de Ensino Superior Militar no Ministério da Defesa Nacional 
  • 2006-2018: Membro do Conselho Editorial da revista Nação e Defesa do Instituto de Defesa Nacional

Limito-me aqui a lamentar profundamente a sua morte, aos 83 anos, e a endereçar os meus votos (pessoais) de pesar à sua família e amigos íntimos.  Aproveito para  reproduzir alguns destaques da imprensa em língua portuguesa, disponível "on line".

Lembro que o Luís Moita  não faz parte da nossa Tabanca Grande, mas tem pelo menos uma dúzia de referências no nosso bogue. 

O seu funeral é hoje, terça-feira, dia 31, em Lisboa. (***)


Diário de Notícias > 28 de janeiro de 2023, 20:08 > "Até sempre Professor". Morreu Luís Moita

(...) Luís Moita, um dos últimos presos de Caxias a ser libertado, professor da Universidade Autónoma morreu este sábado. Tinha 83 anos. (...)

Expresso / Lusa, 28 de janeiro de 2023, 21:33 >  Marcelo evoca professor Luís Moita, "lutador pela justiça social" e "militante pela igualdade"

(...) O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou hoje a morte do professor Luís Moita, evocando-o como um "lutador pela justiça social" e "militante pela igualdade" e endereçou à família e amigos "um sentido abraço de pêsames". (...)

7Margens, 29 de janeiro de 2023 > Na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa: Funeral de Luís Moita dia 31, velório nesta segunda-feira

(...) O funeral de Luís Moita, professor universitário e um dos organizadores da vigília da Capela do Rato em 1972 contra a guerra colonial e pela paz, será nesta terça-feira, 31, às 15h, na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. Antes disso, o corpo será velado na mesma igreja a partir das 18h30 desta segunda-feira, 30 de Janeiro.

Nascido em 11 de agosto de 1939, Luís Moita, morreu sábado em Lisboa, como o 7MARGENS noticiou. Tinha 83 anos.

Tendo sido padre, Luís Moita doutorou-se em Roma em Ética, em 1967, na Universidade Lateranense. Abandonou depois o ministério e em Dezembro de 1972, foi um dos organizadores da vigília de católicos que demonstrou o afastamento de largos sectores católicos em relação à ditadura do Estado Novo. Foi preso pela polícia política e sujeito a tortura.

Depois da instauração da democracia, em 25 de Abril de 1974, Luís Moita foi fundador e dirigente do CIDAC (Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral), entre 1974 e 1989, dedicando-se depois quase exclusivamente à carreira académica, leccionando as áreas de Ética e Relações Internacionais.(...)

Esquerda.net > 28 de janeiro de 2023 > 19:47 > Luís Moita (1939-2023)

(...) Foi um dos protagonistas entre os católicos contra a guerra e a ditadura. Em democracia, dedicou-se à cooperação com África e mais tarde à academia na área das relações internacionais e do estudo da paz e dos conflitos armados. (...)
 


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez , algures no sector de Bendanda, no triângulo Iemberém, Cadique e Cananime, na margem direita do Rio Cacine > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de Março de 2008 > Visita ao antigo Acampamento Osvaldo Vieira (agora reconstituído) ... Dois exemplares da espécie Ui!ui! (****), uma variante albina: O Cor Cav Ref e escritor Carlos Matos Gomes e o Prof Doutor Luís Moita , vice-reitor da UAL - Universidade Autónoma de Lisboa, e antigo fundador e dirigente do CIDAC; os dois claramente deslocados do seu habitat natural, que é o mangal de Lisboa)


 Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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(****) Vd. poste de 20 de outubro de  2009 > Guiné 63/74 - P5135: Humor de caserna (14): Curiosidades zoológicas: Os Ui!Ui!, animais nocturnos, do tarrafo do Rio Grande de Buba (José Belo)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24024: In Memoriam (468): Recordar Francisco Silva (1948-2023) - Viagem de saudade à Guiné-Bissau em 2008 (José Teixeira)

1. Em mensagem do dia 29 de Janeiro de 2023, José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) recorda a viagem à Guiné-Bissau, em 2008, na companhia do nosso camarada Francisco Silva.


Recordar o Francisco Silva

O Francisco foi apanhado na contestação coimbrã de 1968, quando cursava o 1.º ano de Medicina, e “despachado” para tropa, quando tinha 18 anos.

Ofereceu-se para os paraquedistas, mas chumbou e voltou à “tropa macaca”. Daí o nome de “alfero paraquedista” como era conhecido na Guiné. Apelido que já estava no esquecimento, quando em 2013 aquele guineense - Alto quadro administrativo, como diretor de um departamento governamental, - no antigo Quartel-General em Bissau, não o abordasse e lhe perguntasse: Tu não és o alfero paraquedista?

O Francisco ficou a olhar para ele, muito admirado, pois tinham-se passado mais de quarenta anos, e disse: - Sim! Chamavam-me o paraquedista…
- Em bem me parecia que eras tu. O meu pai vivia no Xitole e eu estudava no Honório Barreto. Fui para lá nas férias grandes e tu estavas lá.

Logo, se abraçaram e se perderam em conversa, nesta visita de saudade que ambos tínhamos planeado e estávamos a iniciar, acompanhados pelas nossas companheiras de vida.

Foi o início do primeiro dia da visita. No dia seguinte partimos para Xitole e as surpresas continuaram.

Começou por fazer uma “peregrinação” pelos locais que mais o marcaram: Os postos de sentinela dos seus homens; o lugar do morteiro; as valas à volta do quartel, onde se refugiavam e se defendiam quando o inimigo atacava; a messe de oficiais…
Falava-me dos locais onde estava o inimigo nos seus ataques à povoação e da forma como reagiu num dos ataques em que sendo o alferes mais velho , comandou a defesa, quando vê ao longe, aproximar-se em passo rápido um guineense ainda jovem que se dirigiu a ele e afirmou:
- Tu és o alfero paraquedista!
Era o “djubi” que servia na messe de sargentos, tinha quinze anos. E, não mais largou o Francisco. Tinha uma filha que se ia casar no sábado a seguir e logo convidou o Francisco e a comitiva para a festa di casamenti.

Seguimos caminho, ao fim da tarde, para o Saltinho. O Francisco entabulou conversa com um nativo e ali descobriu um antigo guerrilheiro. Localizaram-se no tempo e nos embates de frente a frente em Xitole e perderam-se em conversa durante a noite.

O Francisco era um profundo observador e guardava na memória muitos dos pormenores vividos em combate. Era para mim, um prazer ouvi-lo.

Seguimos para Iemberém. Também ali, o Francisco localizou um antigo guerrilheiro (já falecido), e para sorte do nosso homem, estivera na área do Xitole e passara para o Norte, áera de Jumbembem, tal como Francisco e no mesmo tempo. Fui testemunha destas cenas que ouvi e fotografei para memória futura.

Conheci o Francisco em 2008. Fizemos a viagem para a Guiné, por terra, foram seis dias de viagem para lá, seis dias na Guiné, e mais seis dias no regresso, para participar no Simpósio de antigos combatentes da Guiné, onde convivemos com antigos soldados africanos do exército português e soldados do PAIGC. Excelentes momentos de convívio que, quem viveu não vai esquecer.

O nosso querido amigo Francisco primava pela sua forma de estar. Ficava para trás, sem se preocupar com o grupo. Ele tinha de observar bem tudo o que o despertava. Era sempre o último a chegar e uma vez, no regresso, teve de vir de táxi para a pensão em Noadhibou na Mauritanea, pois os camaradas esquecerem-se dele no centro da cidade. Apareceu meia hora depois, calmamente como se nada tivesse acontecido.

Na noite anterior, tínhamos ficado num Oásis. Um local maravilhoso, no meio do deserto, onde só estavam os guardas do Resort, dado não ser época de caça. Nada para comer, nem mesmo pão, pelo que o nosso jantar, foram sardinhas enlatadas, que felizmente ainda havia na carrinha dos mantimentos.

Nessa noite, o Francisco veio ter comigo - Teixeira, dizem que não há estradas para podermos continuar a viagem, mas escuta!...
Ouvia-se ao longe, um ruído, que parecia, carros a passarem numa autoestrada.
Ele insistia: - Passa aqui perto uma estrada e tem muito movimento. Vamos ver?!

Seguimos os dois pelo deserto dentro na direção do vento que nos levava ao ruído. Andámos cerca de um quilómetro e localizamos a origem do mesmo. Era o gerador de eletricidade do resort, onde estávamos alojados. Ali colocado, à distância, para não incomodar os residentes. O vento, vindo daquela direção fazia chegar ao resort um leve ruído que o Francisco detetou.

Desfeita a dúvida iniciámos o regresso, mas o céu estava tão lindo, carregado de estrelas que nos deitámos na areia e ficamos a apreciar e a divagar sobre a beleza que pairava por cima de nós. Perdemo-nos no tempo e quando regressámos, tínhamos os 27 companheiros de jornada assustadíssimos à nossa procura, chamando-nos e procurando-nos à volta do resort, pensando alguns que tínhamos sido feitos prisioneiros por algum grupo de guerrilha local. Com o vento contra, não ouvimos chamar pelos nossos nomes.

Era este homem, amante da natureza, profundo observador de tudo o que o rodeava e sempre pronto a procurar a razão, ou a raíz das coisas e acontecimentos, que tenho pena de só o ter conhecido em 2008. Ele e a Elizabete, sua esposa estão no meu coração.

Partiu para a eternidade, depois de um longo e profundo sofrimento.

Espera por mim, querido amigo. Não tardarei.
José Teixeira

Fotos 1 e 2 - Em Bissau, conversando com um quadro administrativo que o reconheceu.
Fotos 3 e 4 - No Xitole, com o "djubi" que era o cantineiro em 1972.
Fotos 5 e 6 - No Xitole, em perigrinação pelas valas e local do morteiro 81.
Fotos 7 e 8 - Em Iemberém a estudar a localização de um e outro num ataque a Xitole e... o abraço da paz. 

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Nota do editor:

Vd. poste de 30 de Janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3942 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide

Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
A organização da História de Portugal e do Império Português, pelo académico A. R. Disney, em dois volumes, tem as suas originalidades e não deixam de provocar surpresa ao leitor português. O primeiro volume abarca desde a Pré-História até ao fim do Antigo Regime e o segundo começa no Norte de África, com a conquista de Ceuta e vai até ao Império do Oriente na era colonial tardia. O que tem a ver com a Guiné inicia-se com a exploração das costas da África Atlântica e finaliza ao tempo da segunda fortaleza de Bissau, da nossa presença também no Cacheu e nalguns outros locais. Foi esta tímida presença, espartilhada pela França a Norte, num Senegal onde a Inglaterra tinha encravado a Gâmbia, a Sul uma Guiné Francesa que pretendia expandir-se, que se obteve, com o sacrifício do Casamansa, a legitimidade territorial da Guiné Portuguesa, que é hoje o território onde se confina a Guiné-Bissau. Daí o autor estar altamente motivado a falar do tráfico de escravos, verificou que a missionação foi altamente esporádica, e termina a sua exposição exatamente no tempo em que vão começar as explorações de produtos agrícolas. Um livro rigoroso que importa saudar.

Um abraço do
Mário


A Guiné no Império Português, segundo A. R. Disney (2)

Mário Beja Santos

Considerado pela crítica uma investigação de gabarito pela originalidade da estrutura e pelo inventário bibliográfico e documental, como este académico observa no prefácio do segundo volume, que aqui cabe fazer referência, está organizado de forma um pouco diferente do primeiro. Na obra de arranque, A. R. Disney centra-se na Pré-História de Portugal, prossegue pela Idade Média, a construção do Portugal de Avis, o que ele designa por a Idade de Ouro, a época de declínio, a Restauração e a Reconstrução, o esplendor barroco, a era do Marquês de Pombal, o final do Antigo Regime. Neste segundo volume é toda a evolução do Império, desde as Praças do Norte de África até o Império do Oriente na era colonial tardia é matéria de análise – "História de Portugal e do Império Português", Volume II, por A. R. Disney, Guerra e Paz Editores, 2011.

Vimos que o envolvimento na África Atlântica ditou uma forma de presença portuguesa naquilo que o autor designa por Alta Guiné mediante um contrato de arrendamento que favoreceu marcadores portugueses e cabo-verdianos. Instituiu-se a figura do lançado também designado por tangomão quando se aculturava. A Coroa era muito severa relativamente à área destinada a trato comercial, os mercadores estavam impedidos de ir a Arguim ou descer até S. Jorge da Mina. O tráfico de escravos destinado a diferentes paragens foi alvo de concorrência, a presença portuguesa no período pós-Restauração fragilizou-se ainda mais. Como o autor observa, a concorrência já era enorme antes do período filipino. “Na década de 1530 embarcações normandas e bretãs frequentavam a região para comerciar. Juntaram-se-lhes os Ingleses, na década de 1550, e os Holandeses, a partir de 1580. Estes concorrentes europeus foram muito bem recebidos pelos governantes africanos e rapidamente se estabeleceram na Alta Guiné. Com o tempo cada nacionalidade começou a concentrar-se em áreas particulares: os Franceses no Senegal, os ingleses na Gâmbia, os Holandeses e os Ingleses na Serra Leoa”. Encetara-se uma concorrência áspera, as nações europeias pensaram mesmo em erigir fortalezas, o que não era do agrado das chefias africanas, que queriam negociar sem restrições e com quem lhes parecesse vantajoso. Facto comprovado, os portugueses foram perdendo terreno na Alta Guiné, não podiam dispor de fornecimentos tão satisfatórios como os concorrentes. Em abono da presença portuguesa, os viajantes e mercadores tinham uma mais antiga experiência na região onde se tinham fixado em povoamentos informais que já estavam enraizados. A grande concentração era no Cacheu. Em 1589, o chefe Papel do Cacheu, depois de muita hesitação, concordou em permitir a construção de um forte, supostamente para a proteção dos lançados contra possíveis ataques de inimigos europeus. No início do século XVII, a cidade tinha duas igrejas e uma população cristã de quase mil pessoas.

Em 1614, a Coroa Portuguesa decidiu tornar a colónia oficial e nomeou um Capitão para o Cacheu que se iria tornar, quase durante dois séculos, no principal entreposto português para os escravos da Alta Guiné. Chegada a Restauração, decidiu-se que no Cacheu seriam pagos os direitos alfandegários da exportação de escravos, em substituição da cidade da Ribeira Grande. Esclareça-se que havia também lançados na ilha de Bissau, houvera bom acolhimento pelo chefe Papel local que se convertera ao catolicismo por franciscanos portugueses e deu autorização para a construção de uma fortaleza, em 1696. Pouco tempo depois, Bissau foi declarada uma Capitania portuguesa. As dificuldades cresciam, os concorrentes eram imbatíveis, tentou-se uma reestruturação, experimentaram-se as companhias comerciais. Foi instituída uma companhia para o comércio da África Ocidental, em 1664, revelou-se um fracasso. Foram encetadas outras companhias em 1676, 1682, 1690 e 1699, todas subcapitalizadas e condenadas a uma vida curta. A despeito da Guerra da Restauração, D. João IV, em 1646 autorizou a continuidade do tráfico de escravos para a América espanhola. Em 1701, Lisboa decidiu encerrar o Forte de Bissau. Durante a metade do século seguinte, os portugueses competiram nos Rios da Guiné com extrema dificuldade, tendo sempre à ilharga os franceses e os britânicos. Os estreitos laços económicos e políticos de Portugal com o Reino Unido trouxeram alguma vantagem sobre os franceses. Isto para significar que a primeira metade do século XVIII teve longe de ser um período próspero para os portugueses na Alta Guiné.

Seguiu-se a reforma pombalina acompanhada da decisão de construir outro forte em Bissau, a partir de 1752, houve oposição dos Papel, mas a estrutura foi concluída em 1775. A fortificação permitiu aos portugueses ir exercendo ascendência nos Rios da Guiné, apesar da presença inglesa rival, tanto nas ilhas Bijagós como no continente. Registou-se uma modesta recuperação no tráfico de escravos, em parte sob o estímulo da Companhia do Grão-Pará e Maranhão de Pombal, surgida em 1755. A Companhia deteve o monopólio português do comércio e navegação para a Alta Guiné até 1778 e levou mais de 22 mil escravos africanos para as até aí negligenciadas capitanias do Norte do Brasil.

Cacheu, Bissau e outros pequenos povoamentos nos Rios da Guiné continuaram nas mãos portuguesas e a crescer, mesmo depois da aposentação forçada de Pombal. É este conjunto de possessões que acabará por formar o núcleo da colónia da Guiné Portuguesa que ganhará fronteiras em 1886, alvo de algumas correções, que dão hoje o território da República da Guiné-Bissau.

A. R. Disney prossegue o seu trabalho com o ouro de S. Jorge da Mina, importa recordar que Fernão Gomes, devido ao seu contrato de 1469 a 1474, não só adquiriu grandes quantidades de ouro em várias aldeias costeiras dos atuais Costa do Marfim e Gana, zona da Baixa Guiné, mais tarde chamada Costa do Ouro, a que os portugueses chamavam a Costa da Mina. Em janeiro de 1482, D. João II despachou para a Costa da Mina uma armada comandada por Diogo de Azambuja e depois de conversações com o chefe local começou imediatamente a construção da fortaleza. Os portugueses nunca conseguiram estabelecer contato comercial direto, o ouro da Mina foi sempre uma operação sedentária, conduzida a partir da fortaleza. O ouro era trazido por mercadores indígenas que tratavam igualmente da distribuição dos produtos portugueses importados por todo o Interior. Resta dizer que S. Jorge da Mina é representada nos mapas do século XVI sobranceira à costa da Guiné, imagem algo errónea. A fortaleza não era imponente, o poder de ataque dos portugueses era mais ou menos limitado ao alcance do seu canhão. Resta dizer que o domínio marítimo português na costa da Mina durou cerca de 150 anos, e de modo algum se pode associar a presença portuguesa na Guiné diretamente com a fortaleza de Arguim ou a fortaleza de S. Jorge da Mina, eram tratos comerciais completamente distintos. E terminam as referências a este reconhecido trabalho sobre a História de Portugal e do Império Português, no que concerne à Guiné, mas História anterior à ocupação efetiva.

Imagem da Cacheu antiga, gravura do século XIX
Fortaleza de Cacheu, vestígios de estátuas da Guiné Portuguesa
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Notas do editor:

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