sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). 

1. C
ontinuação da leitura do 
Manuel Andrezo, pseudónimo de  Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de  1965 e julho de 1967.

Aurelio Manuel Trindade irá completar  90 anos em 2023 (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933).   Fez quatro comissões no ultramar. Desejamos, desde já, que que o novo ano de  2023 seja vivido com saúde, alegria e esperança, rodeado dos filhos e netos que, sabemos, o adoram. Vive em Lisboa. E ainda gostaríamos que ele um dia aceitasse o nosso convite para se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, juntando-se assim aos 868 amigos e camaradas da Guiné.  Ele e o seu nosso amigo Mário Arada Pinheiro (que já acietou o convite: problemas de saúde têm-no impedido de nos mandar as fotos da praxe).

Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do autor,  seu amigo e camarada, datada de 13/12/2020. 

Vamos fazer, com esta, um dezena de notas de leitura (*) deste livro que, infelizmente, está fora do mercado, por se tratar de edição de autor. Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6),  têm mostrado interesse por esta obra, que temos estado a divulgar.   

E muitos outros dos nossos camaradas conheceram a região de Tombali onde se situa Bedanda, gente que guarda as melhores e as piores memórias do inferno de tarrafe, lianas, floresta, água, suor, lágrimas e sangue, que era toda essa região do Sul: Bedanda, Cumbijã, Nhacobá, Catió, Ganjola, Cachil, Como, Cufar, Cadique, Cantanhez (Caboxanque, Cafal, Cafine, Jemberem, Chugué, Cobumba...), Cacine, Cacoca, Sangonhá, Cameconde, Guileje, Balana, Mejo, Gadamael, etc.

Temos vindo, ao mesmo tempo,  a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). (**)

A história que escolhemos para hoje, com a devida vénia (e homenagem ao autor no ano em que vai fazer  90 anos) é um delícia de humor de caserna. Confesso que me diverti a (re)lê-la. E, ao mesmo tempo, é  também reveladora das qualidades que deve ter um grande comandante operacional (como era o caso do capitão Cristo): disciplinado e disciplinador, mas pondo sempre à frente de todas as suas decisões o espírito de corpo, a coesão, o bem-estar e a segurança dos seus homens. 

É também reveladora das pequenas "sacanices" ou "velhacarias" que alguns camaradas, que tinham a faca e o queijo na mão, podiam fazer a outros camaradas... Enfim, os pequenos abusos do poder, os privilégios.... Afinal, "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte"...

O sargento Lopes, a exercer as funções de vagomestre (por já não ter  "idade" para ir para o mato a comandar uma secção)  terá aprendido uma lição para a vida. 

Casos como este, ter-se-ão multiplicado na Guiné... Estava-me a lembrar de histórias passadas na minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12... Talvez um dia ainda as conte: afinal, os dois sargentos do quadro, de quem eu, de resto,  era amigo,  já morreram infelizmente...E não levarão a mal, lá no Olimpo dos combatentes, uma ou outra história pícara que a gente, do lado de de cá, conte sobre eles e nós... Os dois viram a guerra a partir da secretária: um passeava a sua úlcera pelas tabancas, o outro fazia a conta a fraca contabilidade de uma companhia de praças africanas desarranchadas"... O 1ºs sargentos,. por norma, estavam de passagem, e preparavam-se para ir para a Escola Central de Sargentos, em Águeda... 


A GUERRA DO PETISCO 
(pp. 298/302)


A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria. 

Ora foi o que um dia o capitão veio a fazer, chamando o sargento vaguemestre para que abatesse uma das vacas. A vaca foi morta, a carne distribuída, e o Fialho, que trabalhava na messe de oficiais, logo sugeriu ao capitão que se podia fazer um bom petisco para os oficiais com grão e mãos de vaca. Ele sabia que habitualmente as mãos de vaca eram deitadas fora por não ser viável cozinhá-las no rancho geral. Não chegavam para todos os soldados. 

O capitão não apreciava as mãos de vaca, em Lisboa nunca as comeria. No entanto, em Bedanda, onde tudo era diferente e a alimentação regra geral deficiente, mão de vaca era capaz de ser uma óptima variante ao rancho habitual. Com base nisso disse ao Fialho para ir falar com vaguemestre e que a seu mando lhe entregasse as mãos da vaca abatida. 

Foi o que o Fialho quis ouvir. Saiu da Companhia e foi à cantina falar com o sargento. Encontrou-o muito atarefado a conferir e a arrumar os géneros. 

─ O que queres daqui, Fialho? Estou a trabalhar, não tenho tempo para te aturar. Já te dei os géneros para a messe, o que é que queres mais? 

─ Na messe de oficiais lembrámo-nos de aproveitar as mãos de vaca e fazer mão de vaca com grão. Falei disso ao nosso capitão, ele concordou tendo-me dado ordens para as vir buscar antes de o senhor as deitar fora. Queria também um pouco de grão para fazermos o petisco.

 ─ O nosso capitão quer as mãos de vaca? Já as não tenho. Aquilo que vocês queriam fazer para os oficiais já nós fizemos para os sargentos e já as comemos. Como é que eu vou resolver isto agora? Tens a certeza que foi o nosso capitão que te mandou vir buscar as mãos de vaca? Isso não será uma iniciativa tua para fazerem um petisco para vocês? 

─ Não, meu sargento, não é iniciativa minha e o petisco é para os oficiais. E foi o nosso capitão que me mandou vir falar consigo. Eu só lembrei ao nosso capitão que era bom nós fazermos um petisco na messe de oficiais com a mão de vaca. Ele concordou comigo e mandou-me vir buscar as mãos de vaca. Eu não sabia que o meu sargento já as tinha comido. Eu vou dizer ao nosso capitão que o senhor e os outros nossos sargentos já comeram a mão de vaca. 

─ Está bem, podes ir dizer porque eu não me posso transformar em mão de vaca. 

O Fialho saiu da cantina e foi falar com o capitão. 

─ Meu capitão, falei com o nosso sargento vaguemestre. Não arranjei a mão de vaca porque o nosso sargento já a tinha arranjado para ele e para os outros sargentos. Nem sequer pude trazer a prova do sucedido porque eles estavam com pressa e já tinham comido o petisco. Só não tinham ainda lavado a louça porque eu bem vi a panela e os pratos sujos lá na cantina. 

─ Está bem, Fialho. Diz ao nosso sargento vaguemestre que venha falar comigo. 

O Fialho saiu do gabinete e dirigiu-se logo à cantina com o recado do capitão que tinha ficado aborrecido por o sargento já ter comido a mão de vaca. Queria falar com ele. Foi depois falar também com o Balsinhas dizendo-lhe que já tinha lixado o vaguemestre. 

 Fialho, como é que tu fizeste isso ao Vaguemestre? 

─ Eu sabia que os sargentos já tinham comido a mão de vaca, da vaca que matámos. Cozinharam-na com grão. Eu tinha dito antes ao capitão que se podia fazer um petisco com mão de vaca. A princípio o capitão não se mostrou muito interessado mas com o apoio dos nossos alferes consegui que o nosso capitão me mandasse ao nosso sargento vaguemestre buscar a mão de vaca. Como já a tinham comido não a pude levar e agora o nosso capitão quer falar com os sargentos que a comeram. 

─ Fialho! Tu és terrível. Arranjaste uma grande intriga. Coitado do nosso sargento vaguemestre. 

─ Coitado uma ova. Coitados é de nós porque ele sempre vai arranjando uns petiscos para os amigos. 

Cumprindo as ordens o vaguemestre lá seguiu para o gabinete do capitão. 

─ O meu capitão mandou-me chamar? 

─ Mandei sim. Você não perdoa nada. Mal acabámos de matar a vaca já você a estava a cozinhar e a comer com os seus amigos. Eu tinha mandado o Fialho buscar a mão de vaca porque queria fazer um petisco para mim e para os nossos alferes, mas você antecipou-se. Nem se lembrou de perguntar ao seu comandante de companhia se queria as mãos de vaca para a messe de oficiais. Julgo que era o mínimo que deveria ter feito. Se eu dissesse que não queria,  você poderia então fazer o petisco para os seus amigos. O que tem a dizer sobre isto? 

─ Nada, meu capitão. De facto eu fiz o petisco e comi-o com os meus amigos. Não me lembrei de perguntar ao meu capitão e aos nossos alferes se queriam a mão de vaca para a messe de oficiais. 

─ Agora, menino, que o mal está feito, não há mais nada a fazer. Você é comandante duma secção de atiradores. Porque tinha confiança em si e porque já tem a sua idade, inadequada a um comandante de secção na Guiné, eu mandei-o para o rancho e nomeei um cabo para comandar a sua secção. Mas como afinal vejo que você é muito desembaraçado, mais do que eu pensava, amanhã vai comigo para a operação já planeada e volta a comandar a sua secção. Esteja equipado amanhã, às duas horas da manhã. Pode sair. 

Pouco tempo depois entra no gabinete do capitão o alferes Carvalho.

 ─ Meu capitão, o Lopes foi falar comigo e disse-me que amanhã é ele que vai connosco na operação? Isto é verdade? 

 ─ É sim, Carvalho. É verdade porque aquele sacana fez um petisco com a mão de vaca e nem se lembrou de nós. Assim, nunca mais vai esquecer que quando houver um petisco o capitão e os nossos alferes também são gente. 

─ Meu capitão, tenha dó de mim. O Lopes nunca foi a uma operação porque você o retirou logo para vaguemestre, e o cabo que comanda a secção sabe dar conta do recado. A operação vai ser difícil e eu não queria levar um maçarico a comandar a secção. Se o quiser levar connosco dê-lhe outra missão. No pelotão não tem lugar. Problemas já nós temos, não precisamos de mais outro. Veja lá se pode rever a sua decisão. 

─ Está bem, mas não digas nada ao Lopes. Ele vai preparar-se para a operação, mas na altura da saída eu dispenso-o e volta para o rancho onde ele é bom. 

─ Assim está bem. Até logo e desculpe o meu desabafo. 

No noutro dia, antes da saída para a operação, o sargento Lopes apareceu de camuflado com espingarda, granadas e cantil. Parecia um guerreiro, mas com cara de grande aflição quando se apresentou ao capitão. 

─ O nosso sargento está pronto para comandar a sua secção? 

─ Estou pronto para cumprir as suas ordens, meu capitão. O nosso alferes disse que a operação era difícil e que eu ia ser mais um problema para ele. Preferia que eu não fosse. 

─ E você prefere ir ou não?

 ─ Eu preferia não ir mas o meu capitão é que sabe.

 ─ Bem, Lopes, vá lá tratar do rancho. Você não vai connosco porque eu preciso de alguém de confiança para tratar do rancho e da alimentação do quartel. Da próxima vez quando houver petisco lembre-se do seu capitão e dos nossos alferes. 

─ Esteja descansado, meu capitão. Não me voltarei a esquecer. Obrigado e boa sorte.

 ─ Obrigado Lopes e porte-se bem. 

Quando o sargento se afastou, o capitão, sorrindo, disse ao alferes Carvalho: 

─ Ainda bem que você não o quis a comandar a secção. Se o levássemos ia ser um grande problema para nós. É bom rapaz, muito bom vaguemestre, mas velho de mais para comandar uma secção nos matos da Guiné. Se você não me tivesse dado a hipótese de o dispensar, não sei como me ia livrar desta enrascada em que me meti. Tínhamos que andar com ele às costas pois ele não iria aguentar o esforço que nos espera. 

─ Tudo acabou em bem, meu capitão. A próxima vez que matarmos uma vaca, as mãos serão para fazermos um petisco para os oficiais. E eu, ou muito me engano, ou o petisco vai aparecer na messe já preparado.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos, para publicação deste poste: LG ]

9 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

No aquartelamento de Fajonquito que sediava uma companhia de quadrícula, não me lembro de haver manadas de gado a guarda dos militares, mas a estreita colaboração com as autoridades locais (Régulo e chefes de Tabanca) garantia sempre para que houvesse 2 ou 3 vacas, por mês, para matar, cujo fornecimento não estava isento de problemas porque, como é sabido, o camponês Fula tinha fortes razões para não aceitar vender, pelo que, nem sempre os procedimentos eram claros e bem aceites por todos.

E, quem se encarregava da matança e tudo o resto eram os serviçais, nativos da aldeia local. Para o quartel ia a carne para preparar o guisado de batatas ou esparguete e o resto (tripas, cabeça, mãos e a pele) era para pagar o "serviço". Os serviçais (Padeiro e auxiliares da cozinha) aos olhos dos seus conterrâneos, na altura, levavam uma vida de "Lordes" resultado desses pequenos privilégios. Mas, como na vida acabamos por pagar todos os nossos "pecados", pequenos ou grandes, antes de arrumar as botas nesta maldita terra, estes "Lordes" de estimação não conseguiram adaptar-se e sobreviver as repentinas mudanças com o 25A74 e o fim da guerra.

Bem, na verdade, o fim da guerra apanhou todos de surpresa e nem os Rafeiros (Jubis) escaparam da miséria de voltar a alimentar-se de milho preto ou milho brasil com folhas amargas do mato, mas lá conseguiram safar-se mais ou menos bem, o mais difícil de tudo, naqueles anos, foi depois habituar-se a ausência da guerra nas nossas cabeças, povoadas de medo permanente e da ansiedade de ouvir os primeiros tiros nas noites escuras e da correria para os abrigos de fortuna.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

"...foi depois habituar-se a ausência da guerra nas nossas cabeças, povoadas de medo permanente e da ansiedade de ouvir os primeiros tiros nas noites escuras e da correria para os abrigos de fortuna."

Cherno Baldé também é filósofo

Saúde da boa
Valdemar Queiroz Embaló

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Esquecemo-nos que o Cherno ainda era menino quando viu, pela primeira vez, na sua terra, um "diabo branco", e depois um helicóptero, uma máquina de guerra que o deixou aterrorizado... E teve, mais tarde, a grande sabedoria de aconselhar o pai a vender as vacas e pôr os filhos machos a estudar, em vez de os condenar a serem infelizes guardadores de vacas...

Fernando Ribeiro disse...

Eu não conheço a vida de Cherno Baldé, a não ser aquilo que ele tem contado neste blog. Pelo que tenho lido, o Cherno viveu os seus primeiros anos de vida em ambiente de guerra, todos ou quase todos os anos da sua infância. Ele era uma criança, a quem o medo e a ansiedade se colaram como uma segunda pele, numa idade em que esses (e outros) sentimentos marcam mais profundamente a personalidade de um ser humano. Provavelmente, o Cherno não teria sabido sequer o que era viver sem guerras, ou seja, sem a presença constante do medo e da ansiedade. É lógico que tenha sentido dificuldades em libertar-se dessa presença na sua cabeça, quando já vivia sem guerra e sem os seus perigos. Nada disto tem a ver com filosofias, nem com helicópteros ou diabos brancos ou de outra qualquer cor. Absolutamente nada.

Valdemar Silva disse...

Caro Fernando Ribeiro.
No caso de Cherno Baldé, não podemos dizer tratar-se de senso comum, até pode haver mais gente com esta orientação na sua maneira de ser. Mas neste caso, encontro qualquer coisa de filosofia mesmo que seja em sentido figurado.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

É verdade que esta minha frase intuitiva “...o mais difícil de tudo, naqueles anos, foi depois habituar-se a ausência da guerra nas nossas cabeças, povoadas de medo permanente e da ansiedade de ouvir os primeiros tiros nas noites escuras e da correria para os abrigos de fortuna” tem qualquer coisa de poético ou filosófico, se quiser, na forma como foi dito, mas o “angolano” Fernando Ribeiro nao deixa de ter razão ao afirmar que “Provavelmente, o Cherno não teria sabido sequer o que era viver sem guerras, ou seja, sem a presença constante do medo e da ansiedade”.

Agora ja sabemos, através de relatos de pessoas que foram protagonistas desse periodo na zona Norte mais concretamente em Farim, como o Amadu Bailo Djalo, que a guerra alastrou-se ao Nordeste em meados de 1963 e nesse mesmo ano ou no seguinte (1964) fomos obrigados a abandonar a nossa aldeia perto da localidade de Fajonquito depois de um ataque da guerrilha, para refugiarmo-nos em Cambaju e foi nessa localidade que, pela primeira vez, vimos soldados brancos cara a cara e foi um susto enorme.

Estes soldados seriam os da CCAC 674 comandada pelo Capitao de Infantaria José Rosado Castela Rio que chegara a Fajonquito em Maio de 1964, tendo destacado um Pelotao para Cambaju. Portanto, assim podemos dizer que convivi com a guerra desde o inicio e por longos 11 anos de conflito, tendo pelo meio sofrido dois ataques, o ultimo dos quais foi muito proximo e violento que por alguma sorte não vitimou o nosso pai que defendia a casa comercial que, supostamente, quereriam assaltar. E quem sabe, talvez hoje não estevesse aqui a escrever sobre a guerra, porque foi graças ao lançamento de duas granadas que conseguiu emover os assaltantes (ver o relato sobre este acontecimento na série das minhas memorias de infancia no Blogue).

Aquando do 25A74 nós nem podiamos acreditar, porque dentro de nós a guerra era um dado adquirido e normal como eram normais os actos humanos de comer, dormir e acordar e, no nosso intimo, havia uma mistura de satisfaçao e de desilusao, pois viamos assim esfumar-se o nosso desejo de ser soldado, de fazer a guerra, de fazer parte dos comandos, a elite da elite que eram o modelo e foco das nossas conversas e brincadeiras. De repente, para nos, o fim da guerra trazia novos desafios que nao estavam previstos e que exigiam novas abordagens, ao mesmo tempo que viamos, pela primeira vez, o surgimento de novas as possibilidades e novos horijontes a que nao podiamos contar no decurso da guerra que, infelizmente, so nos permitia vislumbrar uma unica via para o futuro que era ser soldado e pronto para sacrificar a vida em defesa da nossa terra, como se dizia na altura. No quartel, para além de tudo as tarefas e equipamentos que mais nos atraiam eram, precisamente, os de natureza bélica, como sejam armas (mauser e G3), granadas de mao que podiamos encontrar nas casernas e/ou granadas dos morteiros (60 e 81). Sempre que iamos a noite para uma batucada nas Tabancas dos arredores, havia um ou dois rapazes mais crescidos na altura que levavam uma ou mais granadas apertadas no cinto das calças, como faziam os soldados e tivemos casos de acidentes com granadas entre crianças com menos de 12 anos.


Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Cherno disse...

PS: O saco (bolsa) das granadas.

Um pouco antes ou depois da chegada do primeiro Pelotão de metropolitanos em Cambaju, tinham distribuído à todos os chefes de familias, uma espingarda Mauser, munições e nalguns casos granadas defensivas. Foi assim que, quando nos refugiamos nesta localidade onde o nosso pai já estava colocado, havia alguns anos como encarregado da loja de um Luso-Caboverdiano conhecido pelo nome de Barbosa, descobrimos debaixo da sua cama uma bolsa contendo munições da mauser e algumas granadas de mão. Nesse início da guerra, já sabíamos o que era uma arma (Mauser), mas sobre as granadas, mesmo sabendo que era um engenho explosivo, não podíamos adivinhar do seu poder de destruição. Sempre que podíamos puxavamos a bolsa debaixo da cama para observar e tocar nos objectos ali escondidos sem que os mais velhos soubessem. Era uma espécie de curiosidade e ao mesmo tempo uma forma de mostrar as outras crianças alguns dos segredos da nossa casa.

Só viriamos a saber da sua utilidade e do que eram capazes quando fomos atacados em meados de 1965/66. Nessa noite, quando um grupo dos assaltantes se aproximou da casa comercial e onde toda a família e alguns vizinhos estavam escondidos por se tratar das poucas casas mais ou menos seguras e com cobertura de zincos, o meu pai encontrava-se no exterior com a sua Mauser, estando quase cercado pelos guerrilheiros. De repente aparece um jovem forasteiro, ajudante de um dos camiões que regularmente vinham carregar amendoim para a cidade de Batata ou Farim e que, vendo a situação de perigo iminente, aconselha o meu pai a sair do local para não ser morto, pelo que este respondeu que não podia sair do local, porque era encarregado da loja e toda a sua família estava dentro da casa. O jovem insistiu e perguntou se por acaso não tinha mais nada para além da mauser. Então, o meu pai lembrou-se das granadas e, talvez, com medo de que a minha mãe não pudesse ouvir, gritou com tanta força que a sua voz foi ouvida pra lá da aldeia atacada e ainda ecoa nos nossos ouvidos de crianças assustadas: "Cadi !!!...traz as granadas !!!...

Bastou ao nosso jovem anjo da guarda lançar 1 ou 2 granadas para que os tiros parassem. De seguida foram ouvidos gritos de aflição e depois foi o silêncio.

Ainda hoje, em Cambaju, as pessoas perguntam o que foi mais aterrador, se as granadas lançadas sobre os assaltantes ou o grito de desespero lançado pelo meu pai quando pedia as granadas de mão abandonadas algures dentro da casa que habitávamos.

Como vêm, mais cedo ou mais tarde as guerras dos homens acabam, todavia os seus efeitos psicológicos e psico-sociais perduram pelo resto da vida dos protagonistas e das suas vítimas colaterais.

Melhores saudações,

Cherno AB

Valdemar Silva disse...

Caro Cherno Baldé
Quando eu fiquei admirado com o que tinhas escrito, apeteceu-me dizer 'Cherno Baldé também é filosofo'.
Evidentemente, não fizeste nenhuma descoberta, mas houve como que um encontro para uma explicação de parar de ouvir o barulho da guerra.

Já referiste anteriormente, que nunca tinhas visto um soldado branco, até aparecer a tropa em Fajonquito. Nunca percebi se nunca tinhas visto um branco ou um branco vestido de soldado.
Então não havia portugueses metropolitanos em Fajonquito ou nos arredores?

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

Quando a guerra se alastrou para a nossa zona do Nordeste (finais de 1963/princípios de 1964), nós fugimos da nossa aldeia no mato para Cambaju, teria eu mais ou menos 4/5 anos de idade. E foi em Cambaju que, pela primeira vez, eu vi com os meus olhos, a cara de um branco, nesse caso eram soldados.

É verdade que em Fajonquito havia umas 3 ou 4 casas (lojas) de comerciantes portugueses (metropolitanos) que viviam com suas famílias, mas quase todos tinham partido com o início da guerra. A nossa família só veio para Fajonquito em 1967 e, curiosamente ainda encontramos os últimos resistentes, mas já sem o resto das famílias.

Abraços,

Cherno Baldé