quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23995: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (15): Humilhados e ofendidos... (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121 / BCP 12, 1972/74, natural de Águeda)


Victor Tavares

1. O Victor Tavares, natural de Águeda, conterrâmeo e amigo do nosso Paulo Santiago (outro dos nossos "históricos"),  antigo presidente da junta de freguesia de Recardães, sua terra natal, não foi um "tipo qualquer"... Foi um grande combatente e um dos melhores do melhores: ex-1.º cabo paraquedista, da CCP 121 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74),  Tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue. Integra a Tabanca Grande desde 6 de outubro de 2006. É, portanto, um dos nossos "veteranos".

Justifica-se, por muitas razões,  a reprodução deste excerto de um poste já muito antigo (*): o Victor dá-nos aqui o retrato do abandono e da humilhação, a que foram sujeitos, em Cacine, os militares que, sob as ordens do comandante do COP 5, major Coutinho e Lima (1945-2022), abandondaram Guileje, em 22 de Maio de 1973, chegando a Gadamael, também fortemente atacada pelo PAIGC, a seguir a Guileje, e salva pelos pára-quedistas e a Marinha -, refugiando-se depois em Cacine. 

A "batalha dos 3 G" foi há 50 anos  (**)... Ainda há gente que se lembra, e participou nos acontecimentos, em Guidaje, em Guileje, em Gadamael... O Vitor Tavares esteve lá,  em todas... Este texto, que voltamos a reproduzir, é também uma forma de ele "fazer a prova de vida"... Andou há tempos atrapalhado com sérios problemas de saúde... Felizmente, superou-os, está melhor, já voltou ao seu Facebook... 

Um abraço fraterno para ele. LG


Gadamel Porto, o outro inferno a sul

por Victor Tavares



Depois de regressada do inferno de Guidaje (***), a Companhia de Caçadores Paraquedista (CCP) 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca [Base Aérea n.º 12], gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, onde chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

Foi então, logo na primeira abordagem da lancha, que me apercebi que na mesma estava um indivíduo que pela cara me pareceu familiar. No entanto, como o mesmo se encontrava vestido à civil,  calções, camisa aos quadradinhos toda colorida e sandálias de plástico transparente - pensei ser porventura algum civil que andaria por ali no meio da tropa, o que seria natural e podia eu estar errado.

Depois de toda a tropa estar desembarcada, indicaram-nos o local onde iríamos ficar, num terreno frente ao quartel de Cacine. Instalámo-nos e de seguida fomos dar uma volta pelas redondezas, até que no regresso deparo com a mesma criatura, sentada no cais com ar triste e pensativo, típico da pessoa a quem a vida não corre bem. 

Eu vinha acompanhado do paraquedista Vela, meu conterrâneo – e hoje meu compadre. Perguntei-lhe:

Ouve lá, aquele tipo ali não é nosso conterrâneo?

Responde ele:

− Sei lá, pá, isto é só homens.

 "Gadamael ?!... Vocês vão lá morrer todos!"

Por ali estivemos na conversa mais algum tempo, até que tomei a iniciativa de me dirigir ao fulano uma vez que ele continuava no mesmo sítio. Acercando-me dele, perguntei-lhe:

  
 Diz-me lá, camarada, por acaso tu não és de Águeda ?

Responde-me ele:

 −  Sou.
E pergunta-me de seguida:

 E, você, não é de Recardães?

Digo-lhe que sim, cumprimentamo-nos e vai daí perguntei-lhe o que é que ele estava ali a fazer, porque de militar não tinha nada. Respondeu-me que não sabia o que estava ali a fazer, de uma forma triste e ao mesmo tempo em tom desesperado e desanimado.

Entretanto com o desenrolar da conversa, ele perguntou o que estávamos ali a fazer, eu respondi que na madrugada seguinte íamos para Gadamael Porto... Qual não é o meu espanto quando ele põe as mãos à cabeça, desesperado e desorientado, e me diz:

− Não vão, porque vocês morrem lá todos!

Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe para estar descansado que nada de grave ia acontecer, pedi-lhe para me contar o que se passava, vai daí, começa ele a relatar o que tinha passado em Guileje e Gadamael até chegar a Cacine. Na verdade depois de o ouvir, não me restaram dúvidas que ele tinha mais do que sobejas razões para estar no estado psicológico aterrador em que se encontrava .


Os militares portugueses que abandonaram Guileje, 
foram tratados como desertores e traidores à Pátria

Entretanto, informa-me da sua situação militar daquele momento tal como a de outros camaradas que abandonaram Guileje. Neste grupo estava também outro meu conterrâneo, que o primeiro foi chamar, vindo este a confirmar tudo.

O que mais me chocou foi a forma desumana como estes militares foram tratados, depois da sua chegada a Cacine, sendo considerados como desertores e cobardes, quando, em meu entender, se alguém tinha que assumir a responsabilidade dessa situação, seriam os seus superiores e nunca por nunca os soldados.

Estes homens foram humilhados por muitos dos nossos superiores  
 que eram uns grandes heróis de secretária!  , foram proibidos de entrar no aquartelamento, não lhes davam alimentação, o que comiam era nas Tabancas junto com a população. 

As primeiras refeições quentes que já há longos dias não tomavam, foram feitas por estes dois homens juntamente com os paraquedistas, porque o solicitei junto do meu Comandante de Companhia, capitão paraquedista Almeida Martins – hoje tenente general na reserva   ao qual apresentei os dois camaradas do exército que lhe contaram tudo por que passaram.


Os dois desgraçados de Guileje eram meu conterrâneos: 
o Carlos e o Victor Correia

Solicitei ao meu comandante para eles fazerem as refeições junto com o nosso pessoal, prontificando-me eu a pagar as suas diárias, se fosse necessário. Ele autorizou os mesmos a fazerem as refeições connosco enquanto não tivessem a sua situação resolvida e a nossa cozinha que dava apoio ao bigrupo que estava de reserva, ali se mantivesse.

O meu comandante expôs o problema destes homens ao comandante do aquartelamento do exército, solicitando que o mesmo fosse resolvido com o máximo de brevidade uma vez que a situação não era nada dignificante para a instituição militar.

É de salientar que estes dois homens já não escreviam aos seus familiares há mais de um mês, porque não tinham nada com que o fazer. Fui eu que lhes dei aerogramas para o fazerem e os obriguei a escrever, porque o seu moral estava de rastos e a vida daqueles militares já não fazia sentido. Dormiam debaixo dos avançados das Tabancas enrolados em mantas de cor verde, não tendo mais nada para vestir a não ser o camuflado.

Estes meus dois conterrâneos que atrás refiro eram o Carlos (que infelizmente já faleceu, natural do lugar de Perrães, Oliveira do Bairro) e o Victor Correia (de Aguada de Baixo, Águeda, e que hoje sofre imenso de stresse pós-traumático de guerra) (****)

[ Selecção / Revisão e fixação de texto / Substítulos / Parênteses retos / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
_____________

Notas dos editores:

(*) Vd. postes de:


(**) Ultimo poste da série > 21 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)

(***) Vd. postes de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(****) Estes camaradas devem ter pertencido à CCAV 8350 (ou a subunidades adidas, os "Piratas de Guileje" foram os últimos a deixar Guileje, por ordem do comandante do COP 5, o então major Coutinho e Lima (*****).  

Recorde-se que, de 18 a 22 de Maio de 1973, o aquartelamento de Guileje foi cercado pelas forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral), obrigando as NT a abandoná-lo (juntamente com algumas centenas de civis)

(i) 2 grupos de combate da CCAÇ 4743 (unidade de quadrícula de Gadamael) (incluindo o seu comandante); 

(ii) CCAV 8350 (unidade de quadrícula de Guileje) (incluindo o comandate do COP 5, major Coutinho e Lima);

(iii) Pelotão de Artilharia, comandado pelo Al Mil Pinto dos Santos (já falecido); 

(iv) Pel Cav Reconhecimento Fox (reduzido, havendo apenas duas Fox); e

(v) Pelotão de milícias local...

 A Companhia Independente de Cavalaria 8350/72 foi a unidade de quadrícula de Guileje entre outubro de 1972 e maio de 1973. Viu morrer em combate nove dos seus homens, entre algumas dezenas de feridos. Foi seu Comandante o Cap Mil Abel dos Santos Quelhas Quintas,  também ferido.

1 comentário:

Eduardo Estrela disse...

Heróis são aqueles que no recato dos seus gabinetes, ordenam que os outros combatam até ao último homem.
A lucidez e o respeito pela vida dos que no terreno largam a pele e a alma, é apelidada de traição cobardia e deserção.
Já tinha sido assim na Índia.
Carne para canhão, desde que não seja a deles dos familiares ou dos amigos.
Eduardo Estrela