Guine > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões"
Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados
Com a devida vénia transcrevo aqui a excelente peça bloguística, produzida pelo nosso camarada João Tunes, e inserida no seu blogue - Água Lisa (6) - , com data de 21 de Maio de 2007.
Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados
Com a devida vénia transcrevo aqui a excelente peça bloguística, produzida pelo nosso camarada João Tunes, e inserida no seu blogue - Água Lisa (6) - , com data de 21 de Maio de 2007.
O João, que foi Alf Mil Trms, no Pelundo e em Catió (1969/71), é um dos nossos camaradas que mais tem reflectido sobre o contexto político e ideológico em que se desenrolou a guerra colonial (1971/74).
Às vezes, polémico, crítico, contundente, incómodo, cultivando a frontalidade, o João é sobretudo um cidadão militante e livre, um homem de grande lucidez e generosidade, absolutamente indispensável como maître à penser nesta nossa Tabanca Grande.
Tenho saudades tuas, João. Visita-nos mais vezes. Ou melhor: não precisas de pedir licença para entrar, que a casa também é tua, pese embora nem sempre te sintas confortável nos espaços fechados, exíguos e às vezes clautrofóbicos, desta caserna da tropa, preferindo desenfiares-te para a bolanha, a savana arbustiva, o rio ou a floresta-galeria... (LG)
Segunda-feira, 21 de Maio de 2007 > GUERRA COLONIAL / GUERRA DE LIBERTAÇÃO
por João Tunes
Segunda-feira, 21 de Maio de 2007 > GUERRA COLONIAL / GUERRA DE LIBERTAÇÃO
por João Tunes
(Subtítulos e links da responsabilidade de L.G.)
A guerra colonial ainda resiste como tabu contornado na sociedade portuguesa. A abordagem deste drama, que durou treze anos, marcando, em perdas e danos, muitas dezenas de milhares de portugueses hoje acima dos 55 anos de idade mas que se repercutiu nos seus familiares, deixando assim marcas em várias gerações, não alcança, em termos de ocupação de memória e de evidência histórica, comparado com o espaço memorialista, narrativo e analítico ocupado pelo drama conexo e consequente da descolonização, uma repartição similar. E o filtro do ressentimento gerado pelo drama da descolonização foi e é um formidável gerador de preconceitos que actua como espécie de coveiro de memória relativamente ao drama colonial (antes da guerra e durante esta). Como se, para a maioria dos portugueses, se tivesse descolonizado aquilo que não se colonizou e se resistiu a permitir a separação, persistindo-se assim no mito salazarista difuso do Portugal “do Minho a Timor”, prolongando um ressentimento colectivo por nos terem arrancado, à má fila, bocados que “eram nossos”.
Guerra colonial, guerra do ultramar, guerra de libertação...
Mas os portugueses que falam e escrevem sobre a guerra colonial (alguns preferem chamar-lhe “guerra no ultramar”, o que tem uma marca política evidente, enquanto para os africanos ela é denominada como “guerra de libertação”, o que também significa muito) têm ainda, independentemente do enquadramento político e ideológico sobre ela, uma visão inevitavelmente eurocêntrica. Ou seja, é sempre um olhar sobre este sofrimento (ou gesta, para os “patriotas”) sedimentado da experiência ou da percepção interpretativa do "lado do colono" (no mínimo, do ponto de vista cultural), mesmo quando esse "colono" procura, o mais possível com o que melhor sabe, colocar-se na pele do "colonizado" e adoptar a sua causa.
Mia Couto, um escritor moçambicano de pele branca, exemplificou bem as diferenças quando referiu que enquanto os portugueses falam de "descolonização", os africanos não usam este termo porque para eles o que existiram foram "independências" (ou seja, não foram os europeus que descolonizaram, foram os africanos que conquistaram as independências dos seus países).
[É elucidativo que, quanto ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, esse mimetismo maior feito pelo salazarismo relativamente à perfídia do nazismo, depois replicado em vários outros locais de África, haja, entre a literatura do antifascismo militante, uma constância de referência ao período 1936-48, em que lá estiveram internados prisioneiros políticos europeus, quase se silenciando que o mesmo e odioso Campo foi reaberto em 1961, por despacho de Adriano Moreira, esse hoje notável e venerando professor de boas práticas democráticas, onde dezenas de milhar de africanos penaram até 1974. Quase parecendo que, nessa mesma iniquidade, um africano anticolonial sofreu menos que um antifascista europeu, quando o inverso é que foi verdadeiro.]
Um enorme défice de produção documental e de investigação historiográfica, do lado africano
Entretanto, da parte africana, muito mais escassa ainda é a produção de registos memorialistas e trabalhos históricos sobre as guerras de libertação. Por variadas e evidentes razões (altas taxas de analfabetismo e ileteratícia; atribulações políticas; falta de arquivos; fragilidade das estruturas e meios académicos; menor horizonte de vida que levou a que muitos dos que combateram já tenham falecido; maiores preocupações em sobreviver, consolidar a independência e garantir o futuro que lidar e fazer registo do passado).
Neste quadro, se os “antigos colonos” perdem pouco tempo a lembrar e pensar o passado colonial, os “antigos colonizados” ainda menos o fazem, o que beneficia o alargamento (conveniente para uns tantos) do “buraco histórico” que a guerra colonial / guerra de libertação representa na memória dos portugueses e dos africanos que têm como pátrias suas as antigas colónias portuguesas, sobrando, inevitavelmente, o espaço para os mitos e os ressentimentos, maus conselheiros para a saúde cívica dos povos.
Daqui que considere um facto notável, remando contra o silêncio das memórias, o trabalho persistente e competente do historiador guineense Leopoldo Amado (na foto de cima). Que, constituindo uma importantíssima e honrosa excepção, submete, no próximo dia 28, a um júri de doutoramentos da Universidade Clássica de Lisboa, em sessão pública, o seu notável trabalho de investigação sobre a guerra na Guiné (1963-1974) e que culminou num estudo comparado da mesma quanto aos dois lados da contenda (a mais dura no quadro das três guerras coloniais) e em que foi orientado pelo Professor João Medina (*) (**). Demonstrando, em boa tese, que os mitos e os ressentimentos abatem-se pelo saber.
_________
(*) Assim reza a nota informativa da Universidade Clássica de Lisboa:
Doutorando/a: Lic.º Leopoldo Victor Teixeira Amado
Doutoramento: Doutoramento em História - História Contemporânea
Título da Tese: “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação (1963-1974): O Caso da Guiné-Bissau”
Data/Hora: 28 de Maio, 10H00
Local: Reitoria - Sala de Doutoramentos, Cidade Universitária, Lisboa
(**) – O meu elogio antecipado ao trabalho académico de Leopoldo Amado fundamenta-se no conhecimento prévio de que beneficiei, mercê da sua amizade que muito me honra, e para o qual, modestamente, dei o meu singelo contributo de mera opinião crítica na fase de elaboração final, valendo-me, como suporte, da memória registada no meu corpo e na minha alma, proveniente de dois registos contraditórios e num paradoxo que me empalou a juventude - o de antigo combatente na Guiné nas fileiras do exército colonial e o de militante activista contra a guerra colonial.
A guerra colonial ainda resiste como tabu contornado na sociedade portuguesa. A abordagem deste drama, que durou treze anos, marcando, em perdas e danos, muitas dezenas de milhares de portugueses hoje acima dos 55 anos de idade mas que se repercutiu nos seus familiares, deixando assim marcas em várias gerações, não alcança, em termos de ocupação de memória e de evidência histórica, comparado com o espaço memorialista, narrativo e analítico ocupado pelo drama conexo e consequente da descolonização, uma repartição similar. E o filtro do ressentimento gerado pelo drama da descolonização foi e é um formidável gerador de preconceitos que actua como espécie de coveiro de memória relativamente ao drama colonial (antes da guerra e durante esta). Como se, para a maioria dos portugueses, se tivesse descolonizado aquilo que não se colonizou e se resistiu a permitir a separação, persistindo-se assim no mito salazarista difuso do Portugal “do Minho a Timor”, prolongando um ressentimento colectivo por nos terem arrancado, à má fila, bocados que “eram nossos”.
Guerra colonial, guerra do ultramar, guerra de libertação...
Mas os portugueses que falam e escrevem sobre a guerra colonial (alguns preferem chamar-lhe “guerra no ultramar”, o que tem uma marca política evidente, enquanto para os africanos ela é denominada como “guerra de libertação”, o que também significa muito) têm ainda, independentemente do enquadramento político e ideológico sobre ela, uma visão inevitavelmente eurocêntrica. Ou seja, é sempre um olhar sobre este sofrimento (ou gesta, para os “patriotas”) sedimentado da experiência ou da percepção interpretativa do "lado do colono" (no mínimo, do ponto de vista cultural), mesmo quando esse "colono" procura, o mais possível com o que melhor sabe, colocar-se na pele do "colonizado" e adoptar a sua causa.
Mia Couto, um escritor moçambicano de pele branca, exemplificou bem as diferenças quando referiu que enquanto os portugueses falam de "descolonização", os africanos não usam este termo porque para eles o que existiram foram "independências" (ou seja, não foram os europeus que descolonizaram, foram os africanos que conquistaram as independências dos seus países).
[É elucidativo que, quanto ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, esse mimetismo maior feito pelo salazarismo relativamente à perfídia do nazismo, depois replicado em vários outros locais de África, haja, entre a literatura do antifascismo militante, uma constância de referência ao período 1936-48, em que lá estiveram internados prisioneiros políticos europeus, quase se silenciando que o mesmo e odioso Campo foi reaberto em 1961, por despacho de Adriano Moreira, esse hoje notável e venerando professor de boas práticas democráticas, onde dezenas de milhar de africanos penaram até 1974. Quase parecendo que, nessa mesma iniquidade, um africano anticolonial sofreu menos que um antifascista europeu, quando o inverso é que foi verdadeiro.]
Um enorme défice de produção documental e de investigação historiográfica, do lado africano
Entretanto, da parte africana, muito mais escassa ainda é a produção de registos memorialistas e trabalhos históricos sobre as guerras de libertação. Por variadas e evidentes razões (altas taxas de analfabetismo e ileteratícia; atribulações políticas; falta de arquivos; fragilidade das estruturas e meios académicos; menor horizonte de vida que levou a que muitos dos que combateram já tenham falecido; maiores preocupações em sobreviver, consolidar a independência e garantir o futuro que lidar e fazer registo do passado).
Neste quadro, se os “antigos colonos” perdem pouco tempo a lembrar e pensar o passado colonial, os “antigos colonizados” ainda menos o fazem, o que beneficia o alargamento (conveniente para uns tantos) do “buraco histórico” que a guerra colonial / guerra de libertação representa na memória dos portugueses e dos africanos que têm como pátrias suas as antigas colónias portuguesas, sobrando, inevitavelmente, o espaço para os mitos e os ressentimentos, maus conselheiros para a saúde cívica dos povos.
Daqui que considere um facto notável, remando contra o silêncio das memórias, o trabalho persistente e competente do historiador guineense Leopoldo Amado (na foto de cima). Que, constituindo uma importantíssima e honrosa excepção, submete, no próximo dia 28, a um júri de doutoramentos da Universidade Clássica de Lisboa, em sessão pública, o seu notável trabalho de investigação sobre a guerra na Guiné (1963-1974) e que culminou num estudo comparado da mesma quanto aos dois lados da contenda (a mais dura no quadro das três guerras coloniais) e em que foi orientado pelo Professor João Medina (*) (**). Demonstrando, em boa tese, que os mitos e os ressentimentos abatem-se pelo saber.
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(*) Assim reza a nota informativa da Universidade Clássica de Lisboa:
Doutorando/a: Lic.º Leopoldo Victor Teixeira Amado
Doutoramento: Doutoramento em História - História Contemporânea
Título da Tese: “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação (1963-1974): O Caso da Guiné-Bissau”
Data/Hora: 28 de Maio, 10H00
Local: Reitoria - Sala de Doutoramentos, Cidade Universitária, Lisboa
(**) – O meu elogio antecipado ao trabalho académico de Leopoldo Amado fundamenta-se no conhecimento prévio de que beneficiei, mercê da sua amizade que muito me honra, e para o qual, modestamente, dei o meu singelo contributo de mera opinião crítica na fase de elaboração final, valendo-me, como suporte, da memória registada no meu corpo e na minha alma, proveniente de dois registos contraditórios e num paradoxo que me empalou a juventude - o de antigo combatente na Guiné nas fileiras do exército colonial e o de militante activista contra a guerra colonial.
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